Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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quarta-feira, 6 de julho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte, primeiro capítulo


O Uniforme do Colégio

Sou uma vítima das mudanças. Em algum momento, alguém enfiou a pata na minha coleção de maços de cigarros, que se “extraviou”. Os livros de Tarzan foram “doados” para a biblioteca da Fraternidade. Os cadernos de escola velhos, com minhas partidas de xadrez, também não duravam muito. E não foram tantas mudanças assim: Rua do Ouro, Rua Cônego Floriano, Avenida do Contorno, Rua Euclásio. Já outras tralhas, que se enquadravam em algum misterioso critério sentimental, eram carregadas de lá para cá. É incrível a faculdade que as mães têm de saberem o que é e o que não é importante para os seus pimpolhos. Pelo menos, a camisa do Estadual ainda está na gaveta do meu armário. Uma empregada, logo depois que eu saí da clandestinidade e voltei para Belogrado, fez o grande favor de lavá-la e a tinta das canetas esferográficas vagabundas não resistiu. Era a camisa do último ano, com as assinaturas da turma. Com dezessete anos, já havia crescido quase tudo que podia, mas a camisa é estreita, não me serve mais, eu encorpei.
Todo ano, minha tia comprava meus uniformes no Mundo Colegial, na Rua Rio de Janeiro. Era um compromisso que ela havia assumido, já que o salário de minha mãe sempre foi medíocre. Minha tia só teve um emprego em toda sua vida, um cargo obscuro no Tribunal Eleitoral, com um salário de marajá. Ela era a burra da família e teve que fazer um cursinho para passar no concurso. Em casa, ela se preparava para as provas decorando as apostilas. Dizem que ia para o banheiro cantando os textos: – “... os verbos formam o pretérito perfeito do subjuntivo juntando ...”. Fico imaginando como poderia ser essa ladainha. Minha mãe, que sempre foi considerada a intelectual, conseguiu se aposentar como diretora, com um salário de barnabé. Na minha família, se fizermos um gráfico dinheiro versus inteligência, teremos um ramo de hipérbole – uma coisa é inversamente proporcional à outra.
A camisa era branca, de mangas compridas, com um bolso e o escudo do Colégio costurado – um triângulo verde, com um C e um E estilizados. O resto do uniforme era sapatos pretos e calça. Para a Educação Física, o colégio pedia meias brancas, camiseta, quedes, calção e suporte atlético. Eu nem tinha pentelhos ainda e olhei com desconfiança para o tal suporte, a primeira vez que o vi. Ele era composto de uma cinta branca, elástica, com um protetor na frente, que espremia o saco e duas tiras verticais atrás, bem estreitas. Ainda bem que não aparecia debaixo dos calções folgados de ginástica.
As calças eram feitas de um pano cinza ralo, com braguilha de botão, bolsos, vinco e tudo o mais que se usava naqueles anos. Com o tempo, o bolso ia se abrindo nos cantos, e uma parte da coxa ficava aparecendo. Eram bolsos fundos onde cabiam com folga a caderneta da escola e a carteira de dinheiro. Uma vez, a empregada, cansada de cerzir os bolsos, resolveu costurar tudo. Era uma calça relativamente nova, eu ia usá-la no enterro da avó do Paulão. Era a norma, toda vez que íamos a um enterro de parente de colega, a turma ia uniformizada. A missa foi um saco, como sempre, e eu não consegui manter a pose, em pé, segurando o colecionador com a direita e a esquerda rente ao corpo. Coloquei o colecionador no banco da igreja e tentei descansar a mão direita no bolso. Foi aí que descobri que, graças ao engenho e a arte da empregada, estava literalmente sem ter onde enfiar as mãos. 
O cinzento acima dos joelhos ia ficando esverdeado, de tanto limpar o suor das mãos e lugar onde ficavam os joelhos se transformava numa colcha de retalhos, com cerzido em cima de cerzido. As casas da braguilha iam se rasgando nos cantos, os botões teimando em não fechar direito. Eu tinha que sentar com cuidado. Os sapatos resistiam como podiam, só iam ficando brancos nos bicos, de tanto chute. Os quedes eram os que terminavam o ano melhor. A camisa ia se puindo no colarinho, onde o suor misturado com a poeira do colégio em suspensão produzia uma coloração amarelada.
O colégio foi projetado por Niemayer, provavelmente inspirado na coleção Biblioteca das Moças, que publicava M Delly. Pollyana, provavelmente. O corpo da escola era uma régua T; a caixa de água, um giz; o auditório, um mata-borrão; a cantina, uma borracha - sutil como um trator.
O prédio principal, onde ficavam as salas de aula (a régua) se erguia sobre pilotis e era acessado através de uma rampa. Nos braços pequenos da régua ficavam a biblioteca e os laboratórios. A rampa tinha o comprimento, a largura e a inclinação cientificamente calculados para permitir que, após o toque do sinal, a tropa estourada conseguisse se escoar sem que ninguém caísse pelas laterais, que eram protegidas apenas por duas barras paralelas. Uma vez um aluno fez o percurso inverso, a cavalo, mas eu não presenciei a façanha.
O mais notável no colégio era o revestimento. Debaixo da régua, havia um piso de cimento com pequenos furinhos, que pareciam feitos a dedo, dispostos num padrão simétrico de linhas e colunas. O piso foi projetado para arrancar o joelho das calças, com um bocado de pele junto, ao primeiro tombo. Debaixo do último par de pilotis, ao lado do Diretório Estudantil, ficava o nosso campo de futebol. Ali disputávamos peladas com tampinhas de refrigerantes. Eram dois para cada lado – defesa e ataque. O coeficiente de atrito e as dimensões do campo eram perfeitos, não permitiam que a tampinha chegasse ao outro lado em excessiva velocidade. Os seus praticantes eram imediatamente reconhecidos pelos joelhos das calças.
Fora da régua, o terreno era coberto de terra, ideal para a prática de bolinha de gude, nos dias de sol e para o jogo de finca, quando chovia. A lama tinha a consistência exata, que permitia que a finca penetrasse com facilidade, mesmo nos arremessos a longa distância e uma tonalidade rara de tijolo, quase marrom. As linhas do jogo podiam ser traçadas com a maior nitidez, um sulco milimétrico, que era levantado com uma elasticidade de argila, sem desprender o torrão, quando fazíamos um subterrâneo. Dizem que, uma vez, depois de uma discussão, um estudante matou o outro, com uma finca arremessada diretamente no coração. Não sei se é verdade.
O pó que se levantava nos dias de sol era um pequeno inconveniente. Muito fino, não aparecia no uniforme, mas aderia na cutícula do polegar, onde a bolinha de gude se apoiava. Ela ia engrossando, se afastando, um eclipse ao contrário, que mostrava cada vez mais a meia lua.  Mesmo nos períodos de férias, quando a prática diária do jogo era menor, os dois polegares, vistos de cima, eram bem diferentes.

O mata-borrão era um auditório. Se a gente conseguisse esquecer que ele era a réplica de um mata-borrão, dava para apreciar as suas linhas. Acho que ainda tinha a minha caneta Parker 51, azul real lavável, quando entrei para o Estadual. Nas suas carteiras de madeira havia um sulco na parte de cima, para segurar os lápis e as canetas e um buraco redondo, que eu imagino que fosse para encaixar um tinteiro. Na verdade, ele servia para despachar rapidamente as colas e os papeizinhos que circulavam durante a aula, para a parte de baixo, onde ficavam guardados os cadernos e os livros. Como é que um cara, que se pretendia moderno, usa um mata-borrão no seu projeto? Dava para ver que, um dia,  a caneta esferográfica ia chegar. Para mim foi muita caretice mesmo.
A parte de baixo, que dava para o quarteirão onde ficava a praça de esportes era escorrida, coberta de grama esturricada, com alguns arbustos. O professor de desenho do primeiro ano gostava de usar as folhas de assa-peixe como modelo de vinhetas estilizadas. Fernando Pierucetti, o Mangabeira, que criou os símbolos dos times mineiros: o Galo, o Coelho, a Raposa,  o Leão, a Tartaruga, que eu não lembro se era o Metalusina ou o Siderúrgica, e outros. Era capaz de traçar um círculo perfeito no quadro, a mão livre. Depois fazia questão de colocar o compasso de madeira no centro e conferir toda a curva, ponto por ponto. Detestava suas aulas, mas me divertia com suas histórias e o seu jeito agressivo-bonachão. Quando a vegetação seca entrava em combustão, às vezes espontânea, dava gosto ver o fogo subindo morro acima, ajudado pela topografia. A fumaça ia diretamente para as salas de aula, e os inspetores eram obrigados a tocar o sinal do intervalo. Houve pelo menos um incêndio, no meu tempo.
Em minha opinião, todas essas vantagens compensavam as deficiências do projeto.


Quando fez Brasília, Niemayer já havia esquecido essas paixões adolescentes e fez uma cidade de ficção científica, uma Alfaville de Godard. Desta vez seus moradores não conseguiram adaptá-la a um padrão mais funcional. Para Dostoievsky, um ambiente escuro e acanhado predispõe ao homicídio. Será que uma cidade sem horizonte expande até o infinito a ambição pelo poder? 
Na pátria-mãe, um déspota esclarecido construiu uma nova capital, São Petersburgo, num brejo, em cima dos ossos dos mujiques. Projetada por arquitetos importados da Itália, ela deveria ser uma janela para o Ocidente, mas acabou sendo a cidade da Revolução. Moscou, o coração da velha Rússia, sempre foi um centro de poder. Já nasceu em torno de uma fortaleza, que abrigava os centros administrativos e religiosos. Os revolucionários acabaram transferindo a capital do futuro para a capital do passado. O Presidente Luna, que ainda não conseguiu se descartar das falsas analogias com a Grande Revolução de Outubro, poderia ter trazido a capital para Belogrado. Aqui, onde ele passou grande parte de sua vida, onde Vera militou, onde o movimento operário renasceu e acabou levando-o ao poder.
Raskolnikov ao avesso, mal chegou a Brasília, absorveu todos os gostos e inclinações do segundo e terceiro escalões. A sua tradicional desconfiança não resistiu aos novos horizontes. No fundo, é ingenuidade minha pensar assim. Mesmo antes, quem o conhecia de perto, podia pressentir a sua admiração pelo poder, pelo discreto charme da burguesia.
E eu? Agora que a classe operária chegou ao paraíso, vou admirar o quê?

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