Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A trilha Ho Chi Minh - segunda parte

A minha guerra era travada no alpendre da casa da minha avó. As bisnagas de colírio eram as B 52; as formigas cortadeiras eram as outras formiguinhas humanas, os vietnamitas. Como eu já revelei, um metro abaixo do parapeito, havia um ressalto que contornava toda a casa. Ele era usado como trilha para abastecer o formigueiro. O bombardeio de água não era letal. No máximo eu conseguia acertar em cheio uma formiga, com uma gota de água, arremessando-a uns dois metros abaixo, no chão do jardim. As bisnagas podiam dar rajadas (jatos contínuos) ou tiros (gotas). Eu preferia os tiros, a água durava mais e não eram tão impessoais. Às vezes eu perseguia uma formiguinha mais rápida, com tiros que iam deixando sua marca na trilha caiada. Ela se sacrificava para permitir que suas irmãs atravessassem com sua carga preciosa. Outras vezes, era mais científico: fazia uma barreira de fogo que detinha a coluna. O bombardeio durava horas. Ás vezes, um curioso parava no passeio, para ver aquele adolescente, de óculos fundo de garrafa, brincando como uma criança.
É engraçado como cultivamos alguns medos e aversões. Toda minha adolescência foi povoada de fantasias de duelos e de brigas, no melhor estilo dos filmes B. Uma coisa eu detestava nesses filmes: aquelas cenas de batalha em que a infantaria avançava com o passo cadenciado pelos tambores, passando por cima dos soldados que iam caindo, derrubados pela artilharia do inimigo. Se alguém tem um fuzil na mão, por que não atirar? O que tem na cabeça de um sujeito que vai para a batalha tocar tambor ou carregar o estandarte do regimento?
Nas poucas passeatas em que participei, ficava sempre na retaguarda, pronto a sair correndo. Não era só uma questão de medo. Uma vez participei de uma panfletagem no Mineirão. O Mineirão foi inaugurado quando eu estava no segundo científico, com um gol de Bugleaux. A panfletagem deve ter sido no segundo ou no terceiro científico. Lembro que o Xexéu (também conhecido como Ferrugem) participou de alguma maneira. Os panfletos eram guardados dentro da meia; uma folha de meio papel ofício, mimeografada. Não lembro qual era o jogo. Ações assim, individuais, em que eu “controlava” os acontecimentos eram excitantes. Mais tarde eu faria com prazer pichações e panfletagens noturnas.
Era difícil definir como eu encarava aqueles estudantes que iam à frente das passeatas; com as faixas, muitas vezes de braços dados, formando uma corrente. Na maioria das vezes eram os primeiros a apanhar de cassetete e não tinham muito para onde correr. Primeiras manifestações de individualismo? Eu me dispunha a levar o meu fardo na trilha, junto a outras tantas formiguinhas, mas nada de ir na frente.
O que eu fazia com 17 anos na casa da minha avó? Acompanhava minha mãe, que mais uma vez havia brigado com o meu padrasto. Nas horas vagas, comia a garota retardada do vizinho e estudava para o vestibular de engenharia. Consegui sucesso nas duas empresas: passei e engravidei a garota. Perdi a guerra contra as formigas. Os americanos também perderam a sua.


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