Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

O A Arrudas desemboca no Mar Báltico Quarto Capítulo


Na casa de meus avós, sempre havia  “O Cruzeiro”, a revista “Manchete” e as “Seleções do Reader's Digest”. Nessa última, a União Soviética era   um país frio e cinzento, onde se prendiam e torturavam freiras. A melhor propaganda comunista que havia. Quando o Sputnik, o primeiro satélite artificial da Terra, foi lançado, gravei na porta do meu guarda-roupas a efeméride, com a melhor letra que consegui fazer. O móvel não foi para a Avenida do Contorno.
A miopia se manifestou nesta época. Na escola, mesmo sentado na primeira fila, eu não conseguia ler o quadro. Segundo minha mãe,  saí do consultório do Dr. Coutinho, com os meus primeiros óculos, apontando para as árvores e dizendo:- Mãe, as árvores têm folhas!
Ela conta e reconta esta história como se fosse verdade. E a lenda permanece - eu só descobri que as árvores tinham folhas aos sete anos. Cresci ouvindo que era míope porque lia muito. Muito mais tarde, já na clandestinidade, passei a usar lentes de contato. A letra ficou maior nas cartas que enviava, diz minha mãe. Talvez haja uma relação. Talvez não.  Na época, eu trabalhava como apontador e precisava fazer uma letra  grande e legível nas folhas onde anotava os tempos.
“O pé da galinha não esmaga os pintinhos”. A frase está perdida nas brumas da pré-história e  volta sempre quando relembro minha mãe. A raiz de minha atração pela ciência e a minha ojeriza pelas metáforas, pelo exagero e pela poesia, estão fincadas nesta era. Entretanto, na maior parte do tempo, eu aproveitava o calor das asas protetoras. A reação contra o sentimentalismo é muito posterior.
O talento de minha mãe para recriar os fatos era notável e fez várias vítimas. Eu ouvia   os casos da família, contados e recontados, sem desconfiar  do "exagero", como dizia Altino.. Um tio paterno gerou uma dúzia de filhos, que foram ganhando nomes começados com a letra A. A maioria inspirada na Bíblia. Minha mãe recriou um Abimelec, cujo apelido seria Melequinha. E eu cresci repetindo esta história de um primo que nunca existiu. Mas que deveria ter existido, segundo a sua lógica.
Uma vez,  ela convenceu uma professora de que a ilha de Fernando de Noronha havia sido tomada pelos americanos, que lá fizeram uma base. E a nova geografia chegou a ser ensinada em sala de aula.
Nesta época, começa a minha própria carreira de contador de histórias. Eu lia tudo que me caía nas mãos. Chegava a tirar as revistas de fotonovelas da Alzira, guardadas debaixo do colchão, para ler às escondidas. Minha primeira descoberta no terreno da metalinguagem nasceu destas leituras. O vilão e a mocinha eram sempre fotografados em ângulos diferentes, um de frente e o outro de lado, ou, no máximo, em ângulos de 3/4. Já os dois mocinhos eram  vistos de frente um para o outro. É claro que havia um monte de outras convenções, todas elas muito mais evidentes, mas esta descoberta me encheu de orgulho.
O próximo passo foi mais ousado. Comecei a contar a história de um filme, só a partir dos cartazes que via no jornal. A ilustração mostrava uma mocinha, um castelo e um espadachim. Usando o  título, eu reconstitua a história para Alzira, com o triângulo amoroso fatal, o rapto da mocinha para se casar à força com o vilão e a tomada do castelo pelos camponeses revoltados, seguida do duelo final. O triunfo  vinha quando ela me perguntavam se eu havia visto o filme. Não - mas conheço a história toda! Cheguei  a escrever grandes narrativas, cheias de piratas, tesouros e lutas de espada. Muitos livros depois, ganhei referências  para criticar a minha produção e me tornar apenas um leitor, ao ritmo de uma página por minuