Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - terceiro capítulo


Meu pai havia morrido num desastre de carro e eu fui criado com meus avós maternos e minha mãe, que mais tarde se casaria. Na casa de meus avós havia duas empregadas e, durante algum tempo, um tio. Até a minha adolescência, eu saia e voltava para esta casa, nas férias escolares, nas festas, nos fins de semana e nos períodos em que minha mãe brigava com o marido.
Altino era baixinho, gordinho, com um bigode negro lustroso e um ar sempre grave - parecia uma autoridade em qualquer assunto que abordasse.  A corte à minha mãe foi toda feita no alpendre, na frente da casa, ambos sentados nas cadeiras de ferro, com a porta da sala encostada.
O alpendre, assim como o banheiro, era ponto de partida de outras expedições e escaladas. De lá, pelo mesmo apoio que contornava toda a casa, eu chegava até o meu quarto, cuja janela ficava do lado direito, na frente. À esquerda ficava a escada que levava do jardim para o segundo piso e que também servia de divisa para o lado esquerdo do triângulo. Este lado, mais tarde, ganharia um muro, que iria da escada até o fim do terreno, no galinheiro. Eu ainda consigo lembrar da cerca de arame farpado e do pé de amora. Numa expedição de coleta de frutos, fiquei enganchado no arame, e a cicatriz ainda se vê, na parte lateral interna da canela direita, muito sumida. O pé de amoras ficava do outro lado da divisa e não sobreviveu ao muro.
Hoje eu sei que a pele, enquanto crescemos, efetua estranhas translações e rotações, deslocando as manchas e as cicatrizes com ela. Uma mancha no peito da criança pode ir parar nas costas do adulto. Nem nas cicatrizes se pode confiar. A amoreira ainda estava lá, quando eu fiz uma criação de bichos da seda, no primário. Como nesta época minha mãe já havia se casado, concluo que era comum eu passar longos períodos na casa de meus avós. Talvez as férias todas. Mas esses períodos ofuscam os outros e a casa do meu padrasto, para onde nos mudamos depois do casamento, não é tão nítida. Era pequena, no alto de uma ladeira de terra vermelha, impraticável quando chovia e ótima para se cavar túneis nos seus barrancos. Tinha um quintal cimentado e um galinheiro. Não consigo fazer um mapa exato de seus cômodos.
Minha primeira lembrança de Altino é no alpendre da casa de minha avó, examinando o meu boletim do Jardim.
- Bom, bom, bom; só tem bombom neste boletim. É preciso melhorar. Depois do bom, ainda havia o ótimo. Mas para mim já estava bom.
Passei minha infância e adolescência escondido no meio da turma, sem me destacar. Era uma atitude consciente, até onde me lembro. No pré-primário, eu adorava tirar sete. Achava o número mais bonito do que o dez. Lembro de que quando fazia letras nos cadernos de caligrafia, entortava os Es, cuidadosamente, para conseguir a nota mágica.
Minha mãe sempre me consolava, dizendo que as notas não eram importantes e que eu poderia conseguir um dez, quando quisesse. Eu sabia que sim, mas, hoje, duvido que ela soubesse. O pré-primário foi feito em uma escola perto da nova casa, que ficava no Bairro da Graça, perto da Sagrada Família. Outra coincidência, que vou utilizar para denominar esta era de A Idade da Religião. Foi a época em que me tornei ateu e comunista.
Uma coisa foi consequência da outra, as duas estão irremediavelmente interligadas. Altino, o marido de minha mãe, era espírita. As sessões dominicais, que eu era obrigado a assistir, eram realizadas na sala, muito pequena e de chão de tacos, onde os pontos eram riscados. A porta da sala fica aberta e a assistência se acomodava no alpendre, sentada numas cadeiras brancas de tiras de metal.
De início, a religião espírita me atraiu. No pré-primário eu havia frequentado o catecismo, incentivado por minha mãe, que achava que qualquer religião seria uma influência benéfica. A professora era uma freira de olhos grandes e redondos, da cor do hábito cinza. Ela reunia os alunos debaixo de uma mangueira, no pátio, e ia lendo e explicando as perguntas.  Por que Deus criou o homem? Resposta: Para amá-lo e adorá-lo.
Eu não admitia aquela posição subalterna, mesmo reconhecendo a potência divina. Foi minha primeira briga com a autoridade. O distanciamento e a rígida hierarquia da Igreja me afastaram definitivamente do catolicismo e me aproximaram do espiritismo, uma religião sem dogmas. Até hoje eu detesto as igrejas, guardando uma antipatia muito maior pelos templos modernos, com sua decoração prosaica. Politicamente, sempre desconfiei da Teologia da Libertação. Contraditoriamente, penso que a pompa e a circunstância são essenciais à fé. Mas estes são pensamentos de outra época; eu não fazia estas teorizações com apenas seis anos.
O certo é que a imposição de assistir as sessões também me afastou do espiritismo. A minha rejeição culminou com o dia em que, de tanto inclinar a cadeira, sem nada para fazer no meio de uma daquelas reuniões, acabei descendo a escada do alpendre de costas, indo parar no meio do gramado. A queda, além do susto, não resultou em nada mais grave. O simbolismo é evidente, embora não tenha sido este o momento da ruptura. Não existe um dia em que possa dizer: eu então me tornei ateu. 
    







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