Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Meu 11 de setembro

Setembro de 1973, eu estava em São Paulo, clandestino. Enquanto isso, minha diretoria da UNE se dissolvia. Eu havia saído de Porto Alegre, depois de uma série de prisões. Fui primeiro para Caxias, onde fiquei na casa do Ernesto, velho militante do PCB.

Um dos temas, inevitável, de nossas conversas, era a situação do Chile. Minhas previsões eram pessimistas: o golpe era iminente. Seria uma reedição do golpe de 64. Mais um na série de golpes militares que assolaram o continente nos anos 70. Ernesto discordava. Segundo ele, eu não confiava na força da classe operária chilena. Não chegamos a um acordo.
Em São Paulo, ironicamente, eu fiquei numa pensão da Lapa, perto do aparelho do PC do B que seria estourado em 1976. Quando vi as fotos da sala, com o sofá e a mesa de centro, reconheci o local onde havia me reunido com parte do Comitê Central várias vezes, desde 1970.

(Foto da chacina da Lapa, com os corpos de Ângelo Arroyo e Pedro Pomar)

Da pensão de Dona Pierina guardo algumas lembranças. A dona, uma italiana que adorava Fernet, muito branca, com a pele macilenta. Um hóspede, negro, que curtia a novela O Bem Amado, que assistíamos na televisão da sala comum.
Estávamos em pleno governo Médici, na véspera da ofensiva final contra a Guerrilha do Araguaia. O PC do B estava sendo exterminado nas cidades. Em dezembro de 72, caiu o sítio em Jacarepaguá.  Onde eu havia me reunido algumas vezes com Lincoln Oest, Carlos Danielli e Guilhardini, do Comitê Central. Todos assassinados.
Lembro vagamente de um militante do Espírito Santo, que participou de uma dessas reuniões. Era o Foedes, que entregaria o sítio e o partido no seu estado. Miriam Leitão foi presa, em consequência dessa delação.
O Bem Amado, de Dias Gomes, era uma parábola sobre o poder. Falava do coronelismo, mas podia ser lida como uma crítica aos generais. Não me lembro do nome do meu companheiro de pensão, o negro que curtia a novela. Por um ou outro comentário, eu percebia que ele ia além de uma leitura imediata da trama.
Um dia de setembro, pela manhã, veio o golpe. Que assisti em preto e branco, narrado segundo a versão de Pinochet. Á noite a Junta Militar já havia assumido o poder. 300 mil pessoas foram presas, 35 mil torturadas, pelo menos 3 mil assassinadas nos primeiros dias do golpe e mais de 30 mil durante o regime Pinochet. Lembro de o negro ter comentado que Allende era um homem bom.
O Bem Amado virou uma série, em 1980. O Chile elegeu e reelegeu Bachelet, que foi para a clandestinidade, depois do golpe, sendo presa e exilada. O Brasil saiu do regime militar em 1985. Alguns dos militantes que participaram dessa luta estão de volta à cadeia. Dessa vez por corrupção. Houve um outro 11 de setembro, que ofuscou a queda de Allende.
Se a História se repete, é certo, com novos atores e novos enredos, temos que procurar o similar do impeachment de Dilma no impeachment de Collor. Dilma não é Getúlio, muito menos Jango, menos ainda Allende. O PT não é de esquerda e os militares estão nos quartéis (menos na Venezuela).
Eu também mudei, só não perdi aquela mania de me apegar à realidade, por mais que ela contrarie os meus desejos.

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