O Clube de xadrez - última parte
Nas partidas amistosas, os trocadilhos e as provocações se cruzavam, como
num jogo de truco:
- Isso não é cavalo, é um pedaço de pau!
- Isso não é bispo, é um peão grande!
- Aceita tablas? - só se empatava (entablava) em espanhol.
Jaque! - os xeques eram dados com o
jota bem escarrado.
O espanhol era a língua do xadrez. Influência dos livros vendidos na
Livraria Científica, onde o Cota trabalhou. Até o dia em que meteu uma bala na
cabeça por causa de uma mulher.
O abandono da partida era uma marca individual: os mais dramáticos
deitavam o rei sobre o tabuleiro. Havia gradações: uns derrubavam a peça com
raiva, outros a mantinham presa pelo cocuruto com o indicador e só faziam uma
leve reverência ao adversário. Os discretos apenas paravam o relógio, igualando
a altura dos dois pinos. Os amantes do suspense escreviam abd. (Abandonam) na
planilha e depois apertavam a mão do adversário. O aperto de mão final era
praxe, algo como o abraço dos dois boxeadores depois do combate. A diferença
era que, aqui, a iniciativa devia partir sempre do derrotado. O abandono mais
espetacular que eu já vi foi num torneio em São Paulo , em que o
perdedor varreu o tabuleiro com as duas mãos, que se fecharam com uma porção de
peças no meio do tabuleiro. Depois elas foram largadas, deixando a posição
completamente destroçada. O perdedor se levantou e saiu, sem assinar a planilha
e sem cumprimentar o adversário. Mas isso é muito raro. Eu, particularmente,
preferia pular as etapas, erguer a cabeça para o adversário e apertar a sua
mão. Quem tem uma posição ganha, está
espreitando esse momento, tentando adivinhar quando e como será o abandono.
Outra regra de etiqueta, que o capivara ignora solenemente, é que não se
deve prosseguir uma partida totalmente perdida, até ficar sem todas as peças ou
levar mate. Entre mestres, a vantagem de uma peça, sem compensação, já é
suficiente. É, é obvio, um mate forçado. Não se deve insultar o adversário
presumindo que, depois de jogar melhor o tempo todo, ele não verá um lance
idiota. Uma das lições mais amargas do xadrez é essa: saber quando é a hora de desistir, de reconhecer que a partida
acabou.
Infelizmente um acidente me impediu de continuar frequentando o Clube.
Escolhi a sua sacada para uma panfletagem. Os panfletos subiram na pasta da
escola e no horário marcado, seis horas da tarde, quando eles deveriam chover sobre
todo o centro, não foi difícil chegar até a sacada sem ser notado. Eu levava dois maços de quinhentos panfletos
mal cortados, impressos em mimeografo Gestetner, com a tinta ainda úmida. Com
medo de ser visto pelos freqüentadores do clube, fui atirando os bolos
rapidamente, torcendo para eles se abrirem e se espalharem. O último não abriu e
os panfletos desceram unidos. A parábola terminou em cima do teto de um carro
estacionado, a força do atrito quase não diminuiu a aceleração e o barulho
chegou até lá em cima.
Felizmente não houve vítimas fatais. A polícia subiu pouco
depois que eu desci pelo elevador e até hoje eu sou lembrado como o cara que
quase fechou o Clube de Xadrez de Belo Horizonte.
A essa altura, eu sabia que a Revolução era o grande jogo - o pôquer da
política. Eleição, reforma, isso é buraco, jogo de mulher prenha. No xadrez, cada jogada é condicionada pela
anterior e as forças vão se exaurindo, à medida que as peças são tomadas. Uma
grande inferioridade estratégica é irreversível, pelo menos numa partida bem
jogada. No pôquer, cada mão é uma nova história. E você pode comprar mais e
mais cacifes. Basta ter culhões.
O que os bolcheviques fizeram na Rússia foi persistir no jogo, minimizar
as perdas, manter a perspectiva e não afinar nunca. Quando chegou a grande mão,
quebraram a banca e acabaram com o jogo. Isso também é conhecido como tomar o
bonde da história. O bonde demora e não passa duas vezes. Ou, pelo menos, eu
pensava assim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário