Na casa de meus avós, sempre havia “O Cruzeiro”, a revista “Manchete” e as “Seleções do Reader's
Digest”. Nessa última, a União Soviética era um país frio e cinzento, onde se
prendiam e torturavam freiras. A melhor propaganda comunista que havia. Quando
o Sputnik, o primeiro satélite artificial da Terra, foi lançado, gravei na porta do meu guarda-roupas a
efeméride, com a melhor letra que consegui fazer. O móvel não foi para a
Avenida do Contorno.
A
miopia se manifestou nesta época. Na escola, mesmo sentado na primeira fila, eu não
conseguia ler o quadro. Segundo minha mãe, saí do consultório do
Dr. Coutinho, com os meus primeiros óculos, apontando para as árvores e
dizendo: - Mãe, as árvores têm folhas!
Ela conta e reconta esta história como se fosse
verdade. E a lenda permanece - eu só descobri que as árvores tinham folhas aos
sete anos. Cresci ouvindo que era míope porque lia muito. Muito mais tarde, já
na clandestinidade, passei a usar lentes de contato. A letra ficou maior nas
cartas que enviava, diz minha mãe. Talvez haja uma relação. Talvez não. Na época, eu trabalhava como apontador e precisava
fazer uma letra grande e legível nas folhas onde anotava os tempos.
“O
pé da galinha não esmaga os pintinhos”. A frase está perdida nas brumas da pré-história e volta sempre quando relembro minha mãe. A raiz de
minha atração pela ciência e a minha ojeriza pelas metáforas, pelo exagero e
pela poesia, estão fincadas nesta era. Entretanto, na maior parte do tempo, eu
aproveitava o calor das asas protetoras. A reação contra o sentimentalismo é
muito posterior.
O
talento de minha mãe para recriar os fatos era notável e fez várias vítimas. Eu ouvia os casos da família, contados e recontados, sem
desconfiar do "exagero", como dizia Altino.. Um
tio paterno gerou uma dúzia de filhos, que foram ganhando nomes começados com a
letra A. A maioria inspirada na Bíblia. Minha mãe recriou um Abimelec, cujo
apelido seria Melequinha. E eu cresci repetindo esta história de um primo que
nunca existiu. Mas que deveria ter existido, segundo a sua lógica.
Uma
vez, ela convenceu uma professora de que a ilha de Fernando de Noronha havia sido
tomada pelos americanos, que lá fizeram uma base. E a nova geografia chegou a
ser ensinada em sala de aula.
Nesta
época, começa a minha própria carreira de contador de histórias. Eu lia tudo
que me caía nas mãos. Chegava a tirar as revistas de fotonovelas da Alzira, guardadas
debaixo do colchão, para ler às escondidas. Minha primeira descoberta no
terreno da metalinguagem nasceu destas leituras. O vilão e a mocinha eram
sempre fotografados em ângulos diferentes, um de frente e o outro de lado, ou,
no máximo, em ângulos de 3/4. Já os dois mocinhos eram vistos de frente
um para o outro. É claro que havia um monte de outras convenções, todas elas
muito mais evidentes, mas esta descoberta me encheu de orgulho.
O
próximo passo foi mais ousado. Comecei a contar a história de um filme, só a
partir dos cartazes que via no jornal. A ilustração mostrava uma mocinha, um
castelo e um espadachim. Usando o título, eu reconstitua a história para Alzira, com o
triângulo amoroso fatal, o rapto da mocinha para se casar à força com o vilão e
a tomada do castelo pelos camponeses revoltados, seguida do duelo final.
O triunfo vinha quando ela me perguntavam se eu havia visto o filme. Não - mas conheço a história toda! Cheguei a escrever grandes narrativas, cheias de piratas, tesouros e lutas
de espada. Muitos livros depois, ganhei referências para criticar a minha produção e me tornar apenas um leitor, ao ritmo de uma
página por minuto e um livro por dia.
Os
nomes e lugares exóticos me atraíram desde cedo. Em consequência, a minha cultura
inútil, verdadeiramente enciclopédica, foi ganhando milhares de verbetes. Lia
atabalhoadamente, sem método. O meu primeiro livro (ou um dos primeiros) foi “As
aventuras do sapo Toaddy”. A gravura dele voando num barco de madeira e se
espatifando persistiu. Durante muito tempo, quando minha mãe queria brincar com
a minha falta de jeito dizia: - lá vai o sapo Toaddy.
Depois vieram os livros de Tarzan (a coleção
completa), Júlio Verne, Sherlock e os clássicos de aventuras: Capitão Blood,
Beau Geste, Scaramouche, etc. Todos lidos no primário, com certeza. São
anteriores à Avenida do Contorno. Outro nome absolutamente real e talvez
simbólico. Mas o que é que eu iria contornar? De qualquer maneira, não pretendo
sacrificar as minhas recordações para que elas se amoldem a um nome: A Idade do
Contorno. As eras geológicas têm nomes muito mais arbitrários e nem por isso
determinam o trabalho dos paleontologistas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário