Pesquisa histórica
Meu projeto inicial
compreendia a datação por eras, baseada na estratégia de Hiparco para
determinar o brilho aparente dos acontecimentos e na busca de artefatos. Infelizmente,
não foi possível prosseguir com essa abordagem. Não passei de uma dúzia de páginas,
que imprimi e arquivei numa pasta, faz algum tempo.
Hoje, na nossa República
Brasileira dos Sindicatos de Operários e Camponeses, nem mesmo a memória é um
local seguro. Ainda assim, eu confio no papel, porque sei que não há melhor
lugar para uma pesquisa comprometedora do que o Instituto de História da
Revolução de Belogrado, cuja principal tarefa é arquivar os fatos que não devem
ser divulgados. Foi muito próprio da maneira de pensar do Presidente colocar-me
à frente do Instituto. Eu passei a responder pessoalmente por qualquer
vazamento e tornei-me o melhor guardião de sua biografia. Ele sabe que tenho a
sensibilidade necessária para distinguir os fatos que poderiam desagradá-lo,
embora também saiba, com absoluta certeza, que nada será capaz de arranhar sua
imagem.
O Presidente Luna adora
se ver ainda jovem, imortalizado no bronze, a mirada no infinito, como que
antevendo o futuro, as superfícies chapadas se interceptando em ângulos
incisivos, transbordante de energia e de decisão, conflitando com o que era o
rosto redondo, de traços amolecidos, sempre sorridente e solícito, do único
operário do Comitê Regional do Partido Bolchevique de Minas Gerais.
Um artista inspirado
conseguiu criar, a partir de uma foto antiga, esse molde. Com o aval do Grande
Líder, milhares de bustos, de todos os tamanhos, passaram a povoar as praças e
os parques de Belogrado. De todo o país, na verdade, mas eu estou
definitivamente confinado aqui, onde os meus passos são vigiados por esse
exército de bronze.
O busto é uma obra de
ficção, comparável à História do Partido Bolchevique do Brasil, que transformou
o desligamento do Camarada Gervásio por omissão no cumprimento das tarefas
partidárias, na perda de contato com o Partido, devido à repressão que se
seguiu ao Primeiro Grande Ensaio da Revolução. Os retratos oficiais do Grande
Líder são evoluções dessa foto primitiva, ou melhor, desse mesmo molde. Com os
recursos gráficos do computador não precisamos recorrer ao pincel de retoque, nem
de aplicar a tesoura aos negativos de antigas fotos granuladas. O tempo é
generoso com o nosso Líder.
Embora o papel do Grande Timoneiro
seja irretocável e definitivo, sou obrigado a realizar pesquisas e a
publicá-las. Todas elas absolutamente irrelevantes, uma leve pátina que colore
o metal, assinalando a passagem benevolente do tempo. Elas costumam ser
assinadas por uma equipe e o meu nome aparece esporadicamente, como
coordenador. Entretanto, é o meu pescoço que está em jogo.
Ultimamente, tenho me
detido muito nos tempos em que fazia parte do Comitê Estudantil do Partido Bolchevique
de Belogrado, junto com Verônica, Ivã, Dimitri e Koba. Verônica e Ivã morreram
no Araguaia. Dimitri continua no partido, num posto secundário, onde não corre
riscos e Koba não viveu para ver os pequenos tomarem o poder. Ele odiava os
pequenos burgueses - os pequenos, como dizia.
Muitas vezes, brincando,
ele me chamava de o Bukharin do partido. O Bukharin original era “o benjamim
dos bolcheviques russos”. O irmão menor foi um grande teórico marxista, muito
culto, embora desprovido de malícia na prática política. Aliou-se a Stalin na
luta contra Trotsky, Kamenev e Zinoviev. Foi liquidado, depois que a velha
guarda foi varrida. Com certeza, era à
sua erudição que Koba se referia.
Essa minha fixação pela
teoria já havia aflorado com o xadrez. Um dos meus primeiros livros de xadrez
estava escrito em russo – Curso de aberturas, de Panov. Comprei o Manual de
Língua Russa, da Potapova e, em pouco tempo, consegui saber que Фишер era Fischer.
Com um pouco de esforço, fiquei conhecendo o nome das peças e os adjetivos que indicavam
se uma jogada era boa ou ruim.
Eu não conseguia jogar
uma abertura sem conhecer as suas variantes principais. Não era tanto
insegurança, era mais uma exigência que fazia a mim mesmo. Meu sonho era me
tornar um grande mestre e não admitia tratar o xadrez com frivolidade. Era um
desrespeito ao jogo me meter em complicações cujo segredo eu não dominasse. O
engraçado é que, nas partidas intermináveis que jogava com Roberto, o meu
conhecimento teórico não conseguia se sobressair. Lênin estava certo, primeiro a gente se
engaja no combate, depois se vê o que fazer.
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