Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte

Os sonhos

Na adolescência, descobri que tinha a habilidade de planejar meus sonhos. Ou, pelo menos, de controlar um estágio de vigília meio adormecido. Num deles eu voava, passando por cima de casas e cidades. Só precisava me concentrar para não perder altura, embora não houvesse realmente o perigo de cair. A sensação era agradável. Sonhos Peter Pan.
Os sonhos induzidos, se é que eram sonhos, às vezes escapavam do controle e acabavam virando pesadelos. Meus pesadelos são recorrentes e me seguem até hoje, nas noites de insônia.
Quando garoto, tinha alguns pavores: medo de bêbados e de loucos, medo de morrer afogado e de ficar perdido. Quais seriam as Madeleines desses pavores?
Todo domingo, no Cinema Rosário, antes dos filmes, passavam alguns seriados. Dentre eles, eu tenho certeza de dois: Flash Gordon e Fu Manchu. Um episódio de Fu Manchu me perseguiu por muito tempo. Na cena, a mocinha estava presa num cilindro de vidro, fechado por uma tampa de aço. No recipiente havia um buraco por onde entrava a água, que subia rapidamente. Durante algum tempo, ela conseguiu respirar o ar que ainda havia na parte de cima, até ser encoberta totalmente pela água.  O episódio terminava com ela se debatendo até perder os sentidos. Não sei como a mocinha se salvou.
Hoje, quando estou naquele estado intermediário, do qual ainda consigo sair por vontade própria, é comum sonhar que estou numa caverna e tenho que mergulhar em um túnel cheio de água.  Eu nunca acho a saída. A variante seca é quando fico entalado em uma passagem na rocha.
Será um eco da asma de minha mãe, que herdei e repassei para o meu filho? Terá alguma conotação sexual, como penso às vezes? Um pênis preso num buraco? O medo não tem uma base real, porque eu tinha a mania de fazer túneis quando garoto. Nos barrancos da Rua Cônego Floriano, no Bairro da Graça, onde a terra era avermelhada, com veios amarelados. Ou na terra escura e fértil do quintal da Rua do Ouro. E adoro mergulhar.
Não gosto de altura, embora não chegue a ser uma fobia e eu consiga caminhar sem medo num lugar alto. Essa aversão produz os sonhos-gastura. Aquela sensação de passar o dedo no veludo, ou de ouvir o giz rangendo no quadro. Nesses sonhos, vejo meu filho ainda pequeno cair de uma janela. Quando chego na beirada de alguma coisa alta, na vida real, às vezes me vejo caindo. É um flash que passa rápido e não retorna.
Os pesadelos propriamente ditos, no estado de sonho profundo, eram outros. Sonhava que estava sendo perseguido e que passava por vários cômodos sucessivos, que nunca terminavam; de uma sala para um quarto, depois para uma cozinha e assim sucessivamente. Ou que estava perambulando por uma cidade perfeitamente desconhecida, andando por ruas intermináveis, percorrendo bairros diferentes, querendo chegar a um lugar que não eu conseguia situar.
Os filmes e os livros da coleção Terramarear deram origem aos sonhos de espadachim, nitidamente inspirados em Scaramouche e Stewart Granger. Na vida real, eu tinha medo de facas e canivetes. Lembro como fiquei quando li o significado da expressão: “briga de homem é com camisa amarrada”. Dois cangaceiros amarravam as beiradas das camisas desabotoadas e iam se furando, com suas peixeiras. Alguma coisa entre a gastura e o pânico.

Em alguns pesadelos, duas pessoas brigavam com canivetes, se cortando. Em um outro, vi uma pessoa, talvez meu tio, retalhando o peito de Angélica, nossa empregada, que de vez em quando tinha acessos de loucura. Usava uma faca de cozinha, que ia produzindo talhos vermelhos na pele negra. Angélica não reagia! Impressionante como a busca pelos sonhos da juventude traz de volta tantos pesadelos.
Minha mãe contava a história de um menino que havia estava apontando um lápis com uma gilete. De repente sentiu uma coceira nos olhos e, distraído foi esfregá-los, cortando-se com a lâmina. Meu Buñuel - gastura, definitivamente.
Quando eu morria nos sonhos era sempre com um tiro, como um herói que finalmente é derrotado pela traição, ou pelo número dos adversários. A espada, com certeza, é um símbolo fálico. Freud sabia das coisas.
Da leitura do livro “Tarzan e os homens-formigas”, me ficara a imagem de uma tribo de mulheres. Nos meus sonhos induzidos, eu fantasiava mulheres nuas, que podiam ser atravessadas de lado a lado por uma espada e que nunca sentiam dor ou ficavam feridas. De alguma maneira, elas estavam associadas a um nome: Alali. Minha fantasia era atravessá-las de todas as maneiras, com predileção pelos seios. Outro dia achei o livro em um sebo. Dei uma rápida folheada e o nome Alali trouxe de voltas as minhas mulheres.
Sonhos de pré-adolescente. Os hormônios ainda não haviam entrado em ebulição. Não preciso dizer porque nunca tive vontade de fazer análise: eu mesmo sou meu terapeuta.




                  

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Manhã no Bairro Paraíso


Hora de pôr o lixo para fora
Os ônibus escolares passam recolhendo o gado
Hora em que levo os gatos pra passear
Pra comer a grama da calçada

Os garotos pastam a primeira refeição: Geometria
Expelem uma bola de pelos: Física
Defecam Geografia
Vomitam História

Comem ração de filhotes
Ás vezes, ração molhada
Um pouco de leite, coalhada
São o futuro da nação

Os gatos cheiram o portão
Leem as primeiras notícias
Quem passou por aqui?
Aquele cachorro safado, aquele gato intrometido?

Os garotos abrem o zap zap
Quem deu para quem?
As minas sacam os gatos
Os manos babam nas tetas

Os gatos se enroscam na cama
Deitam no sofá
Ronronam
Começa um dia perfeito

Os garotos saem da escola
Um bando em revoada
Uma pegação, uma zoação
Oba! Vai ter porrada
São o futuro da nação

Tonto, meu gato preto, puxa conversa
Ele detesta os ônibus, os garotos sempre correndo
Tem medo desse bando barulhento
Que um dia vai ter que correr, pra ganhar sua ração

São o futuro da nação

Marco Lisboa



sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O trabalho de inglês


“The way was very beatifull” Tadinha, meio burrinha, mas gostosa. Dá para ver que ela se esforçou, usou o dicionário, gastou todo o inglês que tinha..
-  Me dá aí , disse Oliveira.
- Humm, letra de moça, com certeza. Redonda, caprichada. Olhe os tês iniciais - elaborados. Tem um esse maiúsculo que parece uma clave de sol. E olha que isso era um rascunho, está todo rasurado. Como é que ela entregou o trabalho assim?
- Não entregou, fui eu quem tomou a folha.
- Dá para ver duas dobras, ele deveria estar dentro de um livro. Por que você tomou o trabalho dela? perguntou Oliveira.
- Ela estava lendo essa folha, sem prestar atenção na aula. Quando viu que eu a observava, dobrou o papel e o enfiou dentro da agenda. Fiquei curioso e pedi o que eu pensei que fosse um bilhete.
- Não é bilhete, professor, estava conferindo o rascunho da composição.
E me entregou essa folha.
Era hora do recreio, a sala dos professores estava cheia e os dois não tinham muito o que fazer.
- Vamos traçar um perfil da moçoila. Margens estreitas em todos os sentidos, sem necessidade. Isso é raro. Segundos os especialistas, sinais de uma personalidade conflitante. As linhas estão quase horizontais, mas nota-se que são côncavas, vão descendo até o meio e depois sobem para manter o alinhamento. Meticulosa e determinada. Oliveira se gabava de ser perito em grafologia.
- Quanto a inclinação da letra, ela é praticamente vertical, com os  tês  em ângulo de 90 graus - autocontrole. Letra muito legível - sociável. Eu diria que a letra é grande -autoconfiança. Letra larga e espaçada -  orgulhosa. Olhe esses emes, enes e os. Eles formam arcadas na parte superior - calculista. As letras estão todas ligadas - autodisciplina.
Letra redonda, definitivamente - afetiva. A letra é pressionada com força e a pressão é constante. A caneta é uma esferográfica vagabunda, forma pontos de tinta onde se detém para mudar de direção. Eu não diria que é uma escrita lenta. Ela tem algumas letras mais rebuscadas, mas ganha tempo com os tês, os efes e os pês - emotiva. Engraçado, emoção e razão estão brigando. A área superior está bem balanceada em relação a área central. Uma boa proporção entre os tês e os emes, eu diria - equilibrada. Essa área central diz que ela gosta de chamar a atenção.
- Humm, essa parte inferior invade a linha de baixo – ela é do tipo esportiva?. E esses laços rebuscados dos efes? Aí tem. Essa menina esconde algumas taras. As maiúsculas são bem ornamentadas, com ênfase no lado esquerdo - vaidosa e egoísta. Esses ornamentos nos is e nos tês iniciais denotam certa imprudência. E o traço extra no a maiúsculo confirma a meticulosidade.
- Agora vamos aos as e aos os minúsculos. Bem fechados - cautelosa. E os dês e gês? Esse laço no gê a entrega - impulsiva. O seu i maiúsculo é original. Não dá para dizer muita coisa. Esses pingos nos is minúsculos, à direita da letra, mostram entusiasmo e rapidez. Esse traço ornamentado no tê maiúsculo é sinal de mau gosto. E o corte nos tês minúsculos mostra ambição, agressividade.
- Resumindo: a moça é impulsiva, mas sabe se controlar. Sociável, afetiva, mas ambiciosa e agressiva. Ela tem autoestima elevada, sabe o que quer e é do tipo esportivo, pensa rápido. Quer um palpite: ela tem fantasias em relação a você. Você era o destinatário do bilhetinho, que deveria ser anônimo. Ela agiu rápido e entregou esse rascunho, que deveria estar na agenda. Chame para sair e vê o que acontece. E depois me conta.
Ah,esse Oliveira...



quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte

Os Quinze

O espaço-tempo é relativo. De 12 anos até os 15 e dos 15 até os 17, decorrem décadas.  Equivalem à distância entre os 30 e os 40 ou entre os 40 e os 50. Por uma questão de proporção, é preciso escolher alguns anos mais emblemáticos, mesmo com o risco de deixar de fora eventos muito significativos. Como eu vou e volto nesse contínuum, ora visitando o passado com minha consciência presente; ora recuperando meus olhos de criança ou de adolescente; o que ficou para trás será retomado em algum momento, se valer a pena.
Os 15 são definitivamente um divisor de águas. Nesse ano, nasceu uma barba cerrada, que me permitia assistir os filmes de 18 anos. Deixei para trás aqueles vergonhosos 1,60 m. Emagreci. Entrei para o primeiro científico. Turma mista.
Deixei de ser um bicho do mato que sofria com as brincadeiras dos colegas mais velhos. A turma saia junta para beber, para as festas e excursões. Em vez de colecionar maços de cigarros, tornei-me um consumidor. As preferidas eram as cigarrilhas Vedete. Baratas e fáceis de serem escondidas. A primeira namorada só veio aos 17, mas as primeiras experiências sexuais, com a vizinha da minha avó, começaram nessa época. 
O que eu pensava das coisas em geral, da existência, do meu lugar no Universo? Lembro uma conversa embaraçosa com o Xexéu. O apelido era devido ao cabelo meio alourado e desgrenhado, parecido com a plumagem do passarinho. A turma era um zoológico. O Cobra era Cobra por força do sobrenome. O Bezerro, por ser a cria preferida da Vaca Holandesa, nossa professora de matemática. Que devia o apelido aos seus grandes olhos azuis e desesperados. E a uma certa pachorra bovina, com que reagia às brincadeiras pesadas da turma. O Bezerro tinha o cabelo curto e empastado – consequência das lambidas da Vaca. O Barrão era mais velho e ostentava uma pança digna de um porco novo inteiro. Acho que o zoológico terminava com esses espécimes. Havia o Buick, não sei por que cargas d’água. O Maranhão, por conta de seu estado natal. E eu, Garrafa, por conta dos óculos fundo de garrafa, graças a uma miopia que só me permitia contar os dedos da mão do oculista até um metro de distância.
Certo dia, eu havia passado na Biblioteca e descido a Bahia para o centro, com o Xexéu, que ia pegar o ônibus para Santa Tereza. Bem na Afonso Pena, onde íamos nos separar, ele me pergunta, sem maiores introduções: o que você acha do homem?
O Xexéu, Ferrugem ou Beatnik, tinha a cara dos anos sessenta: barbicha rala e óculos de intelectual. Era enturmado com a esquerda católica. Que, a essas alturas, estava deixando Maritain para trás e mergulhando em um humanismo mais engajado. Eu lia de tudo e não sintetizava nada daquela mistureba de Dostoievsky com Bertrand Russel. Em política, era contra os militares e os americanos e apoiava o socialismo, o que não queria dizer muita coisa. A maioria no Estadual pensava assim.
Eu queria ser livre, antes de mais nada. E mergulhar de cabeça nas novas experiências. Queria ser campeão mundial de xadrez. Queria dar uma carga de baioneta e morrer como um herói. Queria beber como um herói. Queria me envolver com uma daquelas heroínas de Dostoievsky, bem trágica.

- O que eu acho do homem? Eu gosto é de mulher. O resto da cena, piedosamente, se perdeu. Não sei como terminou aquela conversa constrangedora.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Meu 11 de setembro

Setembro de 1973, eu estava em São Paulo, clandestino. Enquanto isso, minha diretoria da UNE se dissolvia. Eu havia saído de Porto Alegre, depois de uma série de prisões. Fui primeiro para Caxias, onde fiquei na casa do Ernesto, velho militante do PCB.

Um dos temas, inevitável, de nossas conversas, era a situação do Chile. Minhas previsões eram pessimistas: o golpe era iminente. Seria uma reedição do golpe de 64. Mais um na série de golpes militares que assolaram o continente nos anos 70. Ernesto discordava. Segundo ele, eu não confiava na força da classe operária chilena. Não chegamos a um acordo.
Em São Paulo, ironicamente, eu fiquei numa pensão da Lapa, perto do aparelho do PC do B que seria estourado em 1976. Quando vi as fotos da sala, com o sofá e a mesa de centro, reconheci o local onde havia me reunido com parte do Comitê Central várias vezes, desde 1970.

(Foto da chacina da Lapa, com os corpos de Ângelo Arroyo e Pedro Pomar)

Da pensão de Dona Pierina guardo algumas lembranças. A dona, uma italiana que adorava Fernet, muito branca, com a pele macilenta. Um hóspede, negro, que curtia a novela O Bem Amado, que assistíamos na televisão da sala comum.
Estávamos em pleno governo Médici, na véspera da ofensiva final contra a Guerrilha do Araguaia. O PC do B estava sendo exterminado nas cidades. Em dezembro de 72, caiu o sítio em Jacarepaguá.  Onde eu havia me reunido algumas vezes com Lincoln Oest, Carlos Danielli e Guilhardini, do Comitê Central. Todos assassinados.
Lembro vagamente de um militante do Espírito Santo, que participou de uma dessas reuniões. Era o Foedes, que entregaria o sítio e o partido no seu estado. Miriam Leitão foi presa, em consequência dessa delação.
O Bem Amado, de Dias Gomes, era uma parábola sobre o poder. Falava do coronelismo, mas podia ser lida como uma crítica aos generais. Não me lembro do nome do meu companheiro de pensão, o negro que curtia a novela. Por um ou outro comentário, eu percebia que ele ia além de uma leitura imediata da trama.
Um dia de setembro, pela manhã, veio o golpe. Que assisti em preto e branco, narrado segundo a versão de Pinochet. Á noite a Junta Militar já havia assumido o poder. 300 mil pessoas foram presas, 35 mil torturadas, pelo menos 3 mil assassinadas nos primeiros dias do golpe e mais de 30 mil durante o regime Pinochet. Lembro de o negro ter comentado que Allende era um homem bom.
O Bem Amado virou uma série, em 1980. O Chile elegeu e reelegeu Bachelet, que foi para a clandestinidade, depois do golpe, sendo presa e exilada. O Brasil saiu do regime militar em 1985. Alguns dos militantes que participaram dessa luta estão de volta à cadeia. Dessa vez por corrupção. Houve um outro 11 de setembro, que ofuscou a queda de Allende.
Se a História se repete, é certo, com novos atores e novos enredos, temos que procurar o similar do impeachment de Dilma no impeachment de Collor. Dilma não é Getúlio, muito menos Jango, menos ainda Allende. O PT não é de esquerda e os militares estão nos quartéis (menos na Venezuela).
Eu também mudei, só não perdi aquela mania de me apegar à realidade, por mais que ela contrarie os meus desejos.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte, capítulo 6

