Cortázar e Flanelle
Flanelle era uma gatinha de rua que adorava flanar. Cortázar era um grande escritor que morava no apartamento de Flanelle, em Paris. Ela criou uma brincadeira, que ele, que não era de todo bobo, acabou aprendendo. Primeiro ele abria a porta e a deixava do lado de fora. Depois, conversavam pelo vidro, enquanto ela pedia para entrar e ele fingia que não ia deixar. Um morrendo de rir do outro.
Pichuco é um gato vira-lata, que nunca leu Cortázar e nem conheceu Flanelle. Todo dia ele me pede para sair, atravessa a sala pelo mesmo caminho e vai para a garagem. Uma hora depois, abro a porta e peço para ele entrar, enquanto ele finge que não quer.
O Pichuco original era um gato vira-lata que vivia num sebo em Buenos Aires. Um dia, ele simplesmente surgiu e escolheu seu dono e o lugar onde iria reinar. Quando o conheci, ele dormia no balcão, cansado de passear em cima dos livros. Em sua homenagem, batizei um gatinho que chegou tremendo de frio, dentro de uma caixa de sapatos, trazido por um vizinho.
Cortázar escreveu A orientação dos gatos, que no Brasil ganhou uma capa com um desenho de um gato, sósia do Pichuco brasileiro. Numa outra ida à Buenos Aires, comprei o livro com a foto de Flanelle brincando.
Assim são os gatos. Aparecem e te escolhem, sem um motivo aparente. Cortázar se deu conta que eles eram antenas. Ligam e captam pontos dispersos, separados no espaço e no tempo, soltos na tal da realidade concreta. Os gatos passeiam por uma teia muito mais significativa.
Alguém que for bastante bobo, pode achar que eles são absolutamente inúteis. Se você for sábio o suficiente, o seu gato te ensinará uma brincadeira. Ou deixará um presente, no pé da cama: um prendedor de roupas, uma borboleta morta. Um hieróglifo.
Eles são mensageiros muito sérios. Os seus antepassados egípicios foram fixados em sua postura hierática, prescrutando o destino dos mortais, em cima de seus longos pescoços. Solte uma risada inapropriada, quando estiver brincando com seu gato e ele se retirará ofendido. Existe um tom certo, uma etiqueta que Cortázar dominava e que permitia que ele e Flanelle passassem horas se divertindo.
Durante a maior parte do tempo, o seu gato vai fazer o que todo gato faz melhor, dormir. Dependendo do quanto ele confia em você, uma hora, você poderá surpreendê-lo, fitando um ponto invisível, recebendo uma nova mensagem. Outra hora ele olhará dentro de você e te verá todo e se você for uma boa pessoa, ele irá deitar no seu colo ronronando e o seu juízo será mais definitivo do que qualquer verbete numa Wikipédia, do que qualquer necrológico.
Dizem que Flanelle lamentou muito a morte de Cortázar.
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