Pesquisa histórica (continuação)
E aqui estou, encostado no Instituto de História da Revolução de Belogrado, esperando a qualquer momento ser preso. Outro dia, o Presidente garantiu-me que não há motivo para receios, que não há nada de concreto contra mim, além de fofocas e de ninharias.
“O Presidente Luna fede à
traição. ” Acredito que esse meu comentário, repetido em algumas ocasiões, num
círculo muito restrito, chegou até ele. Eu não faço nada mais sério do que
resmungar comentários desse tipo, de que mais poderia ser acusado? Algo assim
nunca seria perdoado, mesmo partindo de um companheiro dos velhos tempos. Penso
até que o fato de partir de um antigo camarada é um agravante.
Fofocas e ninharias.... Seria
ótimo se tivéssemos o direito de fofocar e de falar ninharias, mas a Revolução
não se permite esse luxo pequeno burguês. Ela está sob constante ameaça e o
inimigo utiliza todo tipo de armas para combatê-la. Tão perigosa quanto a
sabotagem é a maledicência contra os dirigentes do Partido. Eu seria declarado
culpado na mesma hora, se alegasse que as acusações contra mim eram baseadas em
fofocas e ninharias.
Se oficialmente não
existem acusações, só fato de não saber do que poderia ser acusado é uma prova
de meu comportamento esquivo e malicioso. Voltando às fofocas, qualquer
militante de base sabe que esse é o disfarce que os renegados usam para
encobrir os seus ataques contra a Revolução. Um revolucionário não pode fofocar
ou dizer trivialidades. Pouco importa que eu não seja mais militante do
Partido: se não me comporto como um revolucionário, sou um contrarrevolucionário.
Mesmo fora do Partido Bolchevique, estou atado às suas concepções.
Não entendo a demora em
iniciar o meu processo. Talvez porque, depois de mim, não haverá mais ninguém
dos antigos para condenar; ou porque, dessa vez, resolveram caprichar na peça
acusatória. Antes disso, Luna pretende saborear o meu desespero, implorando
perdão por um crime que eu não cometi, e pelo qual sequer fui acusado.
Bukharin fez sua jovem
esposa decorar uma carta aos camaradas de um futuro Comitê Central “que terão a missão histórica de dissipar a monstruosa nuvem de crimes
que se torna cada vez mais imensa nestes tempos assustadores, incendiando-se
como uma chama e sufocando o partido.(...) Agora, nestes dias que serão
provavelmente os últimos de minha vida, tenho confiança de que mais cedo ou
mais tarde o filtro da história inevitavelmente retirará a vileza que pesa
sobre minha cabeça. (...) Peço que uma geração jovem e honesta de líderes do
partido leia minha carta ante um pleno do partido, a fim de me absolver. (...) Saibam,
camaradas, que nesse estandarte que vocês conduzirão na marcha vitoriosa para o
comunismo, há também uma gota do meu sangue”. Esses russos sempre
foram melodramáticos.
Não farei nada parecido.
Nunca fui Bukharin. Quando muito, sobrevivo nos interstícios da História, nas
notas de pé de página, até o dia em que serei um verbete de duas linhas, na
Grande Enciclópedia Eletrônica da RBSOC. Num futuro tribunal da História, quem seriam
os meus juízes? Direita e esquerda, proletários e burgueses, tudo isso já se
misturou, se fundiu e se confundiu. Talvez eu devesse me dirigir às massas. Mas
a cada dia eu compreendo com mais clareza que nunca compreendi as massas e que
elas nunca me compreenderão. Não importa, farei um último balanço, uma
tentativa de achar síntese, um sentido, se é que tal coisa existe. Na pior das
hipóteses, se não descobrir o porquê, pelo menos reconstituirei o como.
Uma coisa é certa: nada
de diletantismo. Brinquedos, embalagens, artefatos - esse filão já se esgotou.
Pesquisa histórica de verdade. O trabalho no Instituto permite que eu vasculhe
todo o material dos anos da minha infância e juventude: jornais, almanaques,
revistas, arquivos municipais, tudo o que possa estar vagamente relacionado com
a história do Partido Bolchevique.
Estou tecendo uma teia
que se apoia sobre vários fios radiais: os filmes, os programas de televisão,
as músicas, os jogos de futebol, os crimes e outros acontecimentos marcantes.
Esses fios por sua vez estão amarrados por uma série de fios paralelos, que
formam uma sucessão de polígonos concêntricos: a cronologia política. Essa
teia, parecida com aquelas que as epeiras teciam nos jardins da Rua do Ouro,
vai permitir a captura de um ou outro inseto mais suculento - um ponto de
inflexão, um momento de crise, um conflito chave, sabe-se lá o que.
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