A biblioteca
A Biblioteca Pública ficava na rota de saída do colégio. Eu descia a pé a Rua da Bahia, parava para devolver um livro e retirava outro. Lia num ritmo de uma página por minuto, praticamente um livro por dia. Todo Sherlock Holmes, todo Dostoievski, Allan Poe, Chesterton,  Aldous Huxley, Walter Scott e um monte de autores menores, ingleses e americanos. Voltaire e Bertrand Russell. Anatole France, Prosper Merimée e um monte de autores menores franceses.
Lia sem método, pulando estilos, países, sem recomendação de ninguém. Dostoievski me impressionou particularmente. Seus personagens torturados, perdidos. Adorava seus enredos melodramáticos, quase novelísticos, suas mulheres orgulhosas, que se humilhavam para provar sua superioridade moral. Eu as via pálidas, de grandes olhos, gargantilhas e camafeus, cabelos presos, saias negras até o chão.
Admirava suas discussões teológicas, seu eslavismo, sua exacerbação. Os nomes que eu pronunciava à brasileira (Karamazóv e não Karamázov), os estranhos costumes, os prédios com vários apartamentos, pequenos quartos alugados e um pátio. Era um escritor que contabilizava cada copeque. Dostoieviski  fazia questão de discriminar o valor em rublos de cada propriedade, o salário de cada pequeno funcionário, o valor de cada garrafa de vodka barata.
Estranhamente, nunca pensei em escrever. Acho que era muito crítico, tinha padrões muito altos. Detestava as aulas de português, a poesia e as redações obrigatórias. Gostava de fazer resenhas de livros. Na maior parte das redações, os meus colegas buscavam os efeitos fáceis, as descrições de paisagem com o sol sempre se pondo, ou nascendo. Eu fazia uma redação padrão, dissertativa, sem grandes voos.
Lembro-me de uma redação que fez sucesso na escola. O soldado, perdido do batalhão, no meio da neblina, escutando cada ruído. Era jovem, arrimo de família, não entendia o porquê da guerra, queria viver, aqueles clichês todos. Alto, quem vem lá! Era amigo. E tome discurso. Até o fim triunfal. Um estalo. Quem vem lá! Era o inimigo.
A maior parte de minha cultura inútil foi adquirida na adolescência. Adquiri a arte de pesquisar rapidamente um assunto, de estabelecer correlações e me tornei definitivvamente um autodidata. Meu vocabulário era enorme, possuía um conhecimento enciclopédico de países, cidades, costumes, moedas, etc. Karl May foi lido de cabo a rabo. Sabia os nomes dos animais amigos do Tarzan, as palavras da linguagem dos gorilas, um monte de expressões em árabe, as peças de uma armadura medieval e por aí vai.
Era o mais novo da turma, um dos mais baixos. Óculos fundo de garrafa, tártaro nos dentes, desajeitado. Não sabia dançar nem andar de patins e caia da bicicleta.. Tímido, poucos amigos, sofri nos primeiros anos com as piadas e as alusões sexuais que não entendia. O espelho era meu inimigo. Gordinho, feio, a testa curta, o nariz chato, o queixo redondo. Até chegar aos 15.



Trama

Trama


Novelo enrolado
No centro da trama, um gato
Desembaraçado

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A trilha Ho Chi Minh - segunda parte

A minha guerra era travada no alpendre da casa da minha avó. As bisnagas de colírio eram as B 52; as formigas cortadeiras eram as outras formiguinhas humanas, os vietnamitas. Como eu já revelei, um metro abaixo do parapeito, havia um ressalto que contornava toda a casa. Ele era usado como trilha para abastecer o formigueiro. O bombardeio de água não era letal. No máximo eu conseguia acertar em cheio uma formiga, com uma gota de água, arremessando-a uns dois metros abaixo, no chão do jardim. As bisnagas podiam dar rajadas (jatos contínuos) ou tiros (gotas). Eu preferia os tiros, a água durava mais e não eram tão impessoais. Às vezes eu perseguia uma formiguinha mais rápida, com tiros que iam deixando sua marca na trilha caiada. Ela se sacrificava para permitir que suas irmãs atravessassem com sua carga preciosa. Outras vezes, era mais científico: fazia uma barreira de fogo que detinha a coluna. O bombardeio durava horas. Ás vezes, um curioso parava no passeio, para ver aquele adolescente, de óculos fundo de garrafa, brincando como uma criança.
É engraçado como cultivamos alguns medos e aversões. Toda minha adolescência foi povoada de fantasias de duelos e de brigas, no melhor estilo dos filmes B. Uma coisa eu detestava nesses filmes: aquelas cenas de batalha em que a infantaria avançava com o passo cadenciado pelos tambores, passando por cima dos soldados que iam caindo, derrubados pela artilharia do inimigo. Se alguém tem um fuzil na mão, por que não atirar? O que tem na cabeça de um sujeito que vai para a batalha tocar tambor ou carregar o estandarte do regimento?
Nas poucas passeatas em que participei, ficava sempre na retaguarda, pronto a sair correndo. Não era só uma questão de medo. Uma vez participei de uma panfletagem no Mineirão. O Mineirão foi inaugurado quando eu estava no segundo científico, com um gol de Bugleaux. A panfletagem deve ter sido no segundo ou no terceiro científico. Lembro que o Xexéu (também conhecido como Ferrugem) participou de alguma maneira. Os panfletos eram guardados dentro da meia; uma folha de meio papel ofício, mimeografada. Não lembro qual era o jogo. Ações assim, individuais, em que eu “controlava” os acontecimentos eram excitantes. Mais tarde eu faria com prazer pichações e panfletagens noturnas.
Era difícil definir como eu encarava aqueles estudantes que iam à frente das passeatas; com as faixas, muitas vezes de braços dados, formando uma corrente. Na maioria das vezes eram os primeiros a apanhar de cassetete e não tinham muito para onde correr. Primeiras manifestações de individualismo? Eu me dispunha a levar o meu fardo na trilha, junto a outras tantas formiguinhas, mas nada de ir na frente.
O que eu fazia com 17 anos na casa da minha avó? Acompanhava minha mãe, que mais uma vez havia brigado com o meu padrasto. Nas horas vagas, comia a garota retardada do vizinho e estudava para o vestibular de engenharia. Consegui sucesso nas duas empresas: passei e engravidei a garota. Perdi a guerra contra as formigas. Os americanos também perderam a sua.


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - A trilha Ho Chi Minh, primeira parte

A trilha Ho Chi Minh
Sem querer, acabei abandonando o critério temporal em favor de uma abordagem temática: o colégio, os professores, o clube de xadrez. Essa escolha tem uma vantagem evidente, ela ressalta as invariantes e as transformações de meu caráter. Minhas obsessões e minhas escolhas.
A datação por artefatos, como método auxiliar vai perdendo importância, à medida em que aumenta a minha interação com o mundo exterior. A maior parte dos artefatos de minha infância e mesmo da adolescência não chegou até a idade moderna. O sabão Aristolino foi um dos que se extinguiram. Ficava em cima da pia de louça decorada, dentro de um globo de vidro preso por uma corrente. O líquido verde se acessava apertando uma peça de metal na parte de baixo da esfera. Mais uma espécie extinta: as caixas de madeira do Mate Leão, feitas de peças denteadas de madeira, que se prendiam por pressão e eram ótimas para se guardar bugigangas.

