Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Discussões éticas

Calidoscópio


Festa na mansão do banqueiro Roberto Magalhães. Hora do presente. O pai, todo orgulhoso, entra de braço dado com uma louraça, a famosa Sunny Mexerica. No fim do decote da moça, pendurado num colar, a chave do Porsche vermelho que espera o herdeiro de dezoito aninhos, lá fora, na garagem.

- Pô, véio.... – o garoto não tem palavras.

- É tudo seu. Você vai adorar esta máquina... – eu mesmo já dei uma amaciada.O sorriso do pai é irresistível – os três riem. A vida é bela.



No barraco da Sunta, começa mais um dia. É dia de branco, como diz o Zezão. Dia de trampo. Para ela, que rala como gari, porque ele mesmo não faz nada. Minto. Passa o dia bolinando a enteada, que já está quase cedendo.

Enquanto passa o café, a menina se estica na ponta dos pés para vigiar a mãe se lavando, pela janela da cozinha. O tanque fica do lado de fora, o que dá a chance do Zezão segurar os peitinhos da garota. Sunta só pensa no fim do mês que não chega, no aumento que não vem. A vida é longa.



Na suíte presidencial do motel, o filho do banqueiro contempla o avião que está pousado na cama redonda. Cochicha alguma coisa no ouvido da Sunny.

- Isto não está incluído – ela ri, encorajando a insistência.

A negociação é breve. A cama é logo sacudida pelos arrancos do rapaz e pelos gemidos da moça, que agora não são tão fingidos como antes.

Sunny guarda o cheque na bolsa, enquanto, pelo celular, Dudu vai contando os detalhes para os amigos. A vida é dura.



O cheque e a Sunta acabam se encontrando, num meio fio. A moça, coitadinha, era tão distraída que não notou que ele caíra da bolsinha, na saída da loja. Atrás, estava anotado o telefone do Dudu. A ligação para o celular custou os últimos trocados da Sunta. Ainda bem que o garoto disse que pagava o táxi. O motorista só aceitou a corrida quando viu o valor do cheque. Quem atendeu foi o banqueiro, que dispensou a pobre, com uns trocados e um muito obrigado.

- Filho, precisamos ter uma discussão sobre ética. O cheque era ao portador e foi extraviado. Teoricamente, você não deve nada para a Sunny. O que você vai fazer? A vida é complicada.



O taxista ficou tão impressionado com a honestidade da Sunta, que acionou um amigo jornalista. No outro dia, a pobre foi foto de primeira página. A sorte do Dudu foi que ele havia ligado para a Sunny, dizendo que o cheque estava esperando por ela, na mesma suíte. Os sólidos princípios morais do pai haviam prevalecido.

- Obrigada, você é um cara legal, foi muito honesto. Semana que vem a gente repete. Por conta da casa...

Pena que todos os que olhavam para a cara da Sunta, sorrindo meio de banda, para esconder a janelinha nos dentes amarelos, só comentavam:

- Que idiota.

Um coroa, com cara de esperto, falava no meio de uma rodinha:

- O cheque não estava nem cruzado. Se não tivesse peito para descontar era só vender pros malandros. Logo ali, na esquina dos aflitos, tem quem compre. Pobre é burro mesmo. A vida é surpreendente.



Alguns dias depois, o Presidente recebia a Sunta no palanque. A cara estava cheia de rouge, para disfarçar a bifa que havia tomado do Zezão, quando ele soube da merreca que ela havia recebido para devolver o cheque.

- Se cada brasileiro fosse como esta mulher, este país seria diferente. É por isso que eu digo, nós não devemos nunca perder a esperança. A minha mãe....

A Sunta nem escutava. Ia repetindo consigo mesma que a vida era muito boa e que valia a pena ser honesto.

- Tomara que o Zezão esteja me vendo agora – pensou ela.

O Zezão não estava vendo nada. A televisão só estava ligada para disfarçar os gritos que enchiam o barraco. E não é que a enteada era cabaço? A vida é isso aí.





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