Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

O Engavetador

Prezados leitores de A Província de Minas, todos os domingos, a partir de hoje, teremos neste espaço uma crônica de Jota Cê. Conhecido como o Quixote das letras mineiras, ele aqui estará, quebrando as lanças de sua irreverência contra os moinhos de vento do nosso cotidiano.

O engavetador

Jota Cê

            “O tempo ruge!” E nos devora também, acrescenta este escriba. Tudo começou com uma intimação do Leão. Não se assustem, não era  um devorador de cristãos, como aqueles do Coliseu. Ou melhor, podem se assustar, porque era uma fera mais voraz ainda, o Leão da Receita.
            O funcionário que me atendeu, muito solícito, me fez sentar numa cadeira em frente à sua mesa e de repente me mandou de volta àquele tempo mágico da infância:
            - E aí Cobra, o que é que manda?
            Antes de prosseguir sou obrigado, amável leitor, a compartilhar um terrível segredo com vocês. Não, as minhas declarações estão perfeitamente em ordem, mas o Jota Cê que assina esta crônica, na vida civil, atende pelo nome de Júlio Cobra.
-          Andorinha!
Era ele mesmo, o Isidoro. Na quarta série do ginásio ele ganhou dez centímetros de altura e um vasto bigode, que carregava quase envergado. Só encontrei um apêndice capilar à sua altura, muito mais tarde, quando fiz meus primeiros contatos com Nietzsche.
A professora de matemática, a Vaca Holandesa, como era chamada, se assustou com aquela aberração, no meio de um bando de adolescentes imberbes.
-          O que é isto no seu rosto, menino?
- Ele engoliu uma andorinha, professora, e ficou com as asas de fora (eu sempre chuto de primeira) - daí em diante ele se tornou o Andorinha.
O que há num nome? Um Andorinha apenas fez voltar a aurora da minha vida, a minha infância querida, que os anos não trazem mais... Éramos inseparáveis em tudo - vizinhos de quintal, fizemos o primário na mesma sala. Adeptos da escola peripatética, aproveitávamos a caminhada de volta para longas discussões literárias.
Seu pai sempre nos esperava à  saída do Instituto de Educação. Ele ia atrás de nós, carregando as nossas pastas e dando uns grunhidos para chamar o filho, quando ele se desgarrava. Muitas vezes a literatura era deixada de lado, para que pudéssemos chutar uma tampinha, comprar um picolé, ou outra ocupação igualmente importante.  Uma de nossas febres literárias foi o gibi do Flecha Ligeira. Nesta época cada familiar ou amigo ganhou um nome de pele vermelha e o pai de Isidoro, com o seu andar pesado e bamboleante, só poderia ser Urso Velho.
Éramos garotos normais, de jogar bola, soltar papagaio e brincar de bolinha de gude. Era a paixão pela leitura que nos fazia inseparáveis. Líamos de tudo, inclusive as revistas de foto-novela da empregada, que eu surrupiava do esconderijo embaixo do colchão.
Numa daquelas caminhadas de volta da escola, Andorinha, que ainda era Isidoro, veio com a descoberta definitiva:
 - É muito fácil saber quem vai ficar com quem numa foto-novela. Esqueça a história. É só olhar para as fotos em close dos dois personagens. Se eles estiverem de perfil, um olhando direto para o outro, com aquele olhar de peixe morto, no final acabam juntos. Mas se um estiver de frente e o outro de perfil, então nada feito.
Fui conferir e era verdade. Ora o vilão estava de frente, com um sorriso maquiavélico, enquanto a mocinha, de perfil, fazia uma cara de pastel. Ora era a mocinha que olhava para nós, como se estivesse com dor de barriga, enquanto o vilão ficava de perfil, com cara de tesão recolhido. Os heróis sofriam o tempo todo, mas apareciam mais em close, de frente ou três quartos, sérios que nem criança cagada. Já os vilões eram mais divertidos e se davam bem a maior parte do tempo. Em compensação, tinham menos closes. Este foi o meu primeiro contato com a metalinguagem.
Mais tarde a paixão pela leitura virou paixão pela escrita. Eu publicava no mural da sala, no jornalzinho do grêmio, onde desse, aqueles textos impublicáveis, que até hoje me perseguem. Andorinha, que não era mais Isidoro, ia engavetando as suas obras. No máximo, as mostrava para mim. Eu era o escritor e ele o engavetador.
A vida nos separou, por um motivo qualquer, o tempo passou e Andorinha, que voltou a ser Isidoro,  não é mais aquele galã. O bigode já se foi há muito tempo. Quando foi buscar o meu processo no armário, reconheci nele os passos do Urso Velho. O talento literário, se não se perdeu, só se exercita nos despachos que profere.
- Não mudei muito - brinca, talvez percebendo a minha expressão. - Ainda sou um engavetador - abre a gaveta de sua mesa e me mostra a sua mais nova produção: uma pilha de processos.
- Este é o meu estoque regulador. Eu sou um funcionário movido à pilha: quando a pilha de processos está alta, eu acelero; quando está baixa eu freio e quando falta serviço, desengaveto o estoque – e concluiu com o seu programa de vida:
- Minha meta é viver até os 150, ou morrer tentando. Um terço de minha vida já foi para o saco. Agora só me restam uns cem anos pela frente, até entrar em equilíbrio térmico com o Universo.
- Ele não concluiu, amável leitor, mas eu me permito fazê-lo: o tempo mata e cedo ou tarde ele vai nos consumir - enquanto isso, vamos matando o tempo.


Carta para a redação

Na semana seguinte, a seção Carta dos leitores recebeu a seguinte correspondência:
Prezados senhores,
Muito interessante a crônica de estréia de Jota Cê, O engavetador. Gostaria de fazer alguns reparos. É claro que o material ficcional não admite correções factuais. Portanto, chamarei as minhas observações de contribuições críticas.
a) Não sei porque o autor insiste em se chamar Júlio Cobra, ignorando a sua certidão de nascimento, onde consta João Cobra. Mas não vamos crucificar mais um Jota Cê. Afinal o que há num nome?
b) Jota Cê nunca resistiu aos trocadilhos, às paródias, aos pastiches e a outras formas de humor baixo. Neste caso quis fazer verão com uma só andorinha. Registre-se, a bem da verdade, que a personagem do engavetador, calcada em pessoa ainda viva, tinha outro apelido, talvez menos literário: Escovinha. O fato é que, quando a Vaca Holandesa fez a fatídica pergunta, alguém (se não me falha a memória, foi o Barrão) comentou em voz baixa:  isto não é bigode, é escova de dente de empregada doméstica.
A Vaca tinha grandes olhos azuis, com aquela expressão triste de quem vai para o matadouro. Gerou um filho, o Bezerro, seu aluno predileto, que tinha o cabelo tão lambido que parecia sua cria. Barrão é um grande porco capado. O nosso só tinha em comum com a espécie, a pança bem socada;
c) os textos de Jota Cê eram realmente deprimentes. Infelizmente não se perderam. Há, nos meus arquivos implacáveis, material suficiente para reconstituir os primeiros passos de nosso Quixote;
d) quando fala em “algum motivo qualquer”, referindo-se às circunstâncias que nos separaram, ele consegue se superar em matéria de eufemismo. Na verdade, foram dez anos de clandestinidade e algumas prisões que nos afastaram. Foi “este motivo qualquer” que manteve os meus textos engavetados, enquanto o Quixote ia publicando suas choradeiras sentimentais e individualistas;
e) já no terreno propriamente estilístico, selecionei alguns dos adjetivos que o autor esparramou pelo texto - fera voraz, funcionário solícito, apêndice capilar, vasto bigode e adolescente imberbe, dentre outras pérolas. Aliás, louve-se o seu esforço em reviver estas expressões do tempo do onça;
f) por último, o Urso Velho leu a crônica e comentou:  eu sabia que aquele menino não ia dar boa coisa. O meu chefe está me olhando de banda e eu voltei a ser o que nunca fui, Andorinha. Agora, na repartição, só me chamam assim;
g) de qualquer maneira, foi muito proveitosa a leitura de sua crônica - descobri que o tempo passa e que a gente envelhece. Espantoso. Ainda bem que o autor resolveu ficar na crônica e desistiu dos contos e romances que publicava, sempre às suas custas e sempre com prejuízo. É melhor mesmo não tentar vôos literários mais altos, porque Deus não dá asa à Cobra. Desculpem, mas eu também chuto de primeira.

Marco Lisboa

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