Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Todo gatinho é um poeta


Veja o vídeo nesse link:
Poesia




Todo gatinho é um poeta

Perseguindo um borboletema

Um fulgurante

Extravagante

Borbulhante

Poema



Um salto improvável

No hiperespaço

Num imponderável contrapé

No contratempo do compasso



A presa destroçada

A fugitiva borboleta

Agarrada

Despojada de seu brilho

Depois deixada

Na cama dum dono indiferente

A poesia



sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Discussões éticas

Calidoscópio


Festa na mansão do banqueiro Roberto Magalhães. Hora do presente. O pai, todo orgulhoso, entra de braço dado com uma louraça, a famosa Sunny Mexerica. No fim do decote da moça, pendurado num colar, a chave do Porsche vermelho que espera o herdeiro de dezoito aninhos, lá fora, na garagem.

- Pô, véio.... – o garoto não tem palavras.

- É tudo seu. Você vai adorar esta máquina... – eu mesmo já dei uma amaciada.O sorriso do pai é irresistível – os três riem. A vida é bela.



No barraco da Sunta, começa mais um dia. É dia de branco, como diz o Zezão. Dia de trampo. Para ela, que rala como gari, porque ele mesmo não faz nada. Minto. Passa o dia bolinando a enteada, que já está quase cedendo.

Enquanto passa o café, a menina se estica na ponta dos pés para vigiar a mãe se lavando, pela janela da cozinha. O tanque fica do lado de fora, o que dá a chance do Zezão segurar os peitinhos da garota. Sunta só pensa no fim do mês que não chega, no aumento que não vem. A vida é longa.



Na suíte presidencial do motel, o filho do banqueiro contempla o avião que está pousado na cama redonda. Cochicha alguma coisa no ouvido da Sunny.

- Isto não está incluído – ela ri, encorajando a insistência.

A negociação é breve. A cama é logo sacudida pelos arrancos do rapaz e pelos gemidos da moça, que agora não são tão fingidos como antes.

Sunny guarda o cheque na bolsa, enquanto, pelo celular, Dudu vai contando os detalhes para os amigos. A vida é dura.



O cheque e a Sunta acabam se encontrando, num meio fio. A moça, coitadinha, era tão distraída que não notou que ele caíra da bolsinha, na saída da loja. Atrás, estava anotado o telefone do Dudu. A ligação para o celular custou os últimos trocados da Sunta. Ainda bem que o garoto disse que pagava o táxi. O motorista só aceitou a corrida quando viu o valor do cheque. Quem atendeu foi o banqueiro, que dispensou a pobre, com uns trocados e um muito obrigado.

- Filho, precisamos ter uma discussão sobre ética. O cheque era ao portador e foi extraviado. Teoricamente, você não deve nada para a Sunny. O que você vai fazer? A vida é complicada.



O taxista ficou tão impressionado com a honestidade da Sunta, que acionou um amigo jornalista. No outro dia, a pobre foi foto de primeira página. A sorte do Dudu foi que ele havia ligado para a Sunny, dizendo que o cheque estava esperando por ela, na mesma suíte. Os sólidos princípios morais do pai haviam prevalecido.

- Obrigada, você é um cara legal, foi muito honesto. Semana que vem a gente repete. Por conta da casa...

Pena que todos os que olhavam para a cara da Sunta, sorrindo meio de banda, para esconder a janelinha nos dentes amarelos, só comentavam:

- Que idiota.

Um coroa, com cara de esperto, falava no meio de uma rodinha:

- O cheque não estava nem cruzado. Se não tivesse peito para descontar era só vender pros malandros. Logo ali, na esquina dos aflitos, tem quem compre. Pobre é burro mesmo. A vida é surpreendente.



Alguns dias depois, o Presidente recebia a Sunta no palanque. A cara estava cheia de rouge, para disfarçar a bifa que havia tomado do Zezão, quando ele soube da merreca que ela havia recebido para devolver o cheque.

- Se cada brasileiro fosse como esta mulher, este país seria diferente. É por isso que eu digo, nós não devemos nunca perder a esperança. A minha mãe....

A Sunta nem escutava. Ia repetindo consigo mesma que a vida era muito boa e que valia a pena ser honesto.

- Tomara que o Zezão esteja me vendo agora – pensou ela.

O Zezão não estava vendo nada. A televisão só estava ligada para disfarçar os gritos que enchiam o barraco. E não é que a enteada era cabaço? A vida é isso aí.





sábado, 12 de dezembro de 2009

Sublimação


Pipas, Portinari 1941

Sublimação

Os papagaios lá no céu
São amantes
Arrebatados pelo vento
Sobem aos trancos, desembestados
Depois pairam, saciados
Eu também fui assim
Veio alguém e me cortou

Marco Lisboa

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Crônica escrota

A crônica, por definição, já nasce meio anacrônica. Essa, por exemplo, foi escrita no auge de um daqueles escândalos habituais do governo Lula, no momento em que ele foi à televisão dizer que não havia ninguém mais ético do que ele.
Nesse momento, o escândalo da moda é o mensalão de Brasília. Dizem que a caixa da operação Pandora foi aberta para abafar denúncias ligadas a familiares do Presidente. Escândalo vai, escândalo vem, a crônica ganha nova atualidade.
Ética espartana



- Venha aqui, você precisa escutar essa. Era a mulher, que me chamava para ouvir o nosso Presidente na tevê. Devia ser daquelas cabeludas, porque ela sabe que eu não tenho paciência para vê-lo. Nem mesmo ouvi-lo, para ser sincero.

- Nunca, antes na história desse país, a coisa pública foi maltratada com tanta ética – dizia o nosso bouquirrouco presidente.

- Era só isso – disse impaciente. – Não, tem mais – disse ela. Com o nosso desdigitado presidente, sempre tem mais.

- No Brasil todos são inocentes, mesmo com prova em contrário. Os únicos inocentes propriamente ditos são os meus eleitores, que, na intimidade com a galega, eu chamo de inocentes úteis.

Não, ele não disse isso. É que, depois de tanto tempo observando a política dessa terra, fiquei extremamente versado em politiquês. À medida que vou escutando, o meu cérebro já processa diretamente a tradução.

Gostaria de aduzir algumas obtemperações à fala do trono. Depois que a biblioteca presidencial pegou fogo, eu só uso esse português rebarbativo em minhas crônicas. Assim não corro o risco dele me entender. A biblioteca era uma das sete maravilhas do mundo moderno. Nunca, antes na história da humanidade, houve uma biblioteca menor. Mesmo assim pegou fogo. A de Alexandria pegou, com seus milhares de pergaminhos, por que os dois livros (um de colorir e uma história em quadrinhos) não pegariam?

Não existe ninguém mais ético que ninguém, meu presidente. A lei, como Vossa Excelência não sabe, é um sistema coercitivo que é imposto pela sociedade aos seus membros. A ética, ao contrário, é um sistema moral que é adotado espontaneamente. O que existe é alguém que rouba mais que os outros. Esse é um critério objetivo: os valores são traduzíveis em moeda escorrente; as penas, que não serão cumpridas em celas especiais, podem ser comparadas.

Ia até me aprofundar nessas considerações, quando me veio uma revelação. O nosso presidente é mesmo muito mais ético do que eu. Ocorre que ele escolheu a ética espartana.

Explico. Em Esparta, para reforçar as virtudes militares, os jovens eram largados meio famintos no planalto, ou mesmo na esplanada. Tinham que sobreviver com o que conseguiam roubar. Tudo isso dentro da mais perfeita ética. Havia, porém, um detalhe: aquele que fosse pego roubando era considerado um canalha da pior espécie.

Conta a lenda que um jovem espartano roubou uma raposa. O dono quase o surpreendeu e ele foi obrigado a escondê-la dentro da túnica. O animal começou a devorar os seus intestinos, mas ele preferiu essa morte dolorosa à desonra.

Aqui no Brasil, os petistas famintos também foram abandonados nos cargos de primeiro e segundo escalão, para testar as suas virtudes militantes. Em algumas dessas repartições, só sobrou mesmo a raposa no galinheiro. O problema é que, quando um deles resolveu guardá-la na cueca, o berro foi ouvido até na Praça Vermelha.

Os espartanos tinham outras virtudes. Foram eles, comandados pelo Rei Leônidas, que detiveram os persas, uma espécie de tucanos da época. Aliás, sempre que alguém denuncia os crimes petistas (eles só podem ser acusados de infringirem a lei, já que, eticamente falando, são espartanos) é chamado pejorativamente de tucano. Embora, para todos os malfeitos práticos, os persas e os espartanos sejam muito parecidos, o povo continua confiando no nosso presidente. Para eles, tudo isso é grego.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Capítulo 3 - continuação

Feliz 1972!


Logo depois chegaram Ciro Flávio (Flávio) e Paulo (Amaury). Os dois vinham de Palestina, onde, por um ano, Amaury manteve uma farmácia. Em seguida, vieram Michéas (Zezinho) e Manoel Nurchis (Gil). Pela experiência de mata que revelaram, os dois já deviam estar na região há mais tempo. O que os seus companheiros ignoravam é que ambos haviam estado no curso da Academia Militar de Nanquim.

Suely foi a primeira mulher a chegar. Ela ficou na casa onde moravam Osvaldão, Geraldo e Glênio. O inverno, como é chamada a estação das chuvas, vai até maio, depois começa a época do plantio das roças. Foi durante o inverno de 71 que chegaram os últimos militantes. Os “goianos”, que foram apresentados para os camponeses como amigos de Osvaldão, ficaram numa casa. Eram dois casais: Vandick (João Goiano) e Dinaelza (Mariadina), Telma (Lia) e Elmo (Lourival) e Cilon (Simão).

Próximo ao Gameleirinha, um afluente do Rio Gameleira, ficaram, Luíza Garlippe (Tuca) e Pedro Alexandrino (Peri), mais um casal, e José Maurílio (Mané). Essa região, entre o Rio Gameleira e a Serra das Andorinhas, fica próxima a Santa Cruz, onde Amaury se estabeleceu com uma farmácia.

Walquíria (Walk) e Idalísio (Aparício) foram morar no Castanhal do Ferreira. Para lá também se dirigiram Antônio Teodoro (Raul) e Manoel Nurchis (Gil), que chegaram a trabalhar com Amaury em Santa Cruz.

Os dois militantes que iriam completar o Destacamento nunca chegaram. Essa era a formação inicial do Destacamento B, o destacamento de Osvaldão, que na opinião dos militares, era o mais bem preparado:

Comandante: Osvaldão - Vice-comandante Bronca

Grupo de Gameleiras (Região de Santa Cruz): Genoino (comandante) e Amauri (subcomandante) , Glênio, Suely, Tuca, Peri e Mané.

Castanhal do Alexandre : Zé Ferreira  (comandante) e Flávio (subcomandante), Walk, Idalísio, Raul e Gil.

Couro D'antas: Zezinho (comandante), Wandick, Simão, Lourival, Mariadina e Lia                

A área do Castanhal do Alexandre, também era conhecida como Castanhal do Zé Ferreira. Esse grupo, assim como o que atuava perto de Couro D'antas estava incompleto.
A formação do Destacamento B nos permite deduzir como foi feita a colocação dos militantes no Araguaia. Primeiro vieram os futuros comandantes e vice-comandantes de destacamento (Osvaldão em 66 e Bronca em 69, no caso do Destacamento B) e os membros da Comissão Militar (entre 67 e 68 chegaram: Maurício Grabois (Mario), Líbero (Joca), João Amazonas (Cid), Ângelo Arroyo (Joaquim), João Carlos Haas (Dr. Juca) e Elza Monnerat (Dª. Maria)).

Na região, era comum a chegada de forasteiros e a vinda de mais militantes não chamou a atenção. Os mais velhos recepcionavam os novatos, que eram apresentados como parentes ou amigos. Todos tinham uma cobertura legal, vivendo e trabalhando como os moradores nativos. O local onde faziam roça e erguiam sua moradia era chamado de ponto de apoio (PA).

O modo como Amaury se instalou na área é típico. Como farmacêutico, tinha grande contato com a população, facilidade em colher informações e, ao mesmo tempo, podia abastecer de remédios os futuros guerrilheiros. Como o objetivo principal não era obter lucro, ele podia fornecer os medicamentos a preços justos, vender fiado e tratar de graça os mais carentes.

Algumas militantes assumiram o papel de parteiras ou de professoras, outros abriram bodegas, sempre com objetivos similares. Quando começaram as hostilidades, os guerrilheiros eram bem quistos pela população, que os via como gente séria e respeitadora. Eram padrinhos de várias crianças e estavam integrados na vida social dos lugarejos.

1972 era considerado um ano decisivo pela direção do partido. Nesse ano se esperava concluir a formação dos destacamentos e completar o treinamento militar. A deflagração da guerra popular seria o próximo passo. A passagem de ano de 71 para 72 foi comemorada no Castanhal do Zé Ferreira em grande estilo. Segundo o relato de Glênio:

“A programação começou logo cedo com a preparação de uma emboscada simulada, no caminho que ia para a nossa casa no Gameleira. O local tinha chamado a atenção de nosso comandante. O resultado dessa emboscada foi um veado mateiro morto por Osvaldão para a nossa festa, que ia ter também polenta, feijão, arroz, carne seca, caititu, palmito de babaçu e muito leite de castanha-do-pará. Entramos no local da festa, o Osvaldão na frente com o mateiro sobre os ombros, em fila indiana, cantando a Internacional. Foi emocionante. Tio Cid [João Amazonas] quando ouviu o hino dos proletários saindo de dentro da floresta cantado por um bando de homens armados virou um menino traquinas, saltando no terreiro da casa.

Nesse dia tivemos de tudo: jogo de vôlei, música, poesias e teatro. De bebida, a semberaba de bacaba* , regando aquela comilança. A noite estava enluarada.”
*Refrigerante típico da região, feito com farinha e o fruto da bacaba
Segundo Genoino:

“... Cada um [dos três grupos] preparou um teatrinho. O nosso fez uma espécie de jogral mostrando o roteiro da nossa vida desde que a gente saiu da cidade. Colocávamos as dúvidas: deixar a família, a Universidade, a cidade, até a decisão; as primeiras impressões no mato, as primeiras mancadas, a gente pisando em ovos e a fase de domínio da região.

Outro grupo fez um jogral tipo literatura de cordel, com o programa dos 27 pontos, e o outro apresentou como era a vida na mata. Uma alegria geral. Teve muita cantoria, emboladas, o Idalísio tocava violão. A gente caçou carne, catou fruta e o arroz de nossa roça. Cantamos “Apesar de Você”, “Viola enluarada”..., músicas que tinham relação com nossa vida de estudante.”

Cinco minutos para meia-noite, os futuros guerrilheiros se perfilaram e saudaram a chegada de 72 com uma salva de tiros.

sábado, 5 de dezembro de 2009

O menino do Rio

A entrevista de César Benjamim alcançou grande repercussão e provocou alguns depoimentos esclarecedores. O cineasta Sílvio Tendler afirmou que a reunião e a conversa aconteceram e que o Presidente estava brincando. José Maria de Almeida, dirigente do PSTU, preso com Lula naquela ocasião, disse que o fato como foi denunciado não ocorreu.


Dando ao autor da entrevista o benefício da dúvida, ele acreditou que uma brincadeira era verdade. Mesmo assim, sua atitude ao divulgá-la é discutível. A alegação de que pretendia fazer uma "reflexão sobre a complexidade da condição humana" é de uma ingenuidade suspeita. Como militante político, ele não pode ignorar que a entrevista, assim como o filme, farão parte da campanha eleitoral ora em curso.

Como não somos adeptos do politicamente correto, não deixaremos de publicar as notícias atuais que considerarmos relevantes. Cabe a vocês a palavra final. O realismo socialista partia da concepção de que a classe operária não podia ser contaminada com as perversões típicas da burguesia. Os idiotas modernos continuam tratando o resto da humanidade como idiotas, sem maturidade suficiente para enfrentarem a realidade, que só deve ser mostrada em seus aspectos mais edificantes e construtivos.

Uma coisa é o papel histórico que a classe operária possa ter, outra coisa é o perfil real da classe operária brasileira. Zé Maria afirmou que aquele tipo de brincadeira era comum entre os operários. César reagiu como reagiria um típico burguesinho da Zona Sul. De qualquer maneira, mesmo supondo verdadeiro o fato, o governo Lula não deve ser avaliado a partir dessa dimensão ética ou estética.

Paosolini escreveu um célebre poema, em pleno 68, defendendo os jovens policiais, camponeses arrancados das províncias para combaterem os estudantes, dentre os quais estava a fina flor da burguesia romana. Morreu defendendo o papel revolucionário do lumpen-proletariado, que coincidentemente é exaltado na entrevista.

César afirma que se afastou do Presidente após a conversa sobre o menino do MEP. Eu deixei de votar em Lula depois da Carta aos Brasileiros. Há motivos suficientes para se avaliar politicamente o atual governo, sem precisarmos recorrer às denúncias do menino do Rio.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O menino do MEP

A entrevista de César Benjamim à Folha de São Paulo está dando o que falar. Ei-la na íntegra:

Os filhos do Brasil

César Benjamin

A PRISÃO na Polícia do Exército da Vila Militar, em setembro de 1971, era especialmente ruim: eu ficava nu em uma cela tão pequena que só conseguia me recostar no chão de ladrilhos usando a diagonal. A cela era nua também, sem nada, a menos de um buraco no chão que os militares chamavam de "boi"; a única água disponível era a da descarga do "boi". Permanecia em pé durante as noites, em inúteis tentativas de espantar o frio. Comia com as mãos. Tinha 17 anos de idade.

Um dia a equipe de plantão abriu a porta de bom humor. Conduziram-me por dois corredores e colocaram-me em uma cela maior onde estavam três criminosos comuns, Caveirinha, Português e Nelson, incentivados ali mesmo a me usar como bem entendessem. Os três, porém, foram gentis e solidários comigo. Ofereceram-me logo um lençol, com o qual me cobri, passando a usá-lo nos dias seguintes como uma toga troncha de senador romano.

Oriundos de São Paulo, Caveirinha e Português disseram-me que "estavam pedidos" pelo delegado Sérgio Fleury, que provavelmente iria matá-los. Nelson, um mulato escuro, passava o tempo cantando Beatles, fingindo que sabia inglês e pedindo nossa opinião sobre suas caprichadas interpretações. Repetia uma ideia, pensando alto: "O Brasil não dá mais. Aqui só tem gente esperta. Quando sair dessa, vou para o Senegal. Vou ser rei do Senegal".

Voltei para a solitária alguns dias depois. Ainda não sabia que começava então um longo período que me levou ao limite.

Vegetei em silêncio, sem contato humano, vendo só quatro paredes - "sobrevivendo a mim mesmo como um fósforo frio", para lembrar Fernando Pessoa- durante três anos e meio, em diferentes quartéis, sem saber o que acontecia fora das celas. Até que, num fim de tarde, abriram a porta e colocaram-me em um camburão. Eu estava sendo transferido para fora da Vila Militar. A caçamba do carro era dividida ao meio por uma chapa de ferro, de modo que duas pessoas podiam ser conduzidas sem que conseguissem se ver. A vedação, porém, não era completa. Por uma fresta de alguns centímetros, no canto inferior à minha direita, apareceram dedos que, pelo tato, percebi serem femininos.

Fiquei muito perturbado (preso vive de coisas pequenas). Há anos eu não via, muito menos tocava, uma mulher. Fui desembarcado em um dos presídios do complexo penitenciário de Bangu, para presos comuns, e colocado na galeria F, "de alta periculosia", como se dizia por lá. Havia 30 a 40 homens, sem superlotação, e três eram travestis, a Monique, a Neguinha e a Eva. Revivi o pesadelo de sofrer uma curra, mas, mais uma vez, nada ocorreu. Era Carnaval, e a direção do presídio, excepcionalmente, permitira a entrada de uma televisão para que os detentos pudessem assistir ao desfile.

Estavam todos ocupados, torcendo por suas escolas. Pude então, nessa noite, ter uma longa conversa com as lideranças do novo lugar: Sapo Lee, Sabichão, Neguinho Dois, Formigão, Ari dos Macacos (ou Ari Navalhada, por causa de uma imensa cicatriz que trazia no rosto) e Chinês. Quando o dia amanheceu éramos quase amigos, o que não impediu que, durante algum tempo, eu fosse submetido à tradicional série de "provas de fogo", situações armadas para testar a firmeza de cada novato.

Quando fui rebatizado, estava aceito. Passei a ser o Devagar. Aos poucos, aprendi a "língua de congo", o dialeto que os presos usam entre si para não serem entendidos pelos estranhos ao grupo.

Com a entrada de um novo diretor, mais liberal, consegui reativar as salas de aula do presídio para turmas de primeiro e de segundo grau. Além de dezenas de presos, de todas as galerias, guardas penitenciários e até o chefe de segurança se inscreveram para tentar um diploma do supletivo. Era o que eu faria, também: clandestino desde os 14 anos, preso desde os 17, já estava com 22 e não tinha o segundo grau. Tornei-me o professor de todas as matérias, mas faria as provas junto com eles.

Passei assim a maior parte dos quase dois anos que fiquei em Bangu. Nos intervalos das aulas, traduzia livros para mim mesmo, para aprender línguas, e escrevia petições para advogados dos presos ou cartas de amor que eles enviavam para namoradas reais, supostas ou apenas desejadas, algumas das quais presas no Talavera Bruce, ali ao lado. Quanto mais melosas, melhor.

Como não havia sido levado a julgamento, por causa da menoridade na época da prisão, não cumpria nenhuma pena específica. Por isso era mantido nesse confinamento semiclandestino, segregado dos demais presos políticos. Ignorava quanto tempo ainda permaneceria nessa situação.

Lembro-me com emoção -toda essa trajetória me emociona, a ponto de eu nunca tê-la compartilhado- do dia em que circulou a notícia de que eu seria transferido. Recebi dezenas de catataus, de todas as galerias, trazidos pelos próprios guardas. Catatau, em língua de congo, é uma espécie de bilhete de apresentação em que o signatário afiança a seus conhecidos que o portador é "sujeito-homem" e deve ser ajudado nos outros presídios por onde passar.

Alguns presos propuseram-se a organizar uma rebelião, temendo que a transferência fosse parte de um plano contra a minha vida. A essa altura, já haviam compreendido há muito quem eu era e o que era uma ditadura.

Eu os tranquilizei: na Frei Caneca, para onde iria, estavam os meus antigos companheiros de militância, que reencontraria tantos anos depois. Descumprindo o regulamento, os guardas permitiram que eu entrasse em todas as galerias para me despedir afetuosamente de alunos e amigos. O Devagar ia embora.

São Paulo, 1994. Eu estava na casa que servia para a produção dos programas de televisão da campanha de Lula. Com o Plano Real, Fernando Henrique passara à frente, dificultando e confundindo a nossa campanha.

Nesse contexto, deixei trabalho e família no Rio e me instalei na produtora de TV, dormindo em um sofá, para tentar ajudar. Lá pelas tantas, recebi um presente de grego: um grupo de apoiadores trouxe dos Estados Unidos um renomado marqueteiro, cujo nome esqueci. Lula gravava os programas, mais ou menos, duas vezes por semana, de modo que convivi com o americano durante alguns dias sem que ele houvesse ainda visto o candidato.

Dizia-me da importância do primeiro encontro, em que tentaria formatar a psicologia de Lula, saber o que lhe passava na alma, quem era ele, conhecer suas opiniões sobre o Brasil e o momento da campanha, para então propor uma estratégia. Para mim, nada disso fazia sentido, mas eu não queria tratá-lo mal. O primeiro encontro foi no refeitório, durante um almoço.

Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o publicitário Paulo de Tarso em frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de Lula) e outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo nome também esqueci. Lula puxou conversa: "Você esteve preso, não é Cesinha?" "Estive." "Quanto tempo?" "Alguns anos...", desconversei (raramente falo nesse assunto). Lula continuou: "Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta".

Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido. Chamava-o de "menino do MEP", em referência a uma organização de esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do "menino", que frustrara a investida com cotoveladas e socos.

Foi um dos momentos mais kafkianos que vivi. Enquanto ouvia a narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia ter sido, digamos assim, o "menino do MEP" nas mãos de criminosos comuns considerados perigosos, condenados a penas longas, que, não obstante essas condições, sempre me respeitaram.

O marqueteiro americano me cutucava, impaciente, para que eu traduzisse o que Lula falava, dada a importância do primeiro encontro. Eu não sabia o que fazer. Não podia lhe dizer o que estava ouvindo. Depois do almoço, desconversei: Lula só havia dito generalidades sem importância. O americano achou que eu estava boicotando o seu trabalho. Ficou bravo e, felizmente, desapareceu.

Dias depois de ter retornado para a solitária, ainda na PE da Vila Militar, alguém empurrou por baixo da porta um exemplar do jornal "O Dia". A matéria da primeira página, com direito a manchete principal, anunciava que Caveirinha e Português haviam sido localizados no bairro do Rio Comprido por uma equipe do delegado Fleury e mortos depois de intensa perseguição e tiroteio. Consumara-se o assassinato que eles haviam antevisto.

Nelson, que amava os Beatles, não conseguiu ser o rei do Senegal: transferido para o presídio de Água Santa, liderou uma greve de fome contra os espancamentos de presos e perseverou nela até morrer de inanição, cerca de 60 dias depois. Seu pai, guarda penitenciário, servia naquela unidade.

Neguinho Dois também morreu na prisão. Sapo Lee foi transferido para a Ilha Grande; perdi sua pista quando o presídio de lá foi desativado. Chinês foi solto e conseguiu ser contratado por uma empreiteira que o enviaria para trabalhar em uma obra na Arábia, mas a empresa mudou os planos e o mandou para o Alasca. Na última vez que falei com ele, há mais de 20 anos, estava animado com a perspectiva do embarque: "Arábia ou Alasca, Devagar, é tudo as mesmas Alemanhas!" Ele quis ir embora para escapar do destino de seu melhor amigo, o Sabichão, que também havia sido solto, novamente preso e dessa vez assassinado. Não sei o que aconteceu com o Formigão e o Ari Navalhada.

A todos, autênticos filhos do Brasil, tão castigados, presto homenagem, estejam onde estiverem, mortos ou vivos, pela maneira como trataram um jovem branco de classe média, na casa dos 20 anos, que lhes esteve ao alcance das mãos. Eu nunca soube quem é o "menino do MEP". Suponho que esteja vivo, pois a organização era formada por gente com o meu perfil. Nossa sobrevida, em geral, é bem maior do que a dos pobres e pretos.

