Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte

Os Quinze

O espaço-tempo é relativo. De 12 anos até os 15 e dos 15 até os 17, decorrem décadas.  Equivalem à distância entre os 30 e os 40 ou entre os 40 e os 50. Por uma questão de proporção, é preciso escolher alguns anos mais emblemáticos, mesmo com o risco de deixar de fora eventos muito significativos. Como eu vou e volto nesse contínuum, ora visitando o passado com minha consciência presente; ora recuperando meus olhos de criança ou de adolescente; o que ficou para trás será retomado em algum momento, se valer a pena.
Os 15 são definitivamente um divisor de águas. Nesse ano, nasceu uma barba cerrada, que me permitia assistir os filmes de 18 anos. Deixei para trás aqueles vergonhosos 1,60 m. Emagreci. Entrei para o primeiro científico. Turma mista.
Deixei de ser um bicho do mato que sofria com as brincadeiras dos colegas mais velhos. A turma saia junta para beber, para as festas e excursões. Em vez de colecionar maços de cigarros, tornei-me um consumidor. As preferidas eram as cigarrilhas Vedete. Baratas e fáceis de serem escondidas. A primeira namorada só veio aos 17, mas as primeiras experiências sexuais, com a vizinha da minha avó, começaram nessa época. 
O que eu pensava das coisas em geral, da existência, do meu lugar no Universo? Lembro uma conversa embaraçosa com o Xexéu. O apelido era devido ao cabelo meio alourado e desgrenhado, parecido com a plumagem do passarinho. A turma era um zoológico. O Cobra era Cobra por força do sobrenome. O Bezerro, por ser a cria preferida da Vaca Holandesa, nossa professora de matemática. Que devia o apelido aos seus grandes olhos azuis e desesperados. E a uma certa pachorra bovina, com que reagia às brincadeiras pesadas da turma. O Bezerro tinha o cabelo curto e empastado – consequência das lambidas da Vaca. O Barrão era mais velho e ostentava uma pança digna de um porco novo inteiro. Acho que o zoológico terminava com esses espécimes. Havia o Buick, não sei por que cargas d’água. O Maranhão, por conta de seu estado natal. E eu, Garrafa, por conta dos óculos fundo de garrafa, graças a uma miopia que só me permitia contar os dedos da mão do oculista até um metro de distância.
Certo dia, eu havia passado na Biblioteca e descido a Bahia para o centro, com o Xexéu, que ia pegar o ônibus para Santa Tereza. Bem na Afonso Pena, onde íamos nos separar, ele me pergunta, sem maiores introduções: o que você acha do homem?
O Xexéu, Ferrugem ou Beatnik, tinha a cara dos anos sessenta: barbicha rala e óculos de intelectual. Era enturmado com a esquerda católica. Que, a essas alturas, estava deixando Maritain para trás e mergulhando em um humanismo mais engajado. Eu lia de tudo e não sintetizava nada daquela mistureba de Dostoievsky com Bertrand Russel. Em política, era contra os militares e os americanos e apoiava o socialismo, o que não queria dizer muita coisa. A maioria no Estadual pensava assim.
Eu queria ser livre, antes de mais nada. E mergulhar de cabeça nas novas experiências. Queria ser campeão mundial de xadrez. Queria dar uma carga de baioneta e morrer como um herói. Queria beber como um herói. Queria me envolver com uma daquelas heroínas de Dostoievsky, bem trágica.

- O que eu acho do homem? Eu gosto é de mulher. O resto da cena, piedosamente, se perdeu. Não sei como terminou aquela conversa constrangedora.

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