Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

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quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - A trilha Ho Chi Minh, primeira parte

A trilha Ho Chi Minh
Sem querer, acabei abandonando o critério temporal em favor de uma abordagem temática: o colégio, os professores, o clube de xadrez. Essa escolha tem uma vantagem evidente, ela ressalta as invariantes e as transformações de meu caráter. Minhas obsessões e minhas escolhas.
A datação por artefatos, como método auxiliar vai perdendo importância, à medida em que aumenta a minha interação com o mundo exterior. A maior parte dos artefatos de minha infância e mesmo da adolescência não chegou até a idade moderna. O sabão Aristolino foi um dos que se extinguiram. Ficava em cima da pia de louça decorada, dentro de um globo de vidro preso por uma corrente. O líquido verde se acessava apertando uma peça de metal na parte de baixo da esfera. Mais uma espécie extinta: as caixas de madeira do Mate Leão, feitas de peças denteadas de madeira, que se prendiam por pressão e eram ótimas para se guardar bugigangas.

Gostava também dos potes de Rugol, um creme que minha avó usava diariamente, feitos de um plástico duro e com uma tampa de rosca toda decorada, como um camafeu. O creme parecia fazer efeito, pois ela chegou aos noventa com uma face de porcelana.
Alguns remédios, talvez mais eficazes, perduram: a Emulsão de Scott, ótima fonte de vitaminas A e D (eu adoro o seu gosto e parece que não mudaram muito o rótulo); o Polvilho Antisséptico Granado e as pastilhas Walda (tenho um monte de suas caixinhas de metal).
O Fercobre, que deixava os dentes pretos e era bom para anemia acabou. Seu sucessor, o sulfato ferroso, é um pó muito barato e sem graça, que nem embalagem tem. O avô de todos os fortificantes eram as garrafadas que o meu bisavô fazia: uma beberagem que vinha sempre com um prego enferrujado no fundo. Ao fazer um inventário destes produtos, percebo que as suas embalagens me atraiam muito mais do que o conteúdo, por mais virtuoso que ele fosse. Seria esta a minha primeira manifestação de formalismo?
O formalismo é o pior inimigo da arte socialista soviética. Seu perigo geralmente reside no fato de que ele oferece aos agentes fascistas, aos desprezíveis degenerados trotskistas, aos renegados de direita e a todos os inimigos do povo a possibilidade de difundir ideias antissoviéticas e contrarrevolucionárias, sob a capa de infinitas maquinações, manobras e “valores estéticos” independentes. (Revista Teatr, 1937)
Uma coisa é certa, eu adorava as bisnagas de plástico do Colírio Moura Brasil. Nunca usei o seu conteúdo. Pelo contrário, às vezes acabava com ele mais rápido para poder usar a bisnaga. Elas tinham um bico de plástico com um furo muito bem dimensionado. Quando cheias de água seu jato ia longe e não se dispersava. Era ótimo para produzir rajadas de metralhadora nas paredes caiadas de rosa.

A trilha Ho Chi Minh é fácil de ser datada. Foi no ano em que fiz vestibular. A guerra do Vietnã estava no auge. Os vietnamitas usavam uma trilha no meio das selvas, através do Cambodja, para abastecer os guerrilheiros que lutavam no Vietnã do Sul. E os americanos os bombardeavam diariamente, com suas B 52, que eram inacessíveis aos poucos Mig 17 e 21 do Vietnã do Norte. Os armamentos eram transportados individualmente, nas costas dos soldados, como numa enorme correição de formiguinhas. Um ano depois, houve a ofensiva do Tet, o ano lunar chinês. Fiz meu primeiro poema concreto, que me deixou muito orgulhoso.   

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