O homem que me disse que o atacou é hoje presidente da República. É conciliador e, dizem, faz um bom governo. Ganhou projeção internacional. Afastei-me dele depois daquela conversa na produtora de televisão, mas desejo-lhe sorte, pelo bem do nosso país. Espero que tenha melhorado com o passar dos anos.

Mesmo assim, não pretendo assistir a "O Filho do Brasil", que exala o mau cheiro das mistificações. Li nos jornais que o filme mostra cenas dos 30 dias em que Lula esteve detido e lembrei das passagens que registrei neste texto, que está além da política. Não pretende acusar, rotular ou julgar, mas refletir sobre a complexidade da condição humana, justamente o que um filme assim, a serviço do culto à personalidade, tenta esconder.

CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento estudantil secundarista em 1968 e passou para a clandestinidade depois da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano, juntando-se à resistência armada ao regime militar. Foi preso em meados de 1971, com 17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou a fundar o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a vice-presidente na chapa liderada pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do qual também se desfiliou. Trabalhou na Fundação Getulio Vargas, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. É editor da Editora Contraponto e colunista da Folha.



terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Orgulho Gay

Antes de mais nada, gostaria de retificar uma injustiça que cometi contra o ex-ministro da Fazenda. Quem me alertou para essa falha foi o meu amigo Queiroz, a quem agradeço. O apelido de Delfim não era Dª Maria, a Louca, era Maria Gorda.
Não sei por que, lembrei-me de uma crônica muito bem escrita de Oswaldo Braga, publicada no jornal Em Tempo, que reproduzo na íntegra, em homenagem à brilhante campanha de seu time:

É gol!


Que felicidade! Exultante, corre o atacante vitorioso em direção à torcida, enquanto seus companheiros o perseguem. Num gesto impetuoso, ele tira sua camisa e exibe um abdominal de gominhos, o tórax seco, sem uma grama sequer de gordura. Um atleta que tem a noção exata do seu momento de glória, quando milhões de olhos encantados se voltam para ele. Um homem que exala sedução por todos os poros. A torcida vem abaixo, se encanta incontinente com a figura do ídolo descamisado quando seus colegas o alcançam para o glorioso abraço que consolida o espírito de time e o sucesso do trabalho conjunto. Um caloroso momento íntimo-coletivo em que corpos suados, mãos, caras, bocas e sexos se esfregam sem censura ou qualquer tipo de limite machista. Um homoerotismo que contagia todo o estádio, um ambiente masculino por essência, diante dos olhos de milhares de homofóbicos.

É gol! Que felicidade!

O assunto futebol tem estado presente neste final de Campeonato Brasileiro. Eis que alguém me pergunta para que time eu torço e respondo orgulhoso: "Cruzeiro!". "Ah! Claro! Só podia ser!", responde. " Por quê?", replico já adivinhando a resposta: porque sou gay e o Cruzeiro é o time dos gays. Eis a tola explicação para sua óbvia conclusão chauvinista.

Encontrei duas hipóteses que explicariam essa ligação: a primeira diz respeito à origem do Cruzeiro. O clube foi fundado pela colônia italiana de Belo Horizonte, pessoas cultas, que se vestiam bem e se comportavam com educação nos estádios. Logo, todo cruzeirense seria gay, pois segundo essa lógica troglodita, ser culto e educado não é coisa de macho.

A outra história tem a ver com o goleiro Raul Plassmann, famoso no Cruzeiro, depois no Flamengo e até na seleção brasileira. Numa época em que os goleiros se vestiam invariavelmente de preto ou cinza e "homem que era homem" não vestia roupa colorida, faltou a camisa do Raul e improvisaram uma substituta para que pudesse jogar.

O jovem bonito, louro e cabeludo Raul Plasmann desafiou os costumes e defendeu o Cruzeiro com uma camisa amarela que se tornaria sua marca registrada. Naquele momento, Raul ganhou a alcunha de Wanderléia, em referência à cantora loura da Jovem Guarda. E a torcida do Cruzeiro, o título pejorativo de "time de bichas".

A homofobia precisa ser questionada. Hoje, a camisa amarela não representa mais um sinal de feminilidade, os jogadores se exibem nos estádios e em revistas gays, mas os cruzeirenses continuam ligados aos homossexuais. Contudo, isso nos trouxe também avanços, uma vez que as torcidas organizadas Crugay e Rosa Azul são aceitas e respeitadas nos jogos do Cruzeiro.

Camisinha sempre!
Oswaldo Braga
E-mail: obraga@mgm.org.br
Publicado em: 28/11/2009

sábado, 28 de novembro de 2009

O AI -5, ao vivo e em tons de cinza chumbo

Quem não viveu aqueles anos de chumbo grosso, agora pode clicar nesse link e mergulhar na nossa história recente:


Como aperitivo, dou uma sucinta biografia de um dos participantes daquela reunião, o famigerado Delfim.



O então Ministro da Fazenda, Delfim Netto

Durante o regime militar, recebeu dos inimigos a alcunha de Dª Maria a Louca. Foi alvo de um relatório reservado, o Relatório Saraiva, que denunciou os atos de corrupção que teria cometido como embaixador brasileiro em Paris. Naqueles bons tempos, a comissão era de apenas 10%.

Depois da saída dos militares, foi eleito cinco vezes consecutivas deputado federal.

Em 2005, abandonou o Partido Progressista e ingressou no PMDB, o que gerou protestos da base peemedebista, em parte pela forte ligação de seu nome com a ditadura militar.

Após a reeleição de Lula, em 2006, Delfim  se tornou um interlocutor privilegiado do presidente. Houve especulações de que  estaria sendo sondado para ocupar algum ministério ou a presidência do BNDES.

É por essas e por outras, que alguns dizem que mergulhar na nossa história recente pode causar micoses e urticárias. Sem contar com o risco de se contrair cólera.






terça-feira, 24 de novembro de 2009

Capítulo 3 segunda parte


O álbum de fotos


Zé Dirceu, Wladimir Palmeira e Genoino, hoje lideranças nacionais do PT, são velhos conhecidos. Em 1968, em um sítio em Ibiúna, São Paulo, eles participaram do lendário XXX Congresso da UNE – União Nacional dos Estudantes. A polícia descobriu o local e os setecentos e poucos delegados foram presos e colocados em fila, no meio da lama, para serem revistados e enviados para o Presídio Tiradentes.

Um estudante ficava repetindo a música: “Aqui dá pra rir, dá pra chorar... enquanto todo o resto ria. De repente, passou uma camionete C-14 da polícia, com Wladimir, Travassos , Zé Dirceu e o então Presidente da UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, Antônio Guilherme Ribeiro Ribas. Os estudantes passaram então a entoar o refrão: “A UNE somos nós, nossa força, nossa voz”, para demonstrar que estavam unidos, apesar das divergências que pudessem haver entre suas lideranças.

Quando um dos policiais que comandavam a operação identificou o Presidente da UBES, Antonio Ribas, disse mais ou menos o seguinte: “Você não tem jeito mesmo, seu Ribas, foi preso entregando panfletos no Desfile de 7 de setembro (...) foi solto na véspera desse Congresso da UNE. Hoje, três dias depois de ser solto, já é preso novamente. Você é um caso perdido” . De fato, felizmente, ele era um caso perdido. No dia seguinte, os jornais estamparam a foto de Guilherme, ao lado de José Dirceu, sendo transportados para o Presídio Tiradentes. Infelizmente, essa não foi a única foto tirada. A polícia montou um álbum de fotografias do Congresso, que mais tarde seria o pesadelo dos militantes clandestinos.

Ribas, Zé Dirceu, Wladimir Palmeira e Travassos se tornaram conhecidos como “o grupo dos quatro”. Guilherme foi condenado a um ano e seis meses de prisão, acusado de organizar o Congresso. A maioria dos presos foi solta através de habeas-corpus, mas o AI-5 , decretado numa sexta-feira 13 de dezembro de 68, suspendeu esse instrumento e manteve o grupo dos quatro na cadeia.

Quando ocorreu o seqüestro do embaixador norte-americano, em setembro de 1969, Guilherme estava no Presídio Tiradentes. Aqui existe um ponto obscuro em sua história. Alguns dizem que ele seria incluído na lista dos presos a serem libertados, outros dizem que não.

Seja lá como for, no final de 1969, Diógenes Arruda e Paulo de Tarso Venceslau , se juntaram ao Guilherme numa das celas do Presídio Tiradentes. A cela tinha até nome, “Monteiro Lobato”, em homenagem a um antigo hóspede. Paulo de Tarso nos conta:

“Durante todo tempo que estivemos presos mantivemos [ele e Ribas] um bom relacionamento. Diferente foi o relacionamento com Arrudão, sempre marcado por altos e baixos, porém com muito respeito”. (...) “Na época, minha organização - ALN - tinha críticas ao PC do B, considerado uma variante chinesa do reformismo soviético. (...) Como não sabia da iniciativa em Goiás e Sul do Pará, eu achava que o discurso de Arruda não passava de retórica. Difícil foi ter de engolir que Ribas saiu da prisão e seguiu logo depois para a área rural. Ninguém imaginava que aquilo pudesse acontecer”.

