Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

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segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - sexto capítulo

Pesquisa histórica

Meu projeto inicial compreendia a datação por eras, baseada na estratégia de Hiparco para determinar o brilho aparente dos acontecimentos e na busca de artefatos. Infelizmente, não foi possível prosseguir com essa abordagem. Não passei de uma dúzia de páginas, que imprimi e arquivei numa pasta, faz algum tempo.
Hoje, na nossa República Brasileira dos Sindicatos de Operários e Camponeses, nem mesmo a memória é um local seguro. Ainda assim, eu confio no papel, porque sei que não há melhor lugar para uma pesquisa comprometedora do que o Instituto de História da Revolução de Belogrado, cuja principal tarefa é arquivar os fatos que não devem ser divulgados. Foi muito próprio da maneira de pensar do Presidente colocar-me à frente do Instituto. Eu passei a responder pessoalmente por qualquer vazamento e tornei-me o melhor guardião de sua biografia. Ele sabe que tenho a sensibilidade necessária para distinguir os fatos que poderiam desagradá-lo, embora também saiba, com absoluta certeza, que nada será capaz de arranhar sua imagem.
O Presidente Luna adora se ver ainda jovem, imortalizado no bronze, a mirada no infinito, como que antevendo o futuro, as superfícies chapadas se interceptando em ângulos incisivos, transbordante de energia e de decisão, conflitando com o que era o rosto redondo, de traços amolecidos, sempre sorridente e solícito, do único operário do Comitê Regional do Partido Bolchevique de Minas Gerais.
Um artista inspirado conseguiu criar, a partir de uma foto antiga, esse molde. Com o aval do Grande Líder, milhares de bustos, de todos os tamanhos, passaram a povoar as praças e os parques de Belogrado. De todo o país, na verdade, mas eu estou definitivamente confinado aqui, onde os meus passos são vigiados por esse exército de bronze.
O busto é uma obra de ficção, comparável à História do Partido Bolchevique do Brasil, que transformou o desligamento do Camarada Gervásio por omissão no cumprimento das tarefas partidárias, na perda de contato com o Partido, devido à repressão que se seguiu ao Primeiro Grande Ensaio da Revolução. Os retratos oficiais do Grande Líder são evoluções dessa foto primitiva, ou melhor, desse mesmo molde. Com os recursos gráficos do computador não precisamos recorrer ao pincel de retoque, nem de aplicar a tesoura aos negativos de antigas fotos granuladas. O tempo é generoso com o nosso Líder.
Embora o papel do Grande Timoneiro seja irretocável e definitivo, sou obrigado a realizar pesquisas e a publicá-las. Todas elas absolutamente irrelevantes, uma leve pátina que colore o metal, assinalando a passagem benevolente do tempo. Elas costumam ser assinadas por uma equipe e o meu nome aparece esporadicamente, como coordenador. Entretanto, é o meu pescoço que está em jogo.
Ultimamente, tenho me detido muito nos tempos em que fazia parte do Comitê Estudantil do Partido Bolchevique de Belogrado, junto com Verônica, Ivã, Dimitri e Koba. Verônica e Ivã morreram no Araguaia. Dimitri continua no partido, num posto secundário, onde não corre riscos e Koba não viveu para ver os pequenos tomarem o poder. Ele odiava os pequenos burgueses - os pequenos, como dizia.
Muitas vezes, brincando, ele me chamava de o Bukharin do partido. O Bukharin original era “o benjamim dos bolcheviques russos”. O irmão menor foi um grande teórico marxista, muito culto, embora desprovido de malícia na prática política. Aliou-se a Stalin na luta contra Trotsky, Kamenev e Zinoviev. Foi liquidado, depois que a velha guarda foi varrida.   Com certeza, era à sua erudição que Koba se referia.
Essa minha fixação pela teoria já havia aflorado com o xadrez. Um dos meus primeiros livros de xadrez estava escrito em russo – Curso de aberturas, de Panov. Comprei o Manual de Língua Russa, da Potapova e, em pouco tempo, consegui saber que Фишер era Fischer. Com um pouco de esforço, fiquei conhecendo o nome das peças e os adjetivos que indicavam se uma jogada era boa ou ruim.

Eu não conseguia jogar uma abertura sem conhecer as suas variantes principais. Não era tanto insegurança, era mais uma exigência que fazia a mim mesmo. Meu sonho era me tornar um grande mestre e não admitia tratar o xadrez com frivolidade. Era um desrespeito ao jogo me meter em complicações cujo segredo eu não dominasse. O engraçado é que, nas partidas intermináveis que jogava com Roberto, o meu conhecimento teórico não conseguia se sobressair.  Lênin estava certo, primeiro a gente se engaja no combate, depois se vê o que fazer. 

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