Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

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sábado, 16 de julho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte, terceiro capítulo

A cola
“ Quem não cola, não sai da escola”. É mais justo inverter a frase e dizer: quem saiu do Estadual, já colou. As exceções são as de sempre e servem para confirmar a regra: os dois ou três CDFs que havia em cada sala. Esses não colavam porque não precisavam. Havia ainda os objetores de consciência, que diziam:
- Quem passa colando irá fracassar mais tarde, quando precisar mostrar seu conhecimento, porque não aprendeu nada – só faltava acrescentarem – foi mamãe quem disse.
Eu sei que isso não é verdade por experiência própria. O conhecimento que fica é aquele básico, que foi sendo acessado e indexado pelo uso. Quando for necessário um conhecimento mais aprofundado, basta saber onde procurar. Ou então usar o método de convergência rápida - perguntar para quem sabe. Além disso, como diriam os pedagogos modernos: a cola também é um momento de aprendizagem.  Seria mais legal se os objetores dissessem que não se deve colar porque é feio, é pecado, Deus castiga, ou qualquer coisa no estilo.  Mas, em geral, a maioria colava. Embora a maioria também achasse que não era certo fazê-lo.
A modalidade básica era consultar o livro ou o caderno debaixo da carteira. Como o tampo encobria a visão do professor, sempre havia a possibilidade de fechá-los com um rápido movimento. Depois era preciso morrer negando. A melhor colocação para essa prática era na fila imediatamente em frente ao tablado, junto a janela. As manobras anti-cola do professor eram igualmente simples: caminhar de lá para cá, em frente ao quadro negro, ou ficar parado no fundo da sala. Os mais sádicos preferiam deixar o aluno iniciar a consulta, esperar que esse se empolgasse e depois surgir de surpresa, atrás da carteira. Mas só os amadores caiam nessa.
Para os iniciantes, a cola em papel, passada pelo colega de trás era mais garantida. Ela podia ser colocada no meio das folhas de papel almaço e consultada com calma. O sopro também era bastante efetivo, mas tinha um alcance limitado. Servia mais para lembrar um nome, na prova de história, ou dar o resultado de um problema, na prova de matemática.
O que garantia o resultado era a cara de pau, o olhar perfeitamente inocente, perdido no ar. Quando o colador surpreendia o professor encarando-o, sempre funcionava dar um sorriso cúmplice, como se estivesse curtindo a prova ou acabado de descobrir a pegadinha.
Há muitas lendas sobre o professor que ficava lendo o jornal e fazia um furo de cigarro para poder flagrar os alunos. Os óculos escuros espelhados eram  mais efetivos e não comprometiam a dignidade do mestre. Eram usados pelo nosso professor de Ciências e o resultado era intimidador.
O verdadeiro profissional, levava a cola pronta. Diga-se de passagem, que sempre que alguém mencionava a palavra cola, era corrigido: cola não, lembrete para a prova. A televisão era a forma mais elaborada dessa arte. Numa caixa de fósforos, sobre dois paus atravessados de lado a lado, era colocada uma tira de papel movida manualmente. O modelo mais sofisticado envolvia uma propulsão automática, à base de gominha, mas eu nunca consegui o segredo de sua fabricação.
Em compensação, desenvolvi um modelo próprio, com tiras bem finas e compridas. Elas eram dobradas ao meio, no sentido do comprimento e depois mais uma vez ficando em formato de seta, como quem vai fazer um avião de papel. Dava um pouco de trabalho, mas era possível folheá-lo, com se fosse um pequeno livro.
No último ano eu simplesmente trocava de prova com um colega, ou então fazia a cola sincronizada. Cada vez que o professor passava pela minha fileira e me dava as costas, eu consultava o lembrete. Quando as coisas estavam apertadas, nós fazíamos uma junta de alunos, que ficava lá embaixo, mandávamos a prova para fora da sala, e depois recebíamos as provas já feitas. Uma dessas, que ficou na história, foi numa prova de matemática. A professora, desesperada, não deixava ninguém entrar na sala. Colocamos o maço dentro da capa de um disco e pedimos para um aluno de outra sala que fosse devolvê-lo. Funcionou.
De qualquer maneira, a minha carreira se deve muito mais ao acaso do que a uma verdadeira vocação. O professor de latim era o Sardinha: Latim é língua morta e Sardinha é peixe fresco. Eu detestava aquelas declinações e estava sem média na matéria. Rosa, rosa, rosae ... e acabou o meu latim. Pedi a um colega que já havia entregue a prova, que me passasse a sua televisão. Minha cara deveria ser de culpado e eu me distraí consultando o lembrete. Tomei um susto quando o professor me chamou e pediu que trocasse de carteira. Poderia ter me dado um zero, com direito à suspensão. Saiu barato. Joguei  a televisão para debaixo da carteira, mudei de lugar e voltei a suar com as declinações. Me ferrei, é claro. Aquele foi um momento crítico:se houvesse sido punido, não teria continuado a colar. Daí para a frente, aprendi a dominar os nervos e fui me aprimorando na arte.



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