Gostava também dos potes de Rugol, um creme que minha avó usava diariamente, feitos de um plástico duro e com uma tampa de rosca toda decorada, como um camafeu. O creme parecia fazer efeito, pois ela chegou aos noventa com uma face de porcelana.
Alguns remédios, talvez mais eficazes, perduram: a Emulsão de Scott, ótima fonte de vitaminas A e D (eu adoro o seu gosto e parece que não mudaram muito o rótulo); o Polvilho Antisséptico Granado e as pastilhas Walda (tenho um monte de suas caixinhas de metal).
O Fercobre, que deixava os dentes pretos e era bom para anemia acabou. Seu sucessor, o sulfato ferroso, é um pó muito barato e sem graça, que nem embalagem tem. O avô de todos os fortificantes eram as garrafadas que o meu bisavô fazia: uma beberagem que vinha sempre com um prego enferrujado no fundo. Ao fazer um inventário destes produtos, percebo que as suas embalagens me atraiam muito mais do que o conteúdo, por mais virtuoso que ele fosse. Seria esta a minha primeira manifestação de formalismo?
O formalismo é o pior inimigo da arte socialista soviética. Seu perigo geralmente reside no fato de que ele oferece aos agentes fascistas, aos desprezíveis degenerados trotskistas, aos renegados de direita e a todos os inimigos do povo a possibilidade de difundir ideias antissoviéticas e contrarrevolucionárias, sob a capa de infinitas maquinações, manobras e “valores estéticos” independentes. (Revista Teatr, 1937)
Uma coisa é certa, eu adorava as bisnagas de plástico do Colírio Moura Brasil. Nunca usei o seu conteúdo. Pelo contrário, às vezes acabava com ele mais rápido para poder usar a bisnaga. Elas tinham um bico de plástico com um furo muito bem dimensionado. Quando cheias de água seu jato ia longe e não se dispersava. Era ótimo para produzir rajadas de metralhadora nas paredes caiadas de rosa.

A trilha Ho Chi Minh é fácil de ser datada. Foi no ano em que fiz vestibular. A guerra do Vietnã estava no auge. Os vietnamitas usavam uma trilha no meio das selvas, através do Cambodja, para abastecer os guerrilheiros que lutavam no Vietnã do Sul. E os americanos os bombardeavam diariamente, com suas B 52, que eram inacessíveis aos poucos Mig 17 e 21 do Vietnã do Norte. Os armamentos eram transportados individualmente, nas costas dos soldados, como numa enorme correição de formiguinhas. Um ano depois, houve a ofensiva do Tet, o ano lunar chinês. Fiz meu primeiro poema concreto, que me deixou muito orgulhoso.   

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - Capítulo 4, continuação

O Clube de xadrez - última parte


Nas partidas amistosas, os trocadilhos e as provocações se cruzavam, como num jogo de truco:
- Isso não é cavalo, é um pedaço de pau!
- Isso não é bispo, é um peão grande!
- Aceita tablas? - só se empatava (entablava) em espanhol.
 Jaque! - os xeques eram dados com o jota bem escarrado.
O espanhol era a língua do xadrez. Influência dos livros vendidos na Livraria Científica, onde o Cota trabalhou. Até o dia em que meteu uma bala na cabeça por causa de uma mulher.
O abandono da partida era uma marca individual: os mais dramáticos deitavam o rei sobre o tabuleiro. Havia gradações: uns derrubavam a peça com raiva, outros a mantinham presa pelo cocuruto com o indicador e só faziam uma leve reverência ao adversário. Os discretos apenas paravam o relógio, igualando a altura dos dois pinos. Os amantes do suspense escreviam abd. (Abandonam) na planilha e depois apertavam a mão do adversário. O aperto de mão final era praxe, algo como o abraço dos dois boxeadores depois do combate. A diferença era que, aqui, a iniciativa devia partir sempre do derrotado. O abandono mais espetacular que eu já vi foi num torneio em São Paulo, em que o perdedor varreu o tabuleiro com as duas mãos, que se fecharam com uma porção de peças no meio do tabuleiro. Depois elas foram largadas, deixando a posição completamente destroçada. O perdedor se levantou e saiu, sem assinar a planilha e sem cumprimentar o adversário. Mas isso é muito raro. Eu, particularmente, preferia pular as etapas, erguer a cabeça para o adversário e apertar a sua mão.  Quem tem uma posição ganha, está espreitando esse momento, tentando adivinhar quando e como será o abandono.
Outra regra de etiqueta, que o capivara ignora solenemente, é que não se deve prosseguir uma partida totalmente perdida, até ficar sem todas as peças ou levar mate. Entre mestres, a vantagem de uma peça, sem compensação, já é suficiente. É, é obvio, um mate forçado. Não se deve insultar o adversário presumindo que, depois de jogar melhor o tempo todo, ele não verá um lance idiota. Uma das lições mais amargas do xadrez é essa: saber quando é a hora de desistir, de reconhecer que a partida acabou.





Infelizmente um acidente me impediu de continuar frequentando o Clube. Escolhi a sua sacada para uma panfletagem. Os panfletos subiram na pasta da escola e no horário marcado, seis horas da tarde, quando eles deveriam chover sobre todo o centro, não foi difícil chegar até a sacada sem ser notado.  Eu levava dois maços de quinhentos panfletos mal cortados, impressos em mimeografo Gestetner, com a tinta ainda úmida. Com medo de ser visto pelos freqüentadores do clube, fui atirando os bolos rapidamente, torcendo para eles se abrirem e se espalharem. O último não abriu e os panfletos desceram unidos. A parábola terminou em cima do teto de um carro estacionado, a força do atrito quase não diminuiu a aceleração e o barulho chegou até lá em cima. Felizmente não houve vítimas fatais. A polícia subiu pouco depois que eu desci pelo elevador e até hoje eu sou lembrado como o cara que quase fechou o Clube de Xadrez de Belo Horizonte.
A essa altura, eu sabia que a Revolução era o grande jogo - o pôquer da política. Eleição, reforma, isso é buraco, jogo de mulher prenha.  No xadrez, cada jogada é condicionada pela anterior e as forças vão se exaurindo, à medida que as peças são tomadas. Uma grande inferioridade estratégica é irreversível, pelo menos numa partida bem jogada. No pôquer, cada mão é uma nova história. E você pode comprar mais e mais cacifes. Basta ter culhões.
O que os bolcheviques fizeram na Rússia foi persistir no jogo, minimizar as perdas, manter a perspectiva e não afinar nunca. Quando chegou a grande mão, quebraram a banca e acabaram com o jogo. Isso também é conhecido como tomar o bonde da história. O bonde demora e não passa duas vezes. Ou, pelo menos, eu pensava assim.






quarta-feira, 27 de julho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - Segunda Parte,Capítulo 4