Guilherme foi solto em abril de 1970. Talvez tenha sido o último preso de Ibiúna a sair do cárcere. Imediatamente, entrou na clandestinidade. Primeiro foi para uma fazenda da família em Limeira (SP) e depois seguiu para Duque de Caxias, baixada fluminense. Antes de embarcar para o seu destino de guerrilheiro nas matas do Araguaia, fez uma última reunião com a família. Naquela noite afirmou: “voltarei à frente de uma revolução ou não voltarei”.

Quando Ribas chegou à região do Rio Gameleira, em outubro de 1970, adotou o nome de Zé Ferreira. Como não havia condições de ficar todo mundo numa mesma casa, comprou um castanhal a 24 km. do rio, que passou a ser conhecido como “O Castanhal do Zé Ferreira”. A área era relativamente deserta e poderia abrigar mais companheiros.



sábado, 21 de novembro de 2009

O Araguaia do Ceará

Estou reproduzindo como postagem, pela sua importância, um comentário que recebi:

SÍTIO CALDEIRÃO, O ARAGUAIA DO CEARÁ: GENOCÍDIO ESQUECIDO PELO PODER PÚBLICO!

No CEARÁ, para quem não sabe, houve também um crime idêntico ao do “Araguaia”, contudo em piores proporções, foi o MASSACRE praticado por forças do Exército e da Polícia Militar do Ceará no ano de 1937, contra a comunidade de camponeses católicos do Sítio da Santa Cruz do Deserto ou Sítio Caldeirão, que tinha como líder religioso o beato JOSÉ LOURENÇO, seguidor do padre Cícero Romão Batista.

A ação criminosa deu-se inicialmente através de bombardeio aéreo, e depois, no solo, os militares usando armas diversas, como fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões, assassinaram mulheres, crianças, adolescentes, idosos, doentes e todo o ser vivo que estivesse ao alcance de suas armas, agindo como feras enlouquecidas, como se ao mesmo tempo, fossem juízes e algozes.

Como o crime praticado pelo Exército e pela Polícia Militar do Ceará foi de LESA HUMANIDADE / GENOCÍDIO / CRIME CONTRA A HUMANIDADE é considerado IMPRESCRITÍVEL pela legislação brasileira bem como pelos Acordos e Convenções internacionais, e por isso a SOS - DIREITOS HUMANOS, ONG com sede em Fortaleza - Ceará, ajuizou no ano de 2008 uma Ação Civil Pública na Justiça Federal contra a União Federal e o Estado do Ceará, requerendo que sejam obrigados a informar a localização exata da COVA COLETIVA onde esconderam os corpos dos camponeses católicos assassinados na ação militar de 1937.

Vale lembrar que a Universidade Regional do Cariri – URCA, poderia utilizar sua tecnologia avançada e pessoal qualificado, para, através da Pró-Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa – PRPGP, do Grupo de Pesquisa Chapada do Araripe – GPCA e do Laboratório de Pesquisa Paleontológica – LPPU encontrar a cova coletiva, uma vez que pelas informações populares, ela estaria situada em algum lugar da MATA DOS CAVALOS, em cima da Serra do Araripe.


Frisa-se também que a Universidade Federal do Ceará – UFC, no início de 2009 enviou pessoal para auxiliar nas buscas dos restos dos corpos dos guerrilheiros mortos no ARAGUAIA, esquecendo-se de procurar na CHAPADA DO ARRARIPE, interior do Ceará, uma COVA COM 1000 camponeses.


Então qual seria a razão para que as autoridades não procurem a COVA COLETIVA das vítimas do SÍTIO CALDEIRÃO? Seria descaso ou discriminação por serem “meros nordestinos católicos”?


Diante disto aproveitamos a oportunidade para pedir o apoio de todos os cidadãos de bem nessa luta, no sentido de divulgar o CRIME PERMANENTE praticado contra os habitantes do SÍTIO CALDEIRÃO, bem como, o direito das vítimas serem encontradas e enterradas com dignidade, para que não fiquem para sempre esquecidas em alguma cova coletiva na CHAPADA DO ARARIPE.

Dr. OTONIEL AJALA DOURADO
OAB/CE 9288 – (85) 8613.1197
Presidente da SOS - DIREITOS HUMANOS
www.sosdireitoshumanos.org.br

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Posse na Academia



Amanhã é a posse da minha amiga, a poeta Clevane Pessoa, no dia 18 de novembro de 2009, às 16h:00, na rua dos Timbiras 1560, Conj. 703/704 - em Belo Horizonte/MG - onde a escritora será saudada por Elisabeth Rennó, Presidente da Academia Municipalista de Letras AMULMIG.

sábado, 14 de novembro de 2009

Capítulo 3 - Primeira parte

O Destacamento do Osvaldão

José Genoino Neto, o ex-presidente do PT, conta que deixou São Paulo no dia em que a Seleção Brasileira, tri-campeã do mundo no México, chegou à cidade para desfilar no Anhangabaú. Ele aproveitou o momento para pegar um ônibus na Rodoviária de São Paulo com destino a Campinas. Genoino sabia que o PC do B preparava a luta armada no campo, apresentou-se como voluntário e foi enviado para essa missão. Quando entrou no ônibus, ele não conhecia o seu destino final, só a sua primeira escala. Lá teria que cobrir um ponto* e receber mais instruções. Em Campinas, soube que ia para Anápolis.
*Cobrir um ponto era comparecer na hora marcada a um local previamente combinado. Às vezes, as pessoas se identificavam através de senhas. Em caso de desencontro, poderia haver uma alternativa, um ponto em outra data e/ou local.

Em Anápolis, Genoino encontrou com um velho conhecido do movimento estudantil cearense, Glênio, que ia para a mesma missão. Os dois foram contatados por José Humberto Bronca, um ex-metalúrgico gaúcho, que os iria conduzir, daí em diante. Passaram um dia fazendo pequenas compras: remédios, facão, machado, panelas e mantimentos. Depois, seguiram de ônibus até Imperatriz, no Maranhão, fazendo de conta que não se conheciam.

Em Imperatriz, se hospedaram em hotéis diferentes. Gastaram mais três dias fazendo compras, separados. Só então, Genoino soube que entraria na mata pelo rio, num barco. A viagem de Imperatriz para Porto Isabel durou cinco dias; primeiro descendo o Rio Tocantins, até São João do Araguaia, depois subindo o Rio Araguaia. No barco, os três já se apresentavam como conhecidos. Glênio e Genoino contavam aos camponeses que ia morar com um tio, no sul do Pará.

De Imperatriz em diante, não havia mais pontos de referência: só a mata e o rio. A selva ia engrossando, à medida que o destino final se aproximava. Os últimos 14 quilômetros foram feitos a pé, porque o Araguaia havia baixado e a cachoeira de Santa Isabel não estava transponível.

Bronca já estava na região desde 69 e era muito bem relacionado com os moradores. De cada um que encontrava, recebia a mesma pergunta: - o Osvaldão, como vai? - O Negão está bem? - E o Mineirão? Glênio e Genoino se perguntavam quem seria esse personagem tão popular.

Finalmente chegaram a um pequeno rancho, numa região de capoeira, onde um negão fritava um bife de veado, em companhia de um velhinho de 60 anos. A recepção foi calorosa. Genoino recebeu arma, facão e botina, foi colocado a par das características da região e ganhou de lembrança do seu tio uma folhinha do calendário. A data era auspiciosa, 26 de julho* . O tio, ele soube mais tarde, era Amazonas.
*26 de Julho é o nome do principal movimento rebelde cubano. Nessa data houve o fracassado ataque ao quartel de Moncada, que terminou com a morte de vários rebelde e a prisão de Fidel Castro

O negão até hoje é uma figura lendária no Araguaia. Seu próprio físico o tornava inesquecível: negro, quase dois metros de altura, sapato 48, dotado de enorme força física (havia sido campeão de box pelo Botafogo). Em 62, quando foi estudar engenharia na Tchecoslováquia, foi tema de um livro “O homem que parou a cidade”, do escritor tcheco Cytrian Ekwensi.

Sandra Negraes Brisolla, professora da Unicamp, que o conheceu em Praga, lembra de um relato curioso: ”Quando cheguei a Praga, os meninos passavam saliva no dedo e esfregavam meu braço, para ver se a cor da minha pele saía. Nunca tinham visto um negro – contou [Osvaldão]”. Foram estas características tão marcantes que o afastaram das cidades, onde dificilmente poderia se esconder da repressão.

Assim que retornou da Tchecoslováquia, Osvaldão entrou para o PC do B. Como vimos, desde 65, ele já estava envolvido no trabalho de campo do partido, no norte de Goiás. No Araguaia, ele foi o primeiro a chegar, ainda em 66. Atuando como garimpeiro e mariscador (caçador de peles), conhecia a área profundamente. Em 69 comprou uma posse às margens do Rio Gameleira, na região de Couro D’antas.

Amazonas era o Secretário Geral do PC do B. Paraense, nascido em 1912, João Amazonas entrou para o partido em 1935. Ele e Pedro Pomar atuavam no Pará. Em 1940, os dois foram presos, junto com outros dirigentes locais. Segundo relato do próprio Amazonas: “Na prisão, recebemos a notícia da invasão da União Soviética pela Alemanha hitlerista. Nossa indignação foi enorme. Reunimos, nesse mesmo dia, e juramos sair da prisão para continuar a luta de vida e morte contra o nazismo.” .

A fuga deu certo e os dois se dirigiram para o Rio de Janeiro, passando pela região do Bico do Papagaio. Foi o primeiro contato de Amazonas com o futuro cenário da guerrilha. No Rio, encontraram-se com a Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), dirigida por Maurício Grabois e Amarílio Vasconcelos. Em seguida, contataram Diógenes Arruda, que tentava reorganizar o partido em São Paulo. Era a agonia da noite (título do segundo volume da trilogia de Jorge Amado). O partido estava desmantelado e os remanescentes eram caçados pela polícia de Getúlio.

Graças aos esforços da CNOP, em agosto de 43, foi realizada a 2ª Conferência Nacional do PCB, conhecida como “Conferência da Mantiqueira”. “Segundo Dinarco Reis, a reunião” foi realizada numa pequena cafua de telha-vã e chão de terra, com sala, quarto e cozinha, local bastante exíguo para tantas pessoas (...) Dormíamos no chão de terra forrado por sacos e jornais. À noite o frio castigava duramente, pois era inverno nessa região bastante alta”.” Nesta Conferência, Amazonas foi eleito para o Comitê Central.

Em 45, finalmente chegou a luz no fim do túnel (título do último volume da trilogia de Jorge Amado): vieram a anistia e a legalização do PCB. João Amazonas foi eleito deputado federal para a Assembléia Constituinte, juntamente com Maurício Grabois e Diógenes Arruda. Depois da cassação dos deputados comunistas, já no governo Dutra, o trio assumiu a direção cotidiana do Partido.

Em 1968, 27 anos depois de sua fuga, Amazonas retornou à região. Inicialmente, ele se estabeleceu num povoado chamado Faveira, às margens do Rio Araguaia. Mais tarde se deslocou para a posse de Osvaldão. Conheci Amazonas uma década depois de sua saída do Araguaia. Seu aspecto físico era o de um típico caboclo: baixo, franzino, rosto largo, com traços indígenas. Na região, ele poderia passar despercebido, a não ser pela sua voz, que, embora fraca, prendia a atenção de todos à sua volta e pela autoridade que dele emanava.

Uma das primeiras tarefas dos dois sobrinhos foi construir uma casa, a 150 metros do Rio Gameleira, onde Osvaldão, Glênio, Genoino, Amazonas e Bronca foram morar.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A orientação dos gatos



Cortázar e Flanelle

Flanelle era uma gatinha de rua que adorava flanar. Cortázar era um grande escritor que morava no apartamento de Flanelle, em Paris. Ela criou uma brincadeira, que ele, que não era de todo bobo, acabou aprendendo. Primeiro ele abria a porta e a deixava do lado de fora. Depois, conversavam  pelo vidro, enquanto ela pedia para entrar e ele fingia que não ia deixar. Um morrendo de rir do outro.
Pichuco é um gato vira-lata, que nunca leu Cortázar e nem conheceu Flanelle. Todo dia ele me pede para sair, atravessa a sala pelo mesmo caminho e vai para a garagem. Uma hora depois,  abro a porta e peço para ele entrar, enquanto ele finge que não quer.
O Pichuco original era um gato vira-lata que vivia num sebo em Buenos Aires. Um dia, ele simplesmente surgiu e escolheu seu dono e o lugar onde iria reinar. Quando o conheci, ele dormia no balcão, cansado de passear em cima dos livros. Em sua homenagem, batizei um gatinho que chegou tremendo de frio, dentro de uma caixa de sapatos, trazido por um vizinho.
Cortázar escreveu A orientação dos gatos, que no Brasil ganhou uma capa com um desenho de um gato, sósia do Pichuco brasileiro. Numa outra ida à Buenos Aires, comprei o livro com a foto de Flanelle brincando.
Assim são os gatos. Aparecem e  te escolhem, sem um motivo aparente. Cortázar se deu conta que eles eram antenas. Ligam e captam pontos dispersos, separados no espaço e no tempo, soltos na tal da realidade concreta.  Os gatos passeiam por uma teia muito mais significativa.
Alguém que for bastante bobo, pode achar que eles são absolutamente inúteis. Se você for sábio o suficiente, o seu gato te ensinará uma brincadeira. Ou deixará um presente, no pé da cama: um prendedor de roupas, uma borboleta morta. Um hieróglifo.
Eles são mensageiros muito sérios. Os seus antepassados egípicios foram fixados em sua postura hierática, prescrutando o destino dos mortais, em cima de seus longos pescoços. Solte uma risada inapropriada, quando  estiver brincando com seu gato e ele se retirará ofendido. Existe um tom certo, uma etiqueta que Cortázar dominava e que permitia que ele e Flanelle passassem horas se divertindo.
Durante a maior parte do tempo, o seu gato vai fazer o que todo gato faz melhor, dormir. Dependendo do quanto ele confia em você, uma hora, você poderá surpreendê-lo, fitando um ponto invisível, recebendo uma nova mensagem. Outra hora ele olhará dentro de você e te verá todo e se você for uma boa pessoa, ele irá deitar no seu colo ronronando e o seu juízo será mais definitivo do que qualquer verbete numa Wikipédia, do que qualquer necrológico.
Dizem que Flanelle lamentou muito a morte de Cortázar.

sábado, 7 de novembro de 2009

Capítulo 2 - A composição dos destacamentos

Ao deslocar mais de 70 militantes para a região do Araguaia, o PC do B pretendia formar três destacamentos, cada um com 23 combatentes: um comandante, um vice-comandante, e três grupos de sete guerrilheiros. Previa-se que, ao final de 1972, os efetivos estivessem completos, a área mapeada e o treinamento militar concluído. Caberia ao partido escolher como e quando iniciar a luta armada.
Ângelo Arroyo era um operário paulista que ingressou no PCB em 1945, com 17 anos. Em 54, foi eleito membro do Comitê Central. Desde o início, se opôs as teses de Khruschev e, em 62, participou da reorganização do partido. No PC do B, era membro do Comitê Central e de sua Comissão Executiva. Fazia parte da Comissão Militar, a qual os três destacamentos estavam subordinados. Ele sobreviveu ao aniquilamento da guerrilha e escreveu um relatório, o chamado Relatório Arroyo, uma de nossas fontes primárias.
Para facilitar a leitura, além das tabelas que constam nesse capítulo, elaboramos um encarte. Ao lado do nome dos militantes, colocamos os nomes de guerra com os quais eram conhecidos entre os moradores e entre os próprios companheiros. O Relatório Arroyo utiliza quase sempre esses nomes de guerra. Para evitar confusões (existia um Zezinho do destacamento A e um do destacamento B, por exemplo), nós fixamos um nome, que, se for o caso, virá sempre em itálico.



























































Arroyo coloca 22 militantes no Destacamento A, comandados por André Grabois (Zé Carlos) e tendo Antônio de Pádua Costa (Piauí) como vice-comandante. Danilo Carneiro, (Nilo)*, estava autorizado a deixar a área assim que começassem os choques armados, portanto Arroyo não o incluía como combatente. Lúcia Regina de Souza Martins (Regina) **, esposa de Lúcio Petit da Silva (Beto), havia deixado a região para se tratar em Anápolis. Ela fugiu do hospital e voltou para a família em São Paulo. Também não entra na contagem dos combatentes. Desse modo chegamos ao número exato, 22 militantes. Nem sempre conseguimos estabelecer a data de chegada com precisão.

O destacamento B







O destacamento B tinha 21 militantes, Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão) era o Comandante e José Humberto Bronca (Zeca, Fogoió) o vice-comandante. Walquíria (Walk) foi a última guerrilheira a ser morta pelo exército. Michéas (Zezinho) é um dos poucos sobreviventes da guerrilha. Ele ajudou Arroyo a sair da área e permaneceu clandestino em São Paulo, sem contato com o PC do B. Mais de vinte anos depois desses acontecimentos, tornou pública a sua história. Sua memória, no entanto, apresenta falhas e lacunas.

O destacamento C





































Esse destacamento foi o último a ser formado, sendo que dois militantes chegaram no dia 18 de abril de 72, uma semana depois do primeiro ataque do exército ao Destacamento A. O seu comandante era Paulo Mendes Rodrigues (Paulo) e o vice-comandante José Toledo de Oliveira (Vitor). Teresa Cristina Albuquerque (Ana) * era casada com Pedro Albuquerque Neto (Pedro) **. Desde que chegou, manifestou sua inconformidade com a tarefa. Os dois abandonaram a área ainda em 71. No total, assim que começaram as ações militares para o Destacamento C, ele contava com 20 combatentes.

