"Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas."
Johnnie e Boneca
Só seis alunos
haviam se matriculado na Seção VI-A, Física e Matemática, da Politécnica. A
relação estava afixada na entrada da sala, em ordem alfabética de sobrenome. O
primeiro era Ehrat, eu vinha em seguida, depois Grossmann, seguido de Kollros.
O último nome parecia sérvio e eu não tinha certeza de como pronunciá-lo.
Ela entrou
coxeando, em silêncio, e ficou nos olhando, com um ar severo. Quando comentei
as minhas impressões de Mileva com Besso, fui cruel: coxa, gordinha e
neurastênica. Eu nunca me engano em minhas primeiras impressões. Ela nunca
soube desta conversa. Foi a minha primeira traição, a minha primeira mentira.
No outro dia começou a loucura.
Lise, minha
prima, ficou arrasada. A coitadinha me amava como um cachorrinho estabanado,
que a todo instante tropeça no dono. Eu sentia sua falta, quando estava longe e
me irritava com a sua adoração, quando estava ao seu lado. Sabia que ela me
amaria de qualquer maneira, não importando o que eu fizesse. Mileva era diferente, no início eu até pensei
que poderíamos discutir Física de igual para igual.
Sempre
fui fascinado pelos telhados vermelhos de Berna e recordo que, aquela noite,
logo que saímos da aula, eles estavam grenás. Em breve, passariam pela cor
daquele moscatel que era meu preferido, até se tornaram um corpo negro, opaco
como fuligem. As silhuetas pontiagudas então se perderiam numa anônima massa
escura.
As
lâmpadas elétricas, que me lembravam os projetos frustrados de meu pai,
felizmente haviam sido quebradas naquele trecho e o muro era baixo, fácil de
ser pulado, mesmo para ela. A árvore era convidativa, o tronco inclinado e
largo; o quintal estava deserto e a casa ao fundo parecia abandonada.
Depois
de alguma resistência, os botões da blusa foram abertos um a um. Suspirou,
quando a mão fez o primeiro contato. Era morno. Alguns beijos molhados e os
dois pularam para fora. Os bicos eram rosa, muito pequenos; o branco se
destacava contra a pele morena. A mão partiu em busca de novos territórios. A
saia foi erguida e minha perna, entre as suas, garantiu a abertura de nova
frente.
Depois
de duas tentativas frustradas, mudei a abordagem.
-
Como é que ela está? - minha mão estava por cima do vestido, pressionando o
delta ambicionado.
-
Ela quem? - pelo tom de sua voz, senti que a nova investida seria bem sucedida.
-
A caixinha de veludo - Mileva gostou da imagem.
-
Ela não tem nome?
-
Boneca. A minha boneca - não sei de onde tirei esta!
-
A boneca está com medo - é incrível como mulher adora estas criancices.
-
Medo de quem?
-
Dele.
-
Ele não tem nome?
-
Johnnie.
Endireitei
o corpo e dei um pouco de espaço entre nós dois. A presa não ia fugir.
-
Fale com ele - a minha mão precisou conduzir a sua. - Saboreei o susto que seus
dedos denunciaram.
-
Oi Johnnie - a pressão ainda era tímida. - Ela o tocava com os dedos esticados,
sem segurá-lo.
E
assim prosseguiu este diálogo a quatro, que terminou em gemidos e explosões,
bem a tempo de escapar do guarda noturno.
Eu mal pude esconder o Johnnie, e tive que ocultar Mileva com o meu
corpo. Ela conseguiu fechar alguns botões e descer a ampla saia sobre a
confusão do campo de batalha. Ficou uma dúvida razoável na mente do
representante da lei. Tivemos que deixar os nossos nomes, endereços e
ocupações.
-
Uma mulher estudante de Física! - nessa ele não acreditou. A partir deste dia, em nossa correspondência,
eu fui o Johnnie, e ela a Boneca. Antes de deixá-la na pensão, vieram as
palavras inevitáveis:
-
Eu te amo, Albert.
-
Eu também te amo, Mileva.
O
outono está chegando e eu passo horas andando pelo parque da Universidade de
Princeton, procurando os vermelhos de Berna nas folhas caídas. As árvores estão
perdendo seu verde escuro brilhante, bem diferentes das cores cansadas da
Europa.
Já
disse aos médicos que não quero fazer outra operação, sinto que o meu tempo
está acabando. Pela primeira vez em minha vida, não tenho mais projetos. Meus
pensamentos estão de volta àqueles anos em que era jovem e podia fazer qualquer
coisa. A única pergunta que realmente importa agora é: será que fiz a escolha certa?
-
Quem é mais importante para você? – Eu, ou a transformada de Lorentz?
Um
dia eu não agüentei mais e disse a verdade. Ela adoeceu. Ou era isto, ou eu não
teria desenvolvido a relatividade restrita. Valeu a pena? Por que eu estaria
predestinado a ser Einstein e não Albert ou Johnnie? Poderia ter levado uma vidinha burguesa,
funcionário exemplar do Departamento de Patentes, pai amoroso de três crianças
lindas. Poderia ter sido um violinista melhor, isso daria um toque de
boemia. A humanidade esperaria um pouco
pela relatividade. Talvez não tivéssemos uma bomba atômica.
Não,
não houve uma escolha. Eu sempre fui Einstein. Uma pedra que busca o seu lugar
no Universo. Abandonado, eu caí em queda livre, rumo ao meu lugar natural.
Sempre que penso em Mileva, não consigo fugir da analogia com a experiência de
Rutherford: uma partícula alfa indo em direção ao núcleo de um átomo de ouro.
No meu caso, a deflexão foi de 180 graus. Eu realmente odiei Mileva. Ela me
deixou mais cínico, mais amargo. Casei-me com minha prima, cortejei a minha
enteada, tornei-me Einstein. Um velho com a língua de fora, um ar bondoso e ao
mesmo tempo desligado. Ascético e altruísta. Nada seria capaz de mudar está
imagem, nem mesmo aquela carta que um dia escrevi, impondo as condições para
voltarmos a viver na mesma casa.
“a) Você terá de se encarregar de que
minha roupa esteja sempre em ordem, de que me sirvam três refeições diárias, de
que meu quarto esteja sempre em ordem e de que ninguém mexa no meu escritório;
b) Você deve renunciar a todo tipo de relações pessoais comigo, com exceção
daquelas necessárias para a manutenção das aparências sociais. Não deve pedir
que me sente com você em casa, que saia com você ou que a leve para viajar; c)
Deve se comprometer explicitamente a observar os seguintes pontos: não deve
esperar afeto de minha parte e não me reprovará por isso, deve responder
imediatamente quando lhe dirigir a palavra e deve abandonar meu quarto ou meu
escritório em seguida".
Fui um tirano doméstico e um mau pai.
Tive amantes ocasionais, e mulheres eternamente dedicadas a mim, que me
endeusaram. Meu nome foi usado para justificar as piores políticas. Como
cientista, mereço todas as estátuas e mais algumas. Valeu a pena?
A luz do abajur me incomoda, interponho a minha mão. Nas suas costas vejo as veias saltadas e uma
pele coberta de manchas senis. O quarto todo está escurecendo, os objetos vão
perdendo o contorno e uma veia lateja em meu cérebro. Antes do fim, a minha mão
enrugada se fecha sobre os seios mornos de Mileva.
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