O Clube de xadrez


O Clube fica na Curitiba, esquina com Carijós, no décimo terceiro andar. Como o alvará também permite jogos de cartas, quem é viciado em xadrez, assim que sai do elevador, vira à direita; quem vai jogar baralho vira à esquerda. A entrada dá para um amplo salão, cheio de mesas, com uma pequena sacada.
É o único clube da cidade. A elite enxadrística mineira está ali: Eugênio German, que participou da Olimpíada de Helsinque em 1952 e que tem norma de Mestre Internacional; Marcio Miranda, Jarbas Ladeira, Ruillon e os irmãos Entin: Isac e Boris. O primeiro conhecido como Isaquentinho. E o Cotta, naturalmente, vulgo Tampinha. Eu frequentava o clube para jogar relâmpago com um colega de Estadual, o Ronaldo. De vez em quando, participava de um lance do mestre, ou de um campeonato colegial.
O xadrez relâmpago, ou ping-pong, é disputado com um tempo de cinco minutos para cada jogador. O relógio de xadrez é composto por dois relógios independentes, montados numa caixa comprida, no formato de um tijolo. Cada um desses relógios tem um pino na parte de cima da caixa. O pino levantado indica que o tempo de quem tem a vez está correndo. Depois de fazer sua jogado, o jogador bate no pino, que se abaixa e para o seu relógio. Automaticamente, o pino do outro relógio se levanta e assim sucessivamente.
Cada mostrador tem uma bandeirinha vermelha móvel, bem na parte de cima - a seta. Ela é levantada pelo ponteiro de minutos. No exato momento em que a hora termina, o ponteiro ultrapassa a bandeirinha, que, sem apoio, cai. É o fim da partida.
A primeira solenidade é o acerto dos relógios. Um dos jogadores coloca cinco para as dez, nos dois mostradores e apresenta o relógio para o outro conferir. As mãos são apertadas, ambos se desejam boa sorte e o duelo começa. O grito de “a seta caiu” significa a derrota, não importa a posição que esteja no tabuleiro. O Ping é a coreografia perfeita para o Bolero de Ravel, o ritmo marcado pelo ruído seco dos tapas na caixa do relógio. A porrada ajuda a intimidar o adversário e favorece a caída da seta. O cabelo dos jogadores vai se eriçando; o cigarro derrama cinza por todo o tabuleiro e as caretas de dor ou de alegria ilustram o desenrolar da partida.
Numa partida de campeonato, o ritmo é menos frenético, um adágio lento. Os gestos são mais largos e demorados. Para se colocar um cavalo numa casa forte, o movimento próprio é o de atarraxar. Uma ou duas atarraxadas são suficientes para sublinhar a importância da casa conquistada.  Steinitz disse: - quando eu coloco um cavalo em 6R, posso ir para casa, porque o resto da partida se joga sozinho! As peças são tomadas com um movimento de varrer, em que a base de uma bate na base da outra. Imediatamente, as duas são agarradas e levadas juntas para fora do tabuleiro. As vítimas ficam amontoadas na borda da mesa, de preferência cada peça branca ao lado da peça negra equivalente. Isso facilita o trabalho do sapo, que, com uma olhada, já sabe quem está ganhando. Ou pensa que sabe.
As torres se movem na primeira fila empurradas pela lateral do dedo indicador, que alisa carinhosamente o tabuleiro, prolongando o suspense. Tarrasch dizia: - quando estiver em dúvida sobre qual torre colocar em uma coluna, se a da dama ou a do rei, analise criteriosamente a posição, veja qual é a jogada mais lógica e faça a outra! Os bispos percorrem sua diagonal com um movimento acelerado, freando em cima da casa ocupada. São peças de longo alcance, morteiros que podem atingir o outro lado do tabuleiro. Os cavalos devem saltar graciosamente, provocando a infantaria inimiga. Os meus costumam ficar com o focinho virado para trás, para oferecer a menor área possível à visão do inimigo. Tudo isso, para ser executado com perfeição, exige peças do modelo Stauton.
A dama adversária é tomada com um movimento de agarrar, em que os cinco dedos se fecham sobre a rainha, escondendo-a. Eu tentava inutilmente copiar o movimento dos grandes jogadores, treinando o modo certo de rodar o peão, preso pela pinça do polegar e do indicador. A base larga, com a sacudida inicial, deve fazer um giro de 180 graus, para, depois de outro impulso, completar a volta. Todas as peças vêm com um peso de chumbo na base. Como a base do peão é bem larga, em relação à sua cabeça, a rotação gera um grande momento angular, que pode determinar a fuga do peão pela tangente. O final da trajetória pode ser o outro jogador, ou, o que é pior ainda, em cima do tabuleiro. É um movimento de grande responsabilidade, que poucos dominam.



terça-feira, 26 de julho de 2016

Dicas de viagem - Paris

Paris tem um excelente sistema de metrô, que cobre todas as áreas relevantes para o turista. É rápido e barato. Outro boa pedida é o Batobus, um passeio de barco pelo Sena, com 9 paradas. Com o bilhete dá para descer e subir à vontade nos pontos de interesse. Você pode começar, por exemplo, pela Torre Eiffel. Subir até o topo, comer no restaurante ou no bistrô, tirar muitas fotos e embarcar no próximo barco.




A próxima parada é o Cais D'Orsay, bem em frente ao museu D'Orsay. Outra visita obrigatória. Essa merece no mínimo a metade do dia, senão o dia todo. Adiante, SainGermain de Prés, Uma boa pedida para uma caminhada pelo bairro. Depois, a Notre-Damme. Obrigatória, é claro.. Antes de o barco retornar, o Jardin des Plantes, para os amantes da natureza.
Depois, o Hotel de Ville e o Louvre. O Louvre é visita de um dia, no mínimo. Nos Champs-Elysées, outra caminhada, que pode ir até o Arco do Triunfo ou, na direção da Praça da Concórdia, até a Galeria Lafayete. Não recomendo comprar o bilhete de dois dias. O melhor é escolher umas duas ou três paradas previamente, almoçar pelo caminho e aproveitar para conhecer alguns pontos e tirar algumas fotos.
Os ônibus também são rápidos e baratos.De onde eu fiquei, até o Arco do Triunfo, pela linha 31, eram uns 15 minutos. O problema é que os motoristas não curtem dar informações em inglês e meu francês é rudimentar. Nesses casos, o melhor é começar com o francês que se tem e esperar que ele mesmo passe para o inglês. 




sábado, 16 de julho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte, terceiro capítulo

A cola
“ Quem não cola, não sai da escola”. É mais justo inverter a frase e dizer: quem saiu do Estadual, já colou. As exceções são as de sempre e servem para confirmar a regra: os dois ou três CDFs que havia em cada sala. Esses não colavam porque não precisavam. Havia ainda os objetores de consciência, que diziam:
- Quem passa colando irá fracassar mais tarde, quando precisar mostrar seu conhecimento, porque não aprendeu nada – só faltava acrescentarem – foi mamãe quem disse.
Eu sei que isso não é verdade por experiência própria. O conhecimento que fica é aquele básico, que foi sendo acessado e indexado pelo uso. Quando for necessário um conhecimento mais aprofundado, basta saber onde procurar. Ou então usar o método de convergência rápida - perguntar para quem sabe. Além disso, como diriam os pedagogos modernos: a cola também é um momento de aprendizagem.  Seria mais legal se os objetores dissessem que não se deve colar porque é feio, é pecado, Deus castiga, ou qualquer coisa no estilo.  Mas, em geral, a maioria colava. Embora a maioria também achasse que não era certo fazê-lo.
A modalidade básica era consultar o livro ou o caderno debaixo da carteira. Como o tampo encobria a visão do professor, sempre havia a possibilidade de fechá-los com um rápido movimento. Depois era preciso morrer negando. A melhor colocação para essa prática era na fila imediatamente em frente ao tablado, junto a janela. As manobras anti-cola do professor eram igualmente simples: caminhar de lá para cá, em frente ao quadro negro, ou ficar parado no fundo da sala. Os mais sádicos preferiam deixar o aluno iniciar a consulta, esperar que esse se empolgasse e depois surgir de surpresa, atrás da carteira. Mas só os amadores caiam nessa.
Para os iniciantes, a cola em papel, passada pelo colega de trás era mais garantida. Ela podia ser colocada no meio das folhas de papel almaço e consultada com calma. O sopro também era bastante efetivo, mas tinha um alcance limitado. Servia mais para lembrar um nome, na prova de história, ou dar o resultado de um problema, na prova de matemática.
O que garantia o resultado era a cara de pau, o olhar perfeitamente inocente, perdido no ar. Quando o colador surpreendia o professor encarando-o, sempre funcionava dar um sorriso cúmplice, como se estivesse curtindo a prova ou acabado de descobrir a pegadinha.
Há muitas lendas sobre o professor que ficava lendo o jornal e fazia um furo de cigarro para poder flagrar os alunos. Os óculos escuros espelhados eram  mais efetivos e não comprometiam a dignidade do mestre. Eram usados pelo nosso professor de Ciências e o resultado era intimidador.
O verdadeiro profissional, levava a cola pronta. Diga-se de passagem, que sempre que alguém mencionava a palavra cola, era corrigido: cola não, lembrete para a prova. A televisão era a forma mais elaborada dessa arte. Numa caixa de fósforos, sobre dois paus atravessados de lado a lado, era colocada uma tira de papel movida manualmente. O modelo mais sofisticado envolvia uma propulsão automática, à base de gominha, mas eu nunca consegui o segredo de sua fabricação.
Em compensação, desenvolvi um modelo próprio, com tiras bem finas e compridas. Elas eram dobradas ao meio, no sentido do comprimento e depois mais uma vez ficando em formato de seta, como quem vai fazer um avião de papel. Dava um pouco de trabalho, mas era possível folheá-lo, com se fosse um pequeno livro.
No último ano eu simplesmente trocava de prova com um colega, ou então fazia a cola sincronizada. Cada vez que o professor passava pela minha fileira e me dava as costas, eu consultava o lembrete. Quando as coisas estavam apertadas, nós fazíamos uma junta de alunos, que ficava lá embaixo, mandávamos a prova para fora da sala, e depois recebíamos as provas já feitas. Uma dessas, que ficou na história, foi numa prova de matemática. A professora, desesperada, não deixava ninguém entrar na sala. Colocamos o maço dentro da capa de um disco e pedimos para um aluno de outra sala que fosse devolvê-lo. Funcionou.
De qualquer maneira, a minha carreira se deve muito mais ao acaso do que a uma verdadeira vocação. O professor de latim era o Sardinha: Latim é língua morta e Sardinha é peixe fresco. Eu detestava aquelas declinações e estava sem média na matéria. Rosa, rosa, rosae ... e acabou o meu latim. Pedi a um colega que já havia entregue a prova, que me passasse a sua televisão. Minha cara deveria ser de culpado e eu me distraí consultando o lembrete. Tomei um susto quando o professor me chamou e pediu que trocasse de carteira. Poderia ter me dado um zero, com direito à suspensão. Saiu barato. Joguei  a televisão para debaixo da carteira, mudei de lugar e voltei a suar com as declinações. Me ferrei, é claro. Aquele foi um momento crítico:se houvesse sido punido, não teria continuado a colar. Daí para a frente, aprendi a dominar os nervos e fui me aprimorando na arte.



sexta-feira, 15 de julho de 2016

O Engavetador

Prezados leitores de A Província de Minas, todos os domingos, a partir de hoje, teremos neste espaço uma crônica de Jota Cê. Conhecido como o Quixote das letras mineiras, ele aqui estará, quebrando as lanças de sua irreverência contra os moinhos de vento do nosso cotidiano.

O engavetador

Jota Cê

            “O tempo ruge!” E nos devora também, acrescenta este escriba. Tudo começou com uma intimação do Leão. Não se assustem, não era  um devorador de cristãos, como aqueles do Coliseu. Ou melhor, podem se assustar, porque era uma fera mais voraz ainda, o Leão da Receita.
            O funcionário que me atendeu, muito solícito, me fez sentar numa cadeira em frente à sua mesa e de repente me mandou de volta àquele tempo mágico da infância:
            - E aí Cobra, o que é que manda?
            Antes de prosseguir sou obrigado, amável leitor, a compartilhar um terrível segredo com vocês. Não, as minhas declarações estão perfeitamente em ordem, mas o Jota Cê que assina esta crônica, na vida civil, atende pelo nome de Júlio Cobra.
-          Andorinha!
Era ele mesmo, o Isidoro. Na quarta série do ginásio ele ganhou dez centímetros de altura e um vasto bigode, que carregava quase envergado. Só encontrei um apêndice capilar à sua altura, muito mais tarde, quando fiz meus primeiros contatos com Nietzsche.
A professora de matemática, a Vaca Holandesa, como era chamada, se assustou com aquela aberração, no meio de um bando de adolescentes imberbes.
-          O que é isto no seu rosto, menino?
- Ele engoliu uma andorinha, professora, e ficou com as asas de fora (eu sempre chuto de primeira) - daí em diante ele se tornou o Andorinha.
O que há num nome? Um Andorinha apenas fez voltar a aurora da minha vida, a minha infância querida, que os anos não trazem mais... Éramos inseparáveis em tudo - vizinhos de quintal, fizemos o primário na mesma sala. Adeptos da escola peripatética, aproveitávamos a caminhada de volta para longas discussões literárias.
Seu pai sempre nos esperava à  saída do Instituto de Educação. Ele ia atrás de nós, carregando as nossas pastas e dando uns grunhidos para chamar o filho, quando ele se desgarrava. Muitas vezes a literatura era deixada de lado, para que pudéssemos chutar uma tampinha, comprar um picolé, ou outra ocupação igualmente importante.  Uma de nossas febres literárias foi o gibi do Flecha Ligeira. Nesta época cada familiar ou amigo ganhou um nome de pele vermelha e o pai de Isidoro, com o seu andar pesado e bamboleante, só poderia ser Urso Velho.
Éramos garotos normais, de jogar bola, soltar papagaio e brincar de bolinha de gude. Era a paixão pela leitura que nos fazia inseparáveis. Líamos de tudo, inclusive as revistas de foto-novela da empregada, que eu surrupiava do esconderijo embaixo do colchão.
Numa daquelas caminhadas de volta da escola, Andorinha, que ainda era Isidoro, veio com a descoberta definitiva:
 - É muito fácil saber quem vai ficar com quem numa foto-novela. Esqueça a história. É só olhar para as fotos em close dos dois personagens. Se eles estiverem de perfil, um olhando direto para o outro, com aquele olhar de peixe morto, no final acabam juntos. Mas se um estiver de frente e o outro de perfil, então nada feito.
Fui conferir e era verdade. Ora o vilão estava de frente, com um sorriso maquiavélico, enquanto a mocinha, de perfil, fazia uma cara de pastel. Ora era a mocinha que olhava para nós, como se estivesse com dor de barriga, enquanto o vilão ficava de perfil, com cara de tesão recolhido. Os heróis sofriam o tempo todo, mas apareciam mais em close, de frente ou três quartos, sérios que nem criança cagada. Já os vilões eram mais divertidos e se davam bem a maior parte do tempo. Em compensação, tinham menos closes. Este foi o meu primeiro contato com a metalinguagem.
Mais tarde a paixão pela leitura virou paixão pela escrita. Eu publicava no mural da sala, no jornalzinho do grêmio, onde desse, aqueles textos impublicáveis, que até hoje me perseguem. Andorinha, que não era mais Isidoro, ia engavetando as suas obras. No máximo, as mostrava para mim. Eu era o escritor e ele o engavetador.
A vida nos separou, por um motivo qualquer, o tempo passou e Andorinha, que voltou a ser Isidoro,  não é mais aquele galã. O bigode já se foi há muito tempo. Quando foi buscar o meu processo no armário, reconheci nele os passos do Urso Velho. O talento literário, se não se perdeu, só se exercita nos despachos que profere.
- Não mudei muito - brinca, talvez percebendo a minha expressão. - Ainda sou um engavetador - abre a gaveta de sua mesa e me mostra a sua mais nova produção: uma pilha de processos.
- Este é o meu estoque regulador. Eu sou um funcionário movido à pilha: quando a pilha de processos está alta, eu acelero; quando está baixa eu freio e quando falta serviço, desengaveto o estoque – e concluiu com o seu programa de vida:
- Minha meta é viver até os 150, ou morrer tentando. Um terço de minha vida já foi para o saco. Agora só me restam uns cem anos pela frente, até entrar em equilíbrio térmico com o Universo.
- Ele não concluiu, amável leitor, mas eu me permito fazê-lo: o tempo mata e cedo ou tarde ele vai nos consumir - enquanto isso, vamos matando o tempo.


Carta para a redação

Na semana seguinte, a seção Carta dos leitores recebeu a seguinte correspondência:
Prezados senhores,
Muito interessante a crônica de estréia de Jota Cê, O engavetador. Gostaria de fazer alguns reparos. É claro que o material ficcional não admite correções factuais. Portanto, chamarei as minhas observações de contribuições críticas.
a) Não sei porque o autor insiste em se chamar Júlio Cobra, ignorando a sua certidão de nascimento, onde consta João Cobra. Mas não vamos crucificar mais um Jota Cê. Afinal o que há num nome?
b) Jota Cê nunca resistiu aos trocadilhos, às paródias, aos pastiches e a outras formas de humor baixo. Neste caso quis fazer verão com uma só andorinha. Registre-se, a bem da verdade, que a personagem do engavetador, calcada em pessoa ainda viva, tinha outro apelido, talvez menos literário: Escovinha. O fato é que, quando a Vaca Holandesa fez a fatídica pergunta, alguém (se não me falha a memória, foi o Barrão) comentou em voz baixa:  isto não é bigode, é escova de dente de empregada doméstica.
A Vaca tinha grandes olhos azuis, com aquela expressão triste de quem vai para o matadouro. Gerou um filho, o Bezerro, seu aluno predileto, que tinha o cabelo tão lambido que parecia sua cria. Barrão é um grande porco capado. O nosso só tinha em comum com a espécie, a pança bem socada;
c) os textos de Jota Cê eram realmente deprimentes. Infelizmente não se perderam. Há, nos meus arquivos implacáveis, material suficiente para reconstituir os primeiros passos de nosso Quixote;
d) quando fala em “algum motivo qualquer”, referindo-se às circunstâncias que nos separaram, ele consegue se superar em matéria de eufemismo. Na verdade, foram dez anos de clandestinidade e algumas prisões que nos afastaram. Foi “este motivo qualquer” que manteve os meus textos engavetados, enquanto o Quixote ia publicando suas choradeiras sentimentais e individualistas;
e) já no terreno propriamente estilístico, selecionei alguns dos adjetivos que o autor esparramou pelo texto - fera voraz, funcionário solícito, apêndice capilar, vasto bigode e adolescente imberbe, dentre outras pérolas. Aliás, louve-se o seu esforço em reviver estas expressões do tempo do onça;
f) por último, o Urso Velho leu a crônica e comentou:  eu sabia que aquele menino não ia dar boa coisa. O meu chefe está me olhando de banda e eu voltei a ser o que nunca fui, Andorinha. Agora, na repartição, só me chamam assim;
g) de qualquer maneira, foi muito proveitosa a leitura de sua crônica - descobri que o tempo passa e que a gente envelhece. Espantoso. Ainda bem que o autor resolveu ficar na crônica e desistiu dos contos e romances que publicava, sempre às suas custas e sempre com prejuízo. É melhor mesmo não tentar vôos literários mais altos, porque Deus não dá asa à Cobra. Desculpem, mas eu também chuto de primeira.

Marco Lisboa

terça-feira, 12 de julho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte

As salas de aula

As salas do Estadual eram retangulares, na justa medida de cinco colunas de 6 carteiras. Cada carteira era um conjunto inteiriço, composto de uma cadeira, com assento dobrável, feito aquelas de cinema, e uma mesa, um tampo com um espaço em baixo, onde ficavam os livros e as colas. A parte de cima tinha uma ranhura onde se colocavam os lápis, e uma abertura redonda, supostamente destinada ao tinteiro, que servia para sumir rapidamente com os papeizinhos comprometedores, que às vezes circulavam pela sala. No fundo eram perfeitamente inocentes - alusões à cor da calcinha da professora, a uma colega que estava de paquete, coisas assim.
Mesa e cadeira eram unidas por duas tiras de madeira laterais, que facilitavam o deslizamento sobre o chão de tacos. Uma carteira bem impulsionada podia atravessar a sala inteira, mas as alterações do padrão retangular eram raras. Um ou outro professor experimentava colocá-las em círculo, sempre com péssimos resultados pedagógicos.
 Este número de trinta alunos por sala define a fronteira entre um ensino de qualidade, embora restrito, e um ensino de massa, de pouca qualidade. Trinta era o número máximo que um professor podia controlar, do alto do seu tablado. As escolas públicas eram frequentadas pela elite, que, democraticamente, passava por um exame de admissão. Alguns alunos mais carentes conseguiam passar por essa peneira. Eu era um típico representante da maioria, formada por alunos de classe média. Filho de professora, casada com funcionário público.  A elite preguiçosa ia para as escolas particulares, também conhecidas como boates ou PP – pagou, passou.

No terceiro ano científico, ocupava sempre a última carteira da primeira fileira do lado da porta. Eu usava um caderno de capa dura, que era arremessado contra as costas da cadeira e servia para marcar o meu lugar. Ele assistia a quase todas as aulas, enquanto eu jogava xadrez, no salão do barbeiro. Um tabuleiro só, para toda escola.
No canto esquerdo da sala, junto às janelas, havia um tablado, um quadrado onde ficavam a mesa e a cadeira do professor. Seus domínios compreendiam uma área de circulação em frente ao quadro e os corredores entre as filas de cadeira, por onde ele costumava transitar nos dias de prova.
O nosso professor de Geografia da quarta série, Juscelino Betâmio Paraíso, fazia questão de realçar a diferença entre os dois níveis com seus sapatos 44 bico largo. Ele parava na quina do tablado, um meio pé para fora e depois escorregava com um ruído seco, que marcava o exato momento em que os saltos conseguiam se livrar da borda. Isso exigia a inclinação certa do corpo, não tão à frente que ele se estabacasse, e nem tão tímida que o deixasse engastalhado. A componente do peso na direção do movimento era exatamente igual à força de atrito estático. O suspense servia para sinalizar os pontos mais importantes da matéria.
O material de geografia era uma caixa de lápis, borracha e um livro para colorir. As notas eram proporcionais à maestria em preencher as ilustrações. Uma das páginas trazia o sistema solar; uma bola gigantesca, o Sol, e outras nove, os planetas: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. Não esqueço um Sol em tons avermelhados, com gradações de preto, marrom, amarelo e laranja, cuspindo chamas, uma esfera quente e turbulenta. Obra de uma menina. Elas levavam lápis cera, algodão para passar em cima das raspas de lápis, papel de seda e outros acessórios. Nós não éramos páreo para elas.  Uma ficou famosa, gabada em todas as salas pelo professor: Hebe, a formiguinha. Ela tinha mesmo cara de formiguinha, o apelido não proveio de sua diligência. O resultado do método era um alto índice de retenção do conteúdo, a começar pelo nome do professor que persistiu, entre tantos outros, considerados ótimos mestres e que se perderam no anonimato.
Finalmente, é bom ressaltar que, embora as portas ficassem sempre fechadas depois que o Professor entrava, as salas não eram um sistema fechado. Todas tinham uma fileira de janelas ocupando a parede exterior. A parte de baixo, de vidro, era fixa e de cima, opaca era provida de amplos basculantes. A posição dos basculantes era tal que obrigava o aluno a se levantar da cadeira, se quisesse jogar alguma coisa pela janela. Isso significava, no mínimo, um olhar de reprovação do professor, que costumava interromper a frase, à espera que o aluno se sentasse. As janelas ficavam a uns quatro metros do chão do pátio.
Nos últimos anos do colégio, as turmas eram divididas em científico e clássico. Esse último abrigava alunos que fariam os vestibulares de Letras, Filosofia, Sociologia, História e outros cursos, com grande status intelectual e zero expectativa de retorno financeiro. Eram conhecidos como voadores, artistas ou fugidos da Matemática.
Para compensar o sucesso que eles faziam com as garotas, havia o Latim. No meu último ano de Estadual, uma turma do clássico ficou pendurada na prova final. Foi montada uma operação de guerra. Um aluno, que estava matematicamente reprovado, foi fazer a prova. Em pouco tempo, desceu com as questões, que foram divididas e repassadas para uma junta, espalhada pelos bancos da parte inferior da régua. Outra equipe preencheu as várias folhas de papel almaço, previamente assinadas pelos candidatos à bomba, com uma letra mais ou menos similar.
Terminadas as provas, elas foram enroladas, formando um cilindro que foi amarrado ao barbante lançado por uma das janelas. Um grande número de estudantes se reuniu na cantina, a borracha, de onde se podia ver a janela e ficou torcendo. O barbante tinha uma pedra amarrada, para dar estabilidade e marcar a altura exata em que um braço podia passar pelo basculante e alcançar o rolo. Em último caso, serviria para sumir com as provas comprometedoras, caindo com todo o aparato no pátio, fora da sala. As subidas e descidas da pedra, acompanhadas por ahs e hums, marcavam a maior ou menor vigilância do professor. Finalmente ela subiu aos arrancos e um braço rapidamente embolsou o rolo. A galera aplaudiu. Todos foram aprovados.






segunda-feira, 11 de julho de 2016

Johnie e Boneca

Esse conto é baseado nas cartas de amor de Einstein para Mileva. Esse trecho de  uma poesia de Fernando Pessoa foi o gatilho para publicar esse conto, que estava engavetado.

"Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas."

Johnnie e Boneca



Só seis alunos haviam se matriculado na Seção VI-A, Física e Matemática, da Politécnica. A relação estava afixada na entrada da sala, em ordem alfabética de sobrenome. O primeiro era Ehrat, eu vinha em seguida, depois Grossmann, seguido de Kollros. O último nome parecia sérvio e eu não tinha certeza de como  pronunciá-lo.
Ela entrou coxeando, em silêncio, e ficou nos olhando, com um ar severo. Quando comentei as minhas impressões de Mileva com Besso, fui cruel: coxa, gordinha e neurastênica. Eu nunca me engano em minhas primeiras impressões. Ela nunca soube desta conversa. Foi a minha primeira traição, a minha primeira mentira. No outro dia começou a loucura.
Lise, minha prima, ficou arrasada. A coitadinha me amava como um cachorrinho estabanado, que a todo instante tropeça no dono. Eu sentia sua falta, quando estava longe e me irritava com a sua adoração, quando estava ao seu lado. Sabia que ela me amaria de qualquer maneira, não importando o que eu fizesse.  Mileva era diferente, no início eu até pensei que poderíamos discutir Física de igual para igual.
Sempre fui fascinado pelos telhados vermelhos de Berna e recordo que, aquela noite, logo que saímos da aula, eles estavam grenás. Em breve, passariam pela cor daquele moscatel que era meu preferido, até se tornaram um corpo negro, opaco como fuligem. As silhuetas pontiagudas então se perderiam numa anônima massa escura.
As lâmpadas elétricas, que me lembravam os projetos frustrados de meu pai, felizmente haviam sido quebradas naquele trecho e o muro era baixo, fácil de ser pulado, mesmo para ela. A árvore era convidativa, o tronco inclinado e largo; o quintal estava deserto e a casa ao fundo parecia abandonada.
Depois de alguma resistência, os botões da blusa foram abertos um a um. Suspirou, quando a mão fez o primeiro contato. Era morno. Alguns beijos molhados e os dois pularam para fora. Os bicos eram rosa, muito pequenos; o branco se destacava contra a pele morena. A mão partiu em busca de novos territórios. A saia foi erguida e minha perna, entre as suas, garantiu a abertura de nova frente.
Depois de duas tentativas frustradas, mudei a abordagem.
- Como é que ela está? - minha mão estava por cima do vestido, pressionando o delta ambicionado.
- Ela quem? - pelo tom de sua voz, senti que a nova investida seria bem sucedida.
- A caixinha de veludo - Mileva gostou da imagem.
- Ela não tem nome?
- Boneca. A minha boneca - não sei de onde tirei esta!
- A boneca está com medo - é incrível como mulher adora estas criancices.
- Medo de quem?
- Dele.
- Ele não tem nome?
- Johnnie.
Endireitei o corpo e dei um pouco de espaço entre nós dois. A presa não ia fugir.
- Fale com ele - a minha mão precisou conduzir a sua. - Saboreei o susto que seus dedos denunciaram.
- Oi Johnnie - a pressão ainda era tímida. - Ela o tocava com os dedos esticados, sem segurá-lo.
E assim prosseguiu este diálogo a quatro, que terminou em gemidos e explosões, bem a tempo de escapar do guarda noturno.  Eu mal pude esconder o Johnnie, e tive que ocultar Mileva com o meu corpo. Ela conseguiu fechar alguns botões e descer a ampla saia sobre a confusão do campo de batalha. Ficou uma dúvida razoável na mente do representante da lei. Tivemos que deixar os nossos nomes, endereços e ocupações.
- Uma mulher estudante de Física! - nessa ele não acreditou.  A partir deste dia, em nossa correspondência, eu fui o Johnnie, e ela a Boneca. Antes de deixá-la na pensão, vieram as palavras inevitáveis:
- Eu te amo, Albert.
- Eu também te amo, Mileva.


O outono está chegando e eu passo horas andando pelo parque da Universidade de Princeton, procurando os vermelhos de Berna nas folhas caídas. As árvores estão perdendo seu verde escuro brilhante, bem diferentes das cores cansadas da Europa.
Já disse aos médicos que não quero fazer outra operação, sinto que o meu tempo está acabando. Pela primeira vez em minha vida, não tenho mais projetos. Meus pensamentos estão de volta àqueles anos em que era jovem e podia fazer qualquer coisa. A única pergunta que realmente importa agora é: será que fiz a escolha certa?
- Quem é mais importante para você? – Eu, ou a transformada de Lorentz?
Um dia eu não agüentei mais e disse a verdade. Ela adoeceu. Ou era isto, ou eu não teria desenvolvido a relatividade restrita. Valeu a pena? Por que eu estaria predestinado a ser Einstein e não Albert ou Johnnie?   Poderia ter levado uma vidinha burguesa, funcionário exemplar do Departamento de Patentes, pai amoroso de três crianças lindas. Poderia ter sido um violinista melhor, isso daria um toque de boemia.  A humanidade esperaria um pouco pela relatividade. Talvez não tivéssemos uma bomba atômica.
Não, não houve uma escolha. Eu sempre fui Einstein. Uma pedra que busca o seu lugar no Universo. Abandonado, eu caí em queda livre, rumo ao meu lugar natural. Sempre que penso em Mileva, não consigo fugir da analogia com a experiência de Rutherford: uma partícula alfa indo em direção ao núcleo de um átomo de ouro. No meu caso, a deflexão foi de 180 graus. Eu realmente odiei Mileva. Ela me deixou mais cínico, mais amargo. Casei-me com minha prima, cortejei a minha enteada, tornei-me Einstein. Um velho com a língua de fora, um ar bondoso e ao mesmo tempo desligado. Ascético e altruísta. Nada seria capaz de mudar está imagem, nem mesmo aquela carta que um dia escrevi, impondo as condições para voltarmos a viver na mesma casa.
“a) Você terá de se encarregar de que minha roupa esteja sempre em ordem, de que me sirvam três refeições diárias, de que meu quarto esteja sempre em ordem e de que ninguém mexa no meu escritório; b) Você deve renunciar a todo tipo de relações pessoais comigo, com exceção daquelas necessárias para a manutenção das aparências sociais. Não deve pedir que me sente com você em casa, que saia com você ou que a leve para viajar; c) Deve se comprometer explicitamente a observar os seguintes pontos: não deve esperar afeto de minha parte e não me reprovará por isso, deve responder imediatamente quando lhe dirigir a palavra e deve abandonar meu quarto ou meu escritório em seguida".
            Fui um tirano doméstico e um mau pai. Tive amantes ocasionais, e mulheres eternamente dedicadas a mim, que me endeusaram. Meu nome foi usado para justificar as piores políticas. Como cientista, mereço todas as estátuas e mais algumas. Valeu a pena?
 A luz do abajur     me incomoda, interponho a minha mão.  Nas suas costas vejo as veias saltadas e uma pele coberta de manchas senis. O quarto todo está escurecendo, os objetos vão perdendo o contorno e uma veia lateja em meu cérebro. Antes do fim, a minha mão enrugada se fecha sobre os seios mornos de Mileva.