Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico Quinto capítulo


Os doces






        Minha infância foi açúcar puro, sem adoçantes artificiais. O grosso desse açúcar vinha da produção caseira, com destaque para o doce de figo verde. Os figos eram colhidos por meu avô, no quintal. Depois de colhidos, ele lixava, com uma lixa fina, furava com um garfo e os colocava de molho, para depois serem cozidos e ganharem calda. Meu avô estava em casa o tempo todo, a não ser quando saia para resolver uns assuntos misteriosos.  Ou quando ia ao Mercado Central, comprar laranja serra d’água.

A serra d’água era pequena, doce e com muito caldo, bem diferente das laranjas grandes e aguadas, que agora usurpam o nome. Um cento cabia numa saca. Nos degraus da escada da cozinha, que dava para o quintal, passávamos um tempão descascando e chupando laranjas. Eu gostava de descascar de gomo, em vez de chupa-chupa, uma operação difícil, por causa da pele fina da fruta.
No Mercado Central havia a matéria prima do meu doce predileto: o doce de laranja da terra. As cascas ficavam de molho dentro de uns latões de 20 litros, cortadas parcialmente em cruz, de modo que as quatro partes permanecessem unidas. A vendedora enfiava a mão no latão, sacudia a água e embalava as cascas. Depois enxugava a mão no avental e fazia o troco. Alzira só cozinhava e fazia a calda. O azedinho-doce era inigualável.
Os ingredientes para os outros quitutes eram guardados na despensa. A lata de banha com açúcar cristal ficava debaixo da pia, junto à de arroz e à de feijão. Nos fins de semana, alternavam-se os bolos, as gelatinas, os pavês e os biscoitos cozidos. As balas puxa-puxa eram feitas no tacho de cobre, com açúcar cristal. Minha avó usava o açúcar refinado para polvilhar o pão doce com manteiga, que ela chamava de pão com pó de pirlipimpim. Ele também era colocado no tomate, cortado ao meio. Os abacates, depois de seccionados, levavam algumas gotas de limão e tinham a cavidade do caroço preenchida com açúcar refinado. Eram comidos de colherinha. Tudo era adoçado.
Além dos manufaturados e dos semimanufaturados, havia os derivados do cacau: as moedinhas douradas de chocolate, que eu costumava ganhar de aniversário, os cigarrinhos de chocolate com leite e as Nhá Bentas, que minha mãe comprava na Loja da Kopenhagen.. A Nhá Benta vinha em uma caixa de papelão, com a figura de uma vovó. Era uma pequena montanha de marshmallow, com uma base de waffer, coberta por uma camada fina de chocolate. A Kopenhagen ficava na esquina de Tamoios com Afonso Pena. Depois da aula, nós saíamos do Instituto de Educação e descíamos a Afonso Pena até a Rio de Janeiro. O ônibus para o Bairro da Graça ficava na Tupinambás. Eu fazia o primário e ela o curso normal.
Todo ano, passávamos as férias no Espírito Santo e trazíamos caixas e caixas de bombons Garoto. Eu não gostava dos redondos, exceto o Sonho de Valsa, e nem dos recheados de coco. Escolhia primeiro os quadrados, depois os recheados com uma massa meio azedinha, de tamarindo. No Espírito Santo ficavam o Centro Espírita do Caboclo Tabajara, onde o meu padrasto havia sido iniciado, e as praias: Nova Almeida, Marataízes, Guarapari, Anchieta, Iriri, Jacareípe, etc.
A dieta de carboidratos e açúcar produzia um saudável sobrepeso, sinal de saúde. O modelo era o famoso Bebê Johnson, que era escolhido num concurso entre os mais corados e rechonchudos. Eu mesmo era candidato a um prêmio de robustez infantil. As cáries eram um efeito colateral.
A complementação dessa dieta era feita com a deliciosa farinha láctea Nestlé (outro fóssil!), mandiopã, sucrilhos Kellogs e outras fontes calóricas e ou energéticas. Indo para o Instituto de Educação, levava na merendeira a vitamina de abacate manteiga, um mingau num belo tom esverdeado. O chiclete era considerado um péssimo hábito, embora tolerado. Não se admitia o seu uso nas salas de aula ou na frente dos adultos.
Ainda no terreno dos carboidratos havia os biscoitos Maisena e os champanhe, que se comiam encharcados de leite. Lembro um dos Lobatos, de Vitória, enchendo o meio de dois biscoitos Maria com manteiga, espremendo e lambendo as minhoquinhas que saiam pelos furos. Ele chamava mesmo de minhoquinhas, aqueles vermes de manteiga. Não era à toa que tinha dentição de tubarão, com um dente caindo após o outro. O leite vinha em garrafas de litro, entregues na porta ou vendidos nas vaquinhas. Não existia leite desnatado, leite A, B e C, ou qualquer outro leite adjetivado. Havia o leite da CCPL e pronto (A sigla queria dizer: Comeram o Cu do Pobre Leiteiro).
Eu enjoava em qualquer viagem um pouco mais longa, fosse de ônibus, de carro ou de trem. Quando íamos para o Espírito Santo, a expedição incluía o tradicional frango com farofa e para mim, que ficava praticamente em jejum, ameixa pretas. Foi em Vitória, no Hotel Majestic, de Dona Elvira, que experimentei o feijão preto, de gosto esquisito e que sujava o prato.
Quando mudei para o Bairro da Graça, deixei a excelente culinária da Alzira. A sua irmã, Angélica, nos acompanhou, mas a comida não tinha o mesmo paladar. Havia um prato especialmente detestável: miolo de boi, que não sei por que, me empurravam dizendo que era mandi, um peixe. Fígado era outra tortura.  É claro que a regra de ouro era: botou no prato tem que comer, dando graças a Deus porque não ser como as criancinhas pobres, que sonhavam com um prato daqueles. Eu comia, e elas continuavam com fome. Com o tempo, fui vencendo essas rejeições, mas uma ficou: detesto jiló. Que minha mãe adora, é claro. Ela acabou aderindo ao adoçante e ao óleo de soja, mas não abandonou os doces, os biscoitos e os bolos. Como é que algo que nos alimentou a infância toda pode  nos fazer mal?



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