A biblioteca
A Biblioteca Pública ficava
na rota de saída do colégio. Eu descia a pé a Rua da Bahia, parava para
devolver um livro e retirava outro. Lia num ritmo de uma página por minuto,
praticamente um livro por dia. Todo Sherlock Holmes, todo Dostoievski, Allan
Poe, Chesterton, Aldous Huxley, Walter
Scott e um monte de autores menores, ingleses e americanos. Voltaire e Bertrand
Russell. Anatole France, Prosper Merimée e um monte de autores menores
franceses.
Lia sem método, pulando
estilos, países, sem recomendação de ninguém. Dostoievski me impressionou
particularmente. Seus personagens torturados, perdidos. Adorava seus enredos
melodramáticos, quase novelísticos, suas mulheres orgulhosas, que se humilhavam
para provar sua superioridade moral. Eu as via pálidas, de grandes olhos,
gargantilhas e camafeus, cabelos presos, saias negras até o chão.
Admirava suas discussões
teológicas, seu eslavismo, sua exacerbação. Os nomes que eu pronunciava à
brasileira (Karamazóv e não Karamázov), os estranhos costumes, os prédios com
vários apartamentos, pequenos quartos alugados e um pátio. Era um escritor que
contabilizava cada copeque. Dostoieviski fazia questão de discriminar o valor em rublos
de cada propriedade, o salário de cada pequeno funcionário, o valor de cada
garrafa de vodka barata.
Estranhamente, nunca
pensei em escrever.
Acho que era muito crítico, tinha padrões muito altos.
Detestava as aulas de português, a poesia e as redações obrigatórias. Gostava
de fazer resenhas de livros. Na maior parte das redações, os meus colegas
buscavam os efeitos fáceis, as descrições de paisagem com o sol sempre se
pondo, ou nascendo. Eu fazia uma redação padrão, dissertativa, sem grandes voos.
Lembro-me de uma redação
que fez sucesso na escola. O soldado, perdido do batalhão, no meio da neblina, escutando
cada ruído. Era jovem, arrimo de família, não entendia o porquê da guerra,
queria viver, aqueles clichês todos. Alto, quem vem lá! Era amigo. E tome
discurso. Até o fim triunfal. Um estalo. Quem vem lá! Era o inimigo.
A maior parte de minha
cultura inútil foi adquirida na adolescência. Adquiri a arte de pesquisar
rapidamente um assunto, de estabelecer correlações e me tornei definitivvamente
um autodidata. Meu vocabulário era enorme, possuía um conhecimento
enciclopédico de países, cidades, costumes, moedas, etc. Karl May foi lido de
cabo a rabo. Sabia os nomes dos animais amigos do Tarzan, as palavras da
linguagem dos gorilas, um monte de expressões em árabe, as peças de uma
armadura medieval e por aí vai.
Era o mais novo da turma,
um dos mais baixos. Óculos fundo de garrafa, tártaro nos dentes, desajeitado.
Não sabia dançar nem andar de patins e caia da bicicleta.. Tímido, poucos
amigos, sofri nos primeiros anos com as piadas e as alusões sexuais que não
entendia. O espelho era meu inimigo. Gordinho, feio, a testa curta, o nariz
chato, o queixo redondo. Até chegar aos 15.
Por isso que você escreve tão bem, Marco. De maneira que captura nossa atenção. Este hábito na infância/adolescência. Eu comecei a ler muito cedo também ,mas era muito lento para ler e grandes tomos, como os do Tarzan, para mim, eram desanimadores. Eu li bastante Monteiro Lobato no antigo primário e tudo quanto é literatura na adolescência.
ResponderExcluirO livro está um belo mosaico. Parabéns e continue!