O Uniforme do
Colégio
Sou uma vítima das
mudanças. Em algum momento, alguém enfiou a pata na minha coleção de maços de
cigarros, que se “extraviou”. Os livros de Tarzan foram “doados” para a
biblioteca da Fraternidade. Os cadernos de escola velhos, com minhas partidas
de xadrez, também não duravam muito. E não foram tantas mudanças assim: Rua do
Ouro, Rua Cônego Floriano, Avenida do Contorno, Rua Euclásio. Já outras
tralhas, que se enquadravam em algum misterioso critério sentimental, eram
carregadas de lá para cá. É incrível a faculdade que as mães têm de saberem o
que é e o que não é importante para os seus pimpolhos. Pelo menos, a camisa do
Estadual ainda está na gaveta do meu armário. Uma empregada, logo depois que eu
saí da clandestinidade e voltei para Belogrado, fez o grande favor de lavá-la e
a tinta das canetas esferográficas vagabundas não resistiu. Era a camisa do
último ano, com as assinaturas da turma. Com dezessete anos, já havia crescido
quase tudo que podia, mas a camisa é estreita, não me serve mais, eu encorpei.
Todo ano, minha tia
comprava meus uniformes no Mundo Colegial, na Rua Rio de Janeiro. Era um
compromisso que ela havia assumido, já que o salário de minha mãe sempre foi
medíocre. Minha tia só teve um emprego em toda sua vida, um cargo obscuro no
Tribunal Eleitoral, com um salário de marajá. Ela era a burra da família e teve
que fazer um cursinho para passar no concurso. Em casa, ela se preparava para
as provas decorando as apostilas. Dizem que ia para o banheiro cantando os
textos: – “... os verbos formam o pretérito perfeito do subjuntivo juntando ...”.
Fico imaginando como poderia ser essa ladainha. Minha mãe, que sempre foi
considerada a intelectual, conseguiu se aposentar como diretora, com um salário de barnabé. Na minha família, se fizermos um gráfico dinheiro versus
inteligência, teremos um ramo de hipérbole – uma coisa é inversamente
proporcional à outra.
A camisa era branca, de
mangas compridas, com um bolso e o escudo do Colégio costurado – um triângulo
verde, com um C e um E estilizados. O resto do uniforme era sapatos pretos e
calça. Para a Educação Física, o colégio pedia meias brancas, camiseta, quedes,
calção e suporte atlético. Eu nem tinha pentelhos ainda e olhei com desconfiança
para o tal suporte, a primeira vez que o vi. Ele era composto de uma cinta
branca, elástica, com um protetor na frente, que espremia o saco e duas tiras
verticais atrás, bem estreitas. Ainda bem que não aparecia debaixo dos calções
folgados de ginástica.
As calças eram feitas de
um pano cinza ralo, com braguilha de botão, bolsos, vinco e tudo o mais que se
usava naqueles anos. Com o tempo, o bolso ia se abrindo nos cantos, e uma parte
da coxa ficava aparecendo. Eram bolsos fundos onde cabiam com folga a caderneta
da escola e a carteira de dinheiro. Uma vez, a empregada, cansada de cerzir os
bolsos, resolveu costurar tudo. Era uma calça relativamente nova, eu ia usá-la
no enterro da avó do Paulão. Era a norma, toda vez que íamos a um enterro de
parente de colega, a turma ia uniformizada. A missa foi um saco, como sempre, e
eu não consegui manter a pose, em pé, segurando o colecionador com a direita e
a esquerda rente ao corpo. Coloquei o colecionador no banco da igreja e tentei
descansar a mão direita no bolso. Foi aí que descobri que, graças ao engenho e
a arte da empregada, estava literalmente sem ter onde enfiar as mãos.
O cinzento acima dos
joelhos ia ficando esverdeado, de tanto limpar o suor das mãos e lugar onde
ficavam os joelhos se transformava numa colcha de retalhos, com cerzido em cima
de cerzido. As casas da braguilha iam se rasgando nos cantos, os botões
teimando em não fechar direito. Eu tinha que sentar com cuidado. Os sapatos
resistiam como podiam, só iam ficando brancos nos bicos, de tanto chute. Os quedes
eram os que terminavam o ano melhor. A camisa ia se puindo no colarinho, onde o
suor misturado com a poeira do colégio em suspensão produzia uma coloração
amarelada.
O colégio foi projetado
por Niemayer, provavelmente inspirado na coleção Biblioteca das Moças, que publicava M Delly. Pollyana,
provavelmente. O corpo da escola era uma régua T; a caixa de água, um giz; o
auditório, um mata-borrão; a cantina, uma borracha - sutil como um trator.
O prédio principal, onde
ficavam as salas de aula (a régua) se erguia sobre pilotis e era acessado
através de uma rampa. Nos braços pequenos da régua ficavam a biblioteca e os
laboratórios. A rampa tinha o comprimento, a largura e a inclinação
cientificamente calculados para permitir que, após o toque do sinal, a tropa
estourada conseguisse se escoar sem que ninguém caísse pelas laterais, que eram
protegidas apenas por duas barras paralelas. Uma vez um aluno fez o percurso
inverso, a cavalo, mas eu não presenciei a façanha.
O mais notável no colégio
era o revestimento. Debaixo da régua, havia um piso de cimento com pequenos
furinhos, que pareciam feitos a dedo, dispostos num padrão simétrico de linhas
e colunas. O piso foi projetado para arrancar o joelho das calças, com um
bocado de pele junto, ao primeiro tombo. Debaixo do último par de pilotis, ao
lado do Diretório Estudantil, ficava o nosso campo de futebol. Ali disputávamos
peladas com tampinhas de refrigerantes. Eram dois para cada lado – defesa e
ataque. O coeficiente de atrito e as dimensões do campo eram perfeitos, não
permitiam que a tampinha chegasse ao outro lado em excessiva velocidade. Os
seus praticantes eram imediatamente reconhecidos pelos joelhos das calças.
Fora da régua, o terreno
era coberto de terra, ideal para a prática de bolinha de gude, nos dias de sol
e para o jogo de finca, quando chovia. A lama tinha a consistência exata, que
permitia que a finca penetrasse com facilidade, mesmo nos arremessos a longa
distância e uma tonalidade rara de tijolo, quase marrom. As linhas do jogo
podiam ser traçadas com a maior nitidez, um sulco milimétrico, que era
levantado com uma elasticidade de argila, sem desprender o torrão, quando
fazíamos um subterrâneo. Dizem que, uma vez, depois de uma discussão, um
estudante matou o outro, com uma finca arremessada diretamente no coração. Não
sei se é verdade.
O pó que se levantava nos
dias de sol era um pequeno inconveniente. Muito fino, não aparecia no uniforme,
mas aderia na cutícula do polegar, onde a bolinha de gude se apoiava. Ela ia
engrossando, se afastando, um eclipse ao contrário, que mostrava cada vez mais
a meia lua. Mesmo nos períodos de
férias, quando a prática diária do jogo era menor, os dois polegares, vistos de
cima, eram bem diferentes.
O mata-borrão era um
auditório. Se a gente conseguisse esquecer que ele era a réplica de um
mata-borrão, dava para apreciar as suas linhas. Acho que ainda tinha a minha
caneta Parker 51, azul real lavável, quando entrei para o Estadual. Nas suas
carteiras de madeira havia um sulco na parte de cima, para segurar os lápis e
as canetas e um buraco redondo, que eu imagino que fosse para encaixar um
tinteiro. Na verdade, ele servia para despachar rapidamente as colas e os
papeizinhos que circulavam durante a aula, para a parte de baixo, onde ficavam
guardados os cadernos e os livros. Como é que um cara, que se pretendia
moderno, usa um mata-borrão no seu projeto? Dava para ver que, um dia, a caneta esferográfica ia chegar. Para mim foi
muita caretice mesmo.
A parte de baixo, que
dava para o quarteirão onde ficava a praça de esportes era escorrida, coberta
de grama esturricada, com alguns arbustos. O professor de desenho do primeiro
ano gostava de usar as folhas de assa-peixe como modelo de vinhetas
estilizadas. Fernando Pierucetti, o Mangabeira, que criou os símbolos dos times
mineiros: o Galo, o Coelho, a Raposa, o
Leão, a Tartaruga, que eu não lembro se era o Metalusina ou o Siderúrgica, e
outros. Era capaz de traçar um círculo perfeito no quadro, a mão livre. Depois
fazia questão de colocar o compasso de madeira no centro e conferir toda a
curva, ponto por ponto. Detestava suas aulas, mas me divertia com suas
histórias e o seu jeito agressivo-bonachão. Quando a vegetação seca entrava em
combustão, às vezes espontânea, dava gosto ver o fogo subindo morro acima,
ajudado pela topografia. A fumaça ia diretamente para as salas de aula, e os
inspetores eram obrigados a tocar o sinal do intervalo. Houve pelo menos um
incêndio, no meu tempo.
Em minha opinião, todas
essas vantagens compensavam as deficiências do projeto.
Quando fez Brasília,
Niemayer já havia esquecido essas paixões adolescentes e fez uma cidade de
ficção científica, uma Alfaville de Godard. Desta vez seus moradores não
conseguiram adaptá-la a um padrão mais funcional. Para Dostoievsky, um ambiente
escuro e acanhado predispõe ao homicídio. Será que uma cidade sem horizonte
expande até o infinito a ambição pelo poder?
Na pátria-mãe, um déspota
esclarecido construiu uma nova capital, São Petersburgo, num brejo, em cima dos
ossos dos mujiques. Projetada por arquitetos importados da Itália, ela deveria
ser uma janela para o Ocidente, mas acabou sendo a cidade da Revolução. Moscou,
o coração da velha Rússia, sempre foi um centro de poder. Já nasceu em torno de
uma fortaleza, que abrigava os centros administrativos e religiosos. Os
revolucionários acabaram transferindo a capital do futuro para a capital do
passado. O Presidente Luna, que ainda não conseguiu se descartar das
falsas analogias com a Grande Revolução de Outubro, poderia ter trazido a capital
para Belogrado. Aqui, onde ele passou grande parte de sua vida, onde Vera
militou, onde o movimento operário renasceu e acabou levando-o ao poder.
Raskolnikov ao avesso,
mal chegou a Brasília, absorveu todos os gostos e inclinações do
segundo e terceiro escalões. A sua tradicional desconfiança não resistiu aos
novos horizontes. No fundo, é ingenuidade minha pensar assim. Mesmo antes, quem
o conhecia de perto, podia pressentir a sua admiração pelo poder, pelo discreto
charme da burguesia.
E eu? Agora que a classe
operária chegou ao paraíso, vou admirar o quê?
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