Tenho a
planta da casa desenhada de memória, com seus quartos imensos e sua sala cúbica
(cinco por cinco por cinco), onde eu e meu avô caçávamos leões. As portas eram
de canela e a da cozinha tinha uma tranca, uma tira de ferro pesada, presa em uma
argola, de um lado, e apoiada em um encaixe, do outro. As chaves eram imensas,
pesadas, de ferro batido.
O
terreno era inclinado e triangular. A base dava para a rua e ficava num nível inferior.
A casa fora construída há mais de trinta anos, com paredes de quase meio metro
de espessura, no andar de baixo. Nela havia um porão, onde se guardavam a lenha
e os escorpiões. Neste andar, moravam Elza, enteada de minha avó, seu marido
José e a filha Beatriz. Os cômodos da casa eram imensas caixas de ressonância
e, encostando o ouvido no chão de tábuas corridas, eu me divertia escutando as
discussões do casal.
À
noite, com a mudança de temperatura, o assoalho e o teto estalavam o tempo
todo. Na cama, encolhido debaixo das cobertas, eu fingia dormir, enquanto tentava
adivinhar a direção dos passos que percorriam a casa. Meu tio ficava fora a
maior parte do tempo e eu tinha um quarto imenso, só para mim. Entre os dois
andares havia um ressalto de uns oito centímetros, onde um pé de criança podia
se apoiar. Eu fazia constantes expedições de busca ao quarto das empregadas,
saindo pela janela do banheiro, que ficava na parte de trás, segurando na calha
de chuva para contornar a quina da casa e andando mais uns cinco metros, colado
na parede. Depois era só subir pela jardineira de alvenaria que ficava na
janela do quarto.
O
terreno permanece com o mesmo número, 247. Em cima dele há um edifício de
apartamentos. Parece menor. São as distorções do tempo e do espaço, que tenho
que descontar, quando saio em minhas excursões arqueológicas. Meus olhos são
olhos de criança. Quando voltei a Belogrado, logo depois da Revolução, caminhei
um dia inteiro por suas ruas, sem destino. A cidade havia encolhido.
Como
foi lá que passei a minha adolescência, e lá que atingi a minha estatura atual,
concluo que as memórias de criança são mais persistentes. Os sonhos que eu
tenho, quando se passam em um local determinado, são todos nesta casa. O tempo
dessas lembranças é lento e difuso.
O
terreiro era meu território de caça, onde passava a maior parte do tempo. Às
vezes entrava na cozinha para apanhar um punhado de feijões nas latas de
mantimentos que ficavam embaixo da pia. Eram latas de banha, de vinte litros e
a do feijão ficava sempre do lado esquerdo. Os feijões serviam de projéteis
para as zarabatanas de canudo de mamona. Quando Alzira, a empregada, resolvia
vigiar o arsenal, eu mudava para os cones de papel. Os melhores eram feitos com
as páginas de O Cruzeiro, mas eles não tinham muita direção e nem potência.
As
armas primitivas eram as zarabatanas e o bodoque de galho de espirradeira. A
gominha é de outra idade. A caça era abundante no pequeno tanque, abaixo do
galinheiro. Havia duas espécies de maribondos, os comuns, com o abdômen
listrado de preto e amarelo e os maribondos cavalos, grandes, pretos e
lustrosos. Quando amassados deles saia uma gosma branca. Eram mais perigosos do
que os leões e, às vezes, eu também tinha que sair correndo. Meu avô já não me
acompanhava nestas expedições.
Havia
também os pardais, as pombas e as aranhas. As epeiras, de jardim, e as grandes
aranhas, que ficavam nas bananeiras. Estas se enovelavam todas quando atingidas
e a gosma que saía delas era amarelada. Além das saúvas, que se engalfinhavam
até a morte, depois que se arrancavam as suas antenas. Elas iam se podando, com suas mandíbulas
cortantes e no final restavam só os troncos e algumas pernas.
Do
lado de dentro ficavam os esconderijos: na sala, atrás do sofá. Nos quartos,
debaixo das camas e dentro dos armários, no banheiro, dentro do cesto de roupas
sujas. Na sala ainda não havia a televisão, apenas a eletrola de olho de boi. A
pré-história foi uma era silenciosa e de grandes explorações.
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