Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

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terça-feira, 12 de julho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte

As salas de aula

As salas do Estadual eram retangulares, na justa medida de cinco colunas de 6 carteiras. Cada carteira era um conjunto inteiriço, composto de uma cadeira, com assento dobrável, feito aquelas de cinema, e uma mesa, um tampo com um espaço em baixo, onde ficavam os livros e as colas. A parte de cima tinha uma ranhura onde se colocavam os lápis, e uma abertura redonda, supostamente destinada ao tinteiro, que servia para sumir rapidamente com os papeizinhos comprometedores, que às vezes circulavam pela sala. No fundo eram perfeitamente inocentes - alusões à cor da calcinha da professora, a uma colega que estava de paquete, coisas assim.
Mesa e cadeira eram unidas por duas tiras de madeira laterais, que facilitavam o deslizamento sobre o chão de tacos. Uma carteira bem impulsionada podia atravessar a sala inteira, mas as alterações do padrão retangular eram raras. Um ou outro professor experimentava colocá-las em círculo, sempre com péssimos resultados pedagógicos.
 Este número de trinta alunos por sala define a fronteira entre um ensino de qualidade, embora restrito, e um ensino de massa, de pouca qualidade. Trinta era o número máximo que um professor podia controlar, do alto do seu tablado. As escolas públicas eram frequentadas pela elite, que, democraticamente, passava por um exame de admissão. Alguns alunos mais carentes conseguiam passar por essa peneira. Eu era um típico representante da maioria, formada por alunos de classe média. Filho de professora, casada com funcionário público.  A elite preguiçosa ia para as escolas particulares, também conhecidas como boates ou PP – pagou, passou.

No terceiro ano científico, ocupava sempre a última carteira da primeira fileira do lado da porta. Eu usava um caderno de capa dura, que era arremessado contra as costas da cadeira e servia para marcar o meu lugar. Ele assistia a quase todas as aulas, enquanto eu jogava xadrez, no salão do barbeiro. Um tabuleiro só, para toda escola.
No canto esquerdo da sala, junto às janelas, havia um tablado, um quadrado onde ficavam a mesa e a cadeira do professor. Seus domínios compreendiam uma área de circulação em frente ao quadro e os corredores entre as filas de cadeira, por onde ele costumava transitar nos dias de prova.
O nosso professor de Geografia da quarta série, Juscelino Betâmio Paraíso, fazia questão de realçar a diferença entre os dois níveis com seus sapatos 44 bico largo. Ele parava na quina do tablado, um meio pé para fora e depois escorregava com um ruído seco, que marcava o exato momento em que os saltos conseguiam se livrar da borda. Isso exigia a inclinação certa do corpo, não tão à frente que ele se estabacasse, e nem tão tímida que o deixasse engastalhado. A componente do peso na direção do movimento era exatamente igual à força de atrito estático. O suspense servia para sinalizar os pontos mais importantes da matéria.
O material de geografia era uma caixa de lápis, borracha e um livro para colorir. As notas eram proporcionais à maestria em preencher as ilustrações. Uma das páginas trazia o sistema solar; uma bola gigantesca, o Sol, e outras nove, os planetas: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. Não esqueço um Sol em tons avermelhados, com gradações de preto, marrom, amarelo e laranja, cuspindo chamas, uma esfera quente e turbulenta. Obra de uma menina. Elas levavam lápis cera, algodão para passar em cima das raspas de lápis, papel de seda e outros acessórios. Nós não éramos páreo para elas.  Uma ficou famosa, gabada em todas as salas pelo professor: Hebe, a formiguinha. Ela tinha mesmo cara de formiguinha, o apelido não proveio de sua diligência. O resultado do método era um alto índice de retenção do conteúdo, a começar pelo nome do professor que persistiu, entre tantos outros, considerados ótimos mestres e que se perderam no anonimato.
Finalmente, é bom ressaltar que, embora as portas ficassem sempre fechadas depois que o Professor entrava, as salas não eram um sistema fechado. Todas tinham uma fileira de janelas ocupando a parede exterior. A parte de baixo, de vidro, era fixa e de cima, opaca era provida de amplos basculantes. A posição dos basculantes era tal que obrigava o aluno a se levantar da cadeira, se quisesse jogar alguma coisa pela janela. Isso significava, no mínimo, um olhar de reprovação do professor, que costumava interromper a frase, à espera que o aluno se sentasse. As janelas ficavam a uns quatro metros do chão do pátio.
Nos últimos anos do colégio, as turmas eram divididas em científico e clássico. Esse último abrigava alunos que fariam os vestibulares de Letras, Filosofia, Sociologia, História e outros cursos, com grande status intelectual e zero expectativa de retorno financeiro. Eram conhecidos como voadores, artistas ou fugidos da Matemática.
Para compensar o sucesso que eles faziam com as garotas, havia o Latim. No meu último ano de Estadual, uma turma do clássico ficou pendurada na prova final. Foi montada uma operação de guerra. Um aluno, que estava matematicamente reprovado, foi fazer a prova. Em pouco tempo, desceu com as questões, que foram divididas e repassadas para uma junta, espalhada pelos bancos da parte inferior da régua. Outra equipe preencheu as várias folhas de papel almaço, previamente assinadas pelos candidatos à bomba, com uma letra mais ou menos similar.
Terminadas as provas, elas foram enroladas, formando um cilindro que foi amarrado ao barbante lançado por uma das janelas. Um grande número de estudantes se reuniu na cantina, a borracha, de onde se podia ver a janela e ficou torcendo. O barbante tinha uma pedra amarrada, para dar estabilidade e marcar a altura exata em que um braço podia passar pelo basculante e alcançar o rolo. Em último caso, serviria para sumir com as provas comprometedoras, caindo com todo o aparato no pátio, fora da sala. As subidas e descidas da pedra, acompanhadas por ahs e hums, marcavam a maior ou menor vigilância do professor. Finalmente ela subiu aos arrancos e um braço rapidamente embolsou o rolo. A galera aplaudiu. Todos foram aprovados.






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