A Comissão Militar





































A Comissão Militar original era formada por oito membros, sendo que dois exerciam a função de guardas. Arroyo não menciona os nomes dos seus componentes e excluí João Amazonas e Elza Monnerat da contagem. Ambos haviam ido para São Paulo e estavam retornando separadamente. A vinda deles coincidiu com os primeiros ataques do exército. Elza levava dois militantes que iriam se integrar à guerrilha: Rioko Caiano e Eduardo Monteiro Teixeira, presos logo ao chegar. Ela conseguiu retornar a Anápolis, a tempo de avisar João Amazonas, e dali voltaram para São Paulo.
Na verdade, a estrutura das forças guerrilheiras era mais complicada, pois havia um Bureau Político ao qual a Comissão Militar estava subordinada. Ao que parece, com o desenvolvimento da guerrilha, essas estruturas iriam se ampliar e se diferenciar. Para simplificar, englobamos as duas sob o nome único de Comissão Militar - CM.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Capítulo 1 - parte 2

Rumo ao Araguaia

Em junho de 66, quando o PC do B realizou a sua 6ª Conferência, Elio estava presente, como delegado do Espírito Santo. Como o partido reivindicava ser uma continuação do antigo PCB, a numeração de suas conferências foi mantida, bem como o nome do jornal do Comitê Central, A Classe Operária.

De 62 até 66, o Partidão havia sofrido uma série de rachas e de cisões, perdera muito da sua influência e se desmoralizara politicamente com a derrubada do governo João Goulart. Os olhares da maioria dos revolucionários brasileiros se voltavam para Cuba, onde uma revolução armada derrubara a ditadura de Fulgêncio Batista.

A Sexta Conferência aprovou um documento intitulado “União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista”, onde propunha a formação de um governo democrático, representativo de todas as forças patrióticas, como forma de aglutinar as forças que se opunham ao regime.

Tarzan de Castro havia sido colega de turma de Elio, em 65. Em entrevista ao Jornal Opção, Tarzan afirmou que guardava uma grata recordação dessa viagem: “Peguei na mão de Mao, num encontro no Palácio do Povo, em Pequim. Passamos uma tarde com ele, com o primeiro ministro Chu-En-Lai, toda a cúpula. Falamos sobre Brasil, América Latina, cultura. Foi um encontro muito agradável e proveitoso”.

Alegando que a proposta de um governo democrático era um recuo em relação ao governo popular revolucionário que constava no Manifesto Programa, Tarzan de Castro encabeçou o grupo de militantes que criou a Ala Vermelha do PC do B, mais conhecida como Ala Vermelha. A Ala criticava a inação do PC do B e cobrava o início imediato da luta armada.

A crítica à inação é improcedente, pois já estavam sendo dados os passos que levariam ao Araguaia. Embora a formulação teórica da luta armada não estivesse acabada, a VI Conferência assinalava que “a luta revolucionária em nosso país assumirá a forma de guerra popular”. Segundo depoimento de Elio, os militantes estavam conscientes de que a luta armada era inevitável e a ela se referiam como sendo “a quinta tarefa”.

Em 66, começam a chegar os primeiros militantes à área da futura guerrilha do Araguaia. Na verdade, o trabalho no campo é bem anterior. “A partir de 1964, pessoas e recursos começam a ser deslocados para o campo. O dirigente Maurício Grabois e o economista Paulo Rodrigues, militante comunista desde 1960, estão entre esses quadros... No intuito de localizar uma zona adequada ao propósito do Partido, os dois homens vão percorrendo parte do país de sul a norte.”[in Maia, Iano Flávio et alli, p. 39].

A área procurada deveria ter condições geográficas favoráveis à guerrilha e desfavoráveis às tropas regulares e uma população com bom potencial de luta. Nessa pesquisa os dois chegaram até Porto Franco, no Maranhão, de onde seguiram para o sul do Pará.

“Paralelamente, Pedro Pomar e Carlos Danielli também realizam expedições. Danielli... viaja pelo Nordeste. Mais especificamente pelo Ceará, Piauí, Maranhão e oeste da Bahia.... Pomar se desloca através de Goiás, Maranhão e sul do Pará, disfarçado de vendedor de remédios... Depois dessas viagens de reconhecimento, ele e Ângelo Arroyo ficam responsáveis por preparar a instalação de militantes em Goiás.” [in Maia, Iano Flávio et alli, p. 39]

“Pomar e Arroyo instalam militantes como fazendeiros, posseiros ou comerciantes em pequenas cidades de Goiás. Mas a região apresenta alguns pontos negativos. A população que seria a base de massa da guerrilha, é muito dispersa e tende a se movimentar acompanhando a mudança da fronteira agropecuária.” Grifos nossos.[idem]

Em 65, Vitória Grabois, filha de Maurício Grabois, seu marido, Gilberto Maria Olímpio, Osvaldão e Paulo Rodrigues se instalam em Guiratinga no Mato Grosso. Em depoimento dado à Deusa Maria de Souza, Vitória dá mais detalhes:

“Sobre esse episódio que eu saiba não há nada escrito, nem o PC do B fala algo. No início dos estudos para viabilizar a Guerrilha era necessário escolher uma região adequada para iniciar o movimento. Gilberto, Paulo, Osvaldão e eu fomos para o oeste de Mato Grosso. Gilberto e eu alugamos uma casa na cidade de Guiratinga. Paulo tinha um jeep e era “sócio” do Gilberto em um negócio de venda de roupas; Osvaldão era garimpeiro, na região e eu professora e dona de casa. Minha tarefa era o apoio logístico e também angariar o apoio das populações; a de Gilberto e Paulo era de reconhecimento de toda a região oeste de Mato Grosso; a de Osvaldão, inserção com as massas.
Foi um momento muito rico em minha vida. Ano de 1965, eu estava com 21 anos, recém casada e dona do meu próprio espaço.
Trabalhei com a população local como professora e me tornei uma pessoa muito popular. Após 8 meses, o grupo se desfez e voltei para SP e fiquei grávida, não retornando mais à região.”

Analisando o reconhecimento feito, o partido chegara à conclusão de que a área não era adequada. A busca prosseguiu rumo ao norte: centro-oeste e norte de Goiás e sul do Maranhão e Pará.

Ozeas Duarte ingressou no PCB em 1961, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros. Em 64, logo depois do golpe, se juntou ao PC do B. Em 66, era o delegado do Ceará à VI Conferência. Em correspondência trocada conosco, ele fala de mais três áreas:

“Sei de mais três regiões de trabalho no campo: no Vale do Ribeira, trabalho embrionário conduzido por Pomar, ao que me parece, muito problemático, até mesmo pela localização. Não deu certo. Outro foi na Serra da Ibiapaba, área do bispo D. Fragoso, sujeito de esquerda, que mantinha contato e trabalhava com o partido sem nenhum problema. Quem estava à frente era Vladimir Pomar. Essa área foi abandonada, queimada por uma panfletagem absurda que fizeram por lá. E outra era no sul da Bahia, que mudou para MG e depois para MT. A repressão dava em cima, mas como era um movimento de massa um pouco mais amplo, o pessoal botava o povo dentro de ônibus, formava a caravana e se mudava, posseiros em novas terras devolutas. Dessa área saiu um torneiro mecânico que foi para o Araguaia. Virou armeiro, arrumador de armas que não tinha como arrumar.”

Em outubro de 67, Che é assassinado na Bolívia. No Brasil e no mundo, 1968 é marcado por manifestações estudantis e greves operárias. Aqui, a partir de 69, o aumento da repressão e a impossibilidade de se repetirem as grandes passeatas, levou várias organizações revolucionárias a optarem por ações armadas nas cidades. Eram inspiradas pela teoria do foco , uma generalização apressada da experiência cubana. (O foco era o embrião da guerrilha. Deveria se localizar no campo e era formado por um pequeno número de militantes oriundos das cidades).

Esse diálogo entre José Dirceu e Wladimir Palmeira, que em 68 eram duas lideranças estudantis de projeção nacional, é esclarecedor:

“Para a linha geral do movimento, na esquerda revolucionária, foi a Revolução Cubana que influenciou decisivamente. Primeiro, pelo mito do Che Guevara que nós tínhamos já antes do maio francês. Che era adorado. O curioso é que a esquerda brasileira nunca repetiu o que houve em Cuba. Ela dizia “vamos assaltar bancos para financiar o foco”, mas como nunca acumulou dinheiro suficiente, assaltar bancos virou ação. Fazia propaganda armada, mas nunca se chegou sequer a ser como um foco cubano, embora a motivação original de se pegar em armas fosse montada nessa concepção. Geraríamos o foco guerrilheiro e as massas adeririam, uma concepção que está em A Revolução na revolução, o livro do Régis Debray.

Zé Dirceu: O foco foi concebido pela ALN e pelo Carlos Marighella. Depois a ALN e o Molipo tentaram implantá-lo em Goiás, em algumas regiões, mandando pessoas para lá. Evoluiria para uma coluna guerrilheira, que no fundo é um foco. Mas nunca foi além de levar armas, comprar propriedade e levar umas cinco ou seis pessoas. Nunca passou disso.

Vladimir Palmeira: É tudo uma baboseira, sabe por quê? Porque o Régis Debray não conhece nada de Cuba.

Zé Dirceu: Nem da América Latina.[in Blog do Zé Dirceu].

Em 68, o PC do B publicou o documento “Alguns problemas ideológicos da revolução na América Latina”. O documento critica as concepções que negavam o aspecto nacional e democrático da revolução, condena a posição reformista do PCB e, indiretamente, a posição dúbia de Cuba, frente ao chamado revisionismo soviético. Há uma frase, atribuída a Fidel, que ilustra com muita felicidade esse posicionamento: “meu coração está com a China, mas meu estômago está com a União Soviética.” Entretanto, a formulação da guerra popular, junto com uma avaliação crítica de outros caminhos para a luta armada, só será feita em 69.

Em Havana, o Museu da Revolução, antiga sede do governo de Batista, ainda guarda as marcas de bala em suas escadarias. Na área do museu, pode-se ver o Gramma, que mais se pode chamar de barquinho, do que de iate. É inacreditável que 80 homens pudessem caber nele. No segundo andar, vendo os mapas e as maquetes militares, deparamos com algo mais inacreditável ainda: em apenas dois anos, os 12 sobreviventes do desembarque conseguiram derrubar o ditador Fulgêncio Batista!

Não cabe aqui analisar as causas da vitória da revolução cubana, mas, certamente, entre os fatores decisivos estavam: a existência de um amplo movimento de massas nas cidades; o isolamento de Batista, cuja ditadura foi uma das mais sangrentas dessa parte do mundo e um movimento camponês com tradição de luta. Não foi o exemplo heróico de um punhado de guerrilheiros que colocou toda essa massa em ação; ao contrário, foi a existência desse enorme potencial revolucionário que assegurou o êxito da luta armada.

De novo, recorremos à opinião de Wladimir Palmeira:
Vladimir Palmeira: No dia em que Fidel iria desembarcar, naquela aventura, havia uma insurreição popular com cinco mil militantes, na segunda cidade mais importante de Cuba, Santiago. Transposta para o Brasil, equivaleria a uma insurreição no Rio. Só que o barco do Fidel atrasou dois ou três dias. A insurreição foi derrubada nesse período, e ao desembarcar Fidel estava vendido. Mesmo assim, ele tinha contato no campo. Não foi chegar e botar os caras sem nenhum contato. São essas são bobagens que Debray exacerbou. Existia em Cuba uma tradição de guerrilha rural, desde que o país ficou independente. Debray fez um manual que descaracterizava a história da Revolução Cubana. Nem a revolução foi como ele disse – que tinha uma certa dose de aventura. Fidel era um cara excessivamente voluntarioso, mas contava com uma base política e de apoio enormes. Não tinha nada a ver com aquilo que tentamos fazer aqui. Imagina, você chegar numa cidade como o Rio e fazer uma insurreição por três dias. O livro do Debray prejudicou muito. A questão da luta armada devia ser tratada de forma mais séria.” [ in Blog do Zé Dirceu]

Nenhum dos quadros iniciais da guerrilha cubana tinha uma formação política mais sólida. O próprio Che tinha apenas tinturas de marxismo. Não é de se estranhar, que essa rica experiência ficasse reduzida a uma fórmula mágica, a teoria do foco.

O documento do PC do B, de janeiro de 69, “Guerra Popular, caminho da luta armada no Brasil”, faz um resumo bem apropriado dessa teoria. “Esta teoria não tem em conta a situação objetiva, as forças de classe em presença e o processo político em curso. É uma concepção voluntarista. Segundo os teóricos do “foco”, a guerrilha se desenvolve harmonicamente, “a partir de um núcleo central único”, situado em regiões pouco acessíveis e com combatentes provindos das cidades. Esse núcleo cresce até se transformar numa coluna-mestra que, ao atingir 120 a 150 homens, dá origem a outra coluna que, por sua vez, origina mais outra e assim por diante. Sua existência e manutenção dependem fundamentalmente dos centros urbanos. Seu método não tem em vista ganhar as massas para que elas mesmas façam a sua guerra. O “foco”, segundo seus defensores, por si só, através de atos heróicos de pequenos grupos, atrai novos combatentes e conduz a revolução à vitória. A guerrilha é o próprio partido.”

Em contraste, vejamos o resumo dos aspectos básicos da guerra popular, segundo o PC do B: “... será uma guerra de cunho popular, travar-se-á fundamentalmente no interior e mobilizará as grandes massas camponesas, será prolongada, deverá apoiar-se em recursos do próprio país, empregará o método da guerrilha em grande escala, forjará o exército popular, estabelecerá bases de apoio no campo. Terá que se orientar, durante muito tempo, pelos princípios da defensiva estratégica e deverá guiar-se por uma política correta.”

Em dezembro de 69, o PC do B lançou o documento “Responder ao banditismo da ditadura com o avanço da luta do povo”. Internamente, ele se tornou conhecido como o documento da “revolucionarização”. Considerando o agravamento da repressão e sabendo que em breve o partido poderia iniciar ações armadas no campo, a direção procurava preparar os quadros e os militantes para a nova situação.

“Impõe-se a revolucionarização cada vez maior do Partido. Seus dirigentes e militantes precisam dedicar-se integralmente à tarefa de aplicar a orientação partidária. Cada comunista tem que organizar sua vida de maneira a consagrar o máximo de seu tempo ao Partido, transformar-se num autêntico soldado da causa do povo, pronto a executar qualquer atividade e onde quer que seja. Tem que evitar tudo que possa prejudicar sua militância revolucionária. Deve estar preparado, moral e ideologicamente para arrostar todas as dificuldades e enfrentar todos os sacrifícios. Para ser um autêntico servidor do povo tem de subordinar sua vida e atividade às necessidades do Partido e da revolução, estar sempre pronto a realizar o trabalho mais difícil que a luta revolucionária exige.” Grifos nossos.

A partir de 1970, se acelera o envio de militantes para a região do Araguaia. Eram muitos os que se ofereciam como voluntários para ir para o campo, onde era esperado que fosse se travar a luta armada. Por outro lado, o partido era cobrado tanto internamente, pelos seus militantes, quanto externamente, pelos militantes das organizações que já haviam iniciado as ações armadas, pela demora em dar uma resposta efetiva ao endurecimento do regime militar.

Ao final desse livro, pretendemos fazer uma ampla avaliação da política do PC do B em relação ao Araguaia, entretanto, fazem-se necessários dois reparos iniciais. Primeiro: é preciso examinar com muito critério a afirmação de alguns sobreviventes da guerrilha de que não tinham noção do tipo de trabalho que encontrariam no Araguaia. Embora a localização da futura guerrilha não fosse conhecida até por parte do Comitê Central, o sentimento geral no partido era de que em breve seriam desencadeadas ações armadas no campo. O autor se lembra bem de que, em Porto Alegre, um militante havia “dado um prazo” para que a guerra popular começasse, sob pena de ele não acreditar que o partido estivesse falando sério. Isso foi um pouco antes do começo da guerrilha.

Segundo: é falso dizer que o PC do B estivesse abandonando o trabalho legal e as entidades de massas, legais ou clandestinas. Essa era a visão das organizações foquistas, que recrutavam a grande maioria dos seus militantes entre os estudantes. Como não era mais possível repetir as passeatas de 68, elas teorizavam que o papel do movimento estudantil era o de fornecer quadros para a revolução. Mesmo a atuação nas entidades legais, estreitamente vigiadas, poderia “queimar” os militantes. Preferiam organizar círculos de leitura e de estudos entre a chamada vanguarda.

O caso da UNE é emblemático. Embora tivessem um grande peso no movimento estudantil em 68 e 69, essas organizações abandonaram a entidade e, na diretoria eleita no XXXI congresso, realizado em 71, só havia militantes do PC do B e da AP , que já eram majoritários nas entidades legais (a AP estava cindida em duas grandes correntes). A AP era uma organização revolucionária, originada da esquerda católica, que evoluiu até o maoísmo. Teve grande influência nos movimentos populares da década de 60. Betinho, o irmão do Henfil, foi um dos seus fundadores.

Em linhas gerais, essa foi a trajetória política do PC do B da ruptura até o Araguaia: desligou-se do PCB em 62, em virtude de sua política reformista; optou desde o início pela luta armada; alinhou-se ao lado da China na cisão do movimento comunista internacional; iniciou desde 64 a preparação do trabalho do campo e a escolha de uma área com potencial para futuros conflitos armados; definiu, em 66, na VI Conferência, uma plataforma política capaz de unir as grandes massas do país no quadro de uma revolução nacional e democrática; delineou, em 69, o que seriam os princípios básicos da guerra popular e, a partir desse ano, intensificou a remessa de militantes e a preparação ideológica do partido para os futuros confrontos. Ao mesmo tempo, manteve a sua atuação nas cidades, nas entidades de massas, legais ou não.