Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - fim da primeira parte

Pesquisa histórica (continuação)

        E aqui estou, encostado no Instituto de História da Revolução de Belogrado, esperando a qualquer momento ser preso. Outro dia, o Presidente garantiu-me que não há motivo para receios, que não há nada de concreto contra mim, além de fofocas e de ninharias.

“O Presidente Luna fede à traição. ” Acredito que esse meu comentário, repetido em algumas ocasiões, num círculo muito restrito, chegou até ele. Eu não faço nada mais sério do que resmungar comentários desse tipo, de que mais poderia ser acusado? Algo assim nunca seria perdoado, mesmo partindo de um companheiro dos velhos tempos. Penso até que o fato de partir de um antigo camarada é um agravante. 
Fofocas e ninharias.... Seria ótimo se tivéssemos o direito de fofocar e de falar ninharias, mas a Revolução não se permite esse luxo pequeno burguês. Ela está sob constante ameaça e o inimigo utiliza todo tipo de armas para combatê-la. Tão perigosa quanto a sabotagem é a maledicência contra os dirigentes do Partido. Eu seria declarado culpado na mesma hora, se alegasse que as acusações contra mim eram baseadas em fofocas e ninharias.
Se oficialmente não existem acusações, só fato de não saber do que poderia ser acusado é uma prova de meu comportamento esquivo e malicioso. Voltando às fofocas, qualquer militante de base sabe que esse é o disfarce que os renegados usam para encobrir os seus ataques contra a Revolução. Um revolucionário não pode fofocar ou dizer trivialidades. Pouco importa que eu não seja mais militante do Partido: se não me comporto como um revolucionário, sou um contrarrevolucionário. Mesmo fora do Partido Bolchevique, estou atado às suas concepções.
Não entendo a demora em iniciar o meu processo. Talvez porque, depois de mim, não haverá mais ninguém dos antigos para condenar; ou porque, dessa vez, resolveram caprichar na peça acusatória. Antes disso, Luna pretende saborear o meu desespero, implorando perdão por um crime que eu não cometi, e pelo qual sequer fui acusado.
Bukharin fez sua jovem esposa decorar uma carta aos camaradas de um futuro Comitê Central  que terão a missão histórica de dissipar a monstruosa nuvem de crimes que se torna cada vez mais imensa nestes tempos assustadores, incendiando-se como uma chama e sufocando o partido.(...) Agora, nestes dias que serão provavelmente os últimos de minha vida, tenho confiança de que mais cedo ou mais tarde o filtro da história inevitavelmente retirará a vileza que pesa sobre minha cabeça. (...) Peço que uma geração jovem e honesta de líderes do partido leia minha carta ante um pleno do partido, a fim de me absolver. (...) Saibam, camaradas, que nesse estandarte que vocês conduzirão na marcha vitoriosa para o comunismo, há também uma gota do meu sangue”. Esses russos sempre foram melodramáticos.
Não farei nada parecido. Nunca fui Bukharin. Quando muito, sobrevivo nos interstícios da História, nas notas de pé de página, até o dia em que serei um verbete de duas linhas, na Grande Enciclópedia Eletrônica da RBSOC.  Num futuro tribunal da História, quem seriam os meus juízes? Direita e esquerda, proletários e burgueses, tudo isso já se misturou, se fundiu e se confundiu. Talvez eu devesse me dirigir às massas. Mas a cada dia eu compreendo com mais clareza que nunca compreendi as massas e que elas nunca me compreenderão. Não importa, farei um último balanço, uma tentativa de achar síntese, um sentido, se é que tal coisa existe. Na pior das hipóteses, se não descobrir o porquê, pelo menos reconstituirei o como.
Uma coisa é certa: nada de diletantismo. Brinquedos, embalagens, artefatos - esse filão já se esgotou. Pesquisa histórica de verdade. O trabalho no Instituto permite que eu vasculhe todo o material dos anos da minha infância e juventude: jornais, almanaques, revistas, arquivos municipais, tudo o que possa estar vagamente relacionado com a história do Partido Bolchevique.
Estou tecendo uma teia que se apoia sobre vários fios radiais: os filmes, os programas de televisão, as músicas, os jogos de futebol, os crimes e outros acontecimentos marcantes. Esses fios por sua vez estão amarrados por uma série de fios paralelos, que formam uma sucessão de polígonos concêntricos: a cronologia política. Essa teia, parecida com aquelas que as epeiras teciam nos jardins da Rua do Ouro, vai permitir a captura de um ou outro inseto mais suculento - um ponto de inflexão, um momento de crise, um conflito chave, sabe-se lá o que.


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