As salas de aula
As salas do Estadual
eram retangulares, na justa medida de cinco colunas de 6 carteiras. Cada
carteira era um conjunto inteiriço, composto de uma cadeira, com assento
dobrável, feito aquelas de cinema, e uma mesa, um tampo com um espaço em
baixo, onde ficavam os livros e as colas. A parte de cima tinha uma ranhura
onde se colocavam os lápis, e uma abertura redonda, supostamente destinada ao
tinteiro, que servia para sumir rapidamente com os papeizinhos
comprometedores, que às vezes circulavam pela sala. No fundo eram
perfeitamente inocentes - alusões à cor da calcinha da professora, a uma
colega que estava de paquete, coisas assim.
Mesa e cadeira eram
unidas por duas tiras de madeira laterais, que facilitavam o deslizamento
sobre o chão de tacos. Uma carteira bem impulsionada podia atravessar a sala
inteira, mas as alterações do padrão retangular eram raras. Um ou outro
professor experimentava colocá-las em círculo, sempre com péssimos resultados
pedagógicos.
Este número de trinta alunos por sala define
a fronteira entre um ensino de qualidade, embora restrito, e um ensino de
massa, de pouca qualidade. Trinta era o número máximo que um professor podia
controlar, do alto do seu tablado. As escolas públicas eram frequentadas pela
elite, que, democraticamente, passava por um exame de admissão. Alguns alunos
mais carentes conseguiam passar por essa peneira. Eu era um típico
representante da maioria, formada por alunos de classe média. Filho de
professora, casada com funcionário público.
A elite preguiçosa ia para as escolas particulares, também conhecidas
como boates ou PP – pagou, passou.
No terceiro ano
científico, ocupava sempre a última carteira da primeira fileira do lado da
porta. Eu usava um caderno de capa dura, que era arremessado contra as costas
da cadeira e servia para marcar o meu lugar. Ele assistia a quase todas as
aulas, enquanto eu jogava xadrez, no salão do barbeiro. Um tabuleiro só, para
toda escola.
No canto esquerdo da
sala, junto às janelas, havia um tablado, um quadrado onde ficavam a mesa e a
cadeira do professor. Seus domínios compreendiam uma área de circulação em
frente ao quadro e os corredores entre as filas de cadeira, por onde ele costumava
transitar nos dias de prova.
O nosso professor de
Geografia da quarta série, Juscelino Betâmio Paraíso, fazia questão de realçar a diferença entre os dois níveis com
seus sapatos 44 bico largo. Ele parava na quina do tablado, um meio pé para
fora e depois escorregava com um ruído seco, que marcava o exato momento em
que os saltos conseguiam se livrar da borda. Isso exigia a inclinação certa
do corpo, não tão à frente que ele se estabacasse, e nem tão tímida que o
deixasse engastalhado. A componente do peso na direção do movimento era
exatamente igual à força de atrito estático. O suspense servia para sinalizar
os pontos mais importantes da matéria.
O material de geografia
era uma caixa de lápis, borracha e um livro para colorir. As notas eram
proporcionais à maestria em preencher as ilustrações. Uma das páginas trazia
o sistema solar; uma bola gigantesca, o Sol, e outras nove, os planetas:
Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. Não
esqueço um Sol em tons avermelhados, com gradações de preto, marrom, amarelo
e laranja, cuspindo chamas, uma esfera quente e turbulenta. Obra de uma
menina. Elas levavam lápis cera, algodão para passar em cima das raspas de
lápis, papel de seda e outros acessórios. Nós não éramos páreo para
elas. Uma ficou famosa, gabada em
todas as salas pelo professor: Hebe, a formiguinha. Ela tinha mesmo cara de
formiguinha, o apelido não proveio de sua diligência. O resultado do método
era um alto índice de retenção do conteúdo, a começar pelo nome do professor
que persistiu, entre tantos outros, considerados ótimos mestres e que se
perderam no anonimato.
Finalmente, é bom
ressaltar que, embora as portas ficassem sempre fechadas depois que o
Professor entrava, as salas não eram um sistema fechado. Todas tinham uma
fileira de janelas ocupando a parede exterior. A parte de baixo, de vidro, era
fixa e de cima, opaca era provida de amplos basculantes. A posição dos
basculantes era tal que obrigava o aluno a se levantar da cadeira, se
quisesse jogar alguma coisa pela janela. Isso significava, no mínimo, um
olhar de reprovação do professor, que costumava interromper a frase, à espera
que o aluno se sentasse. As janelas ficavam a uns quatro metros do chão do
pátio.
Nos últimos anos do
colégio, as turmas eram divididas em científico e clássico. Esse último abrigava
alunos que fariam os vestibulares de Letras, Filosofia, Sociologia, História
e outros cursos, com grande status intelectual e zero expectativa de retorno
financeiro. Eram conhecidos como voadores, artistas ou fugidos da Matemática.
Para compensar o
sucesso que eles faziam com as garotas, havia o Latim. No meu último ano de
Estadual, uma turma do clássico ficou pendurada na prova final. Foi montada
uma operação de guerra. Um aluno, que estava matematicamente reprovado, foi
fazer a prova. Em pouco tempo, desceu com as questões, que foram divididas e
repassadas para uma junta, espalhada pelos bancos da parte inferior da régua.
Outra equipe preencheu as várias folhas de papel almaço, previamente
assinadas pelos candidatos à bomba, com uma letra mais ou menos similar.
Terminadas as provas,
elas foram enroladas, formando um cilindro que foi amarrado ao barbante
lançado por uma das janelas. Um grande número de estudantes se reuniu na
cantina, a borracha, de onde se podia ver a janela e ficou torcendo. O
barbante tinha uma pedra amarrada, para dar estabilidade e marcar a altura
exata em que um braço podia passar pelo basculante e alcançar o rolo. Em
último caso, serviria para sumir com as provas comprometedoras, caindo com todo
o aparato no pátio, fora da sala. As subidas e descidas da pedra,
acompanhadas por ahs e hums, marcavam a maior ou menor vigilância do
professor. Finalmente ela subiu aos arrancos e um braço rapidamente embolsou
o rolo. A galera aplaudiu. Todos foram aprovados.
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Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.
Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.
Divulgação literária e outros babados fortes
Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.
terça-feira, 12 de julho de 2016
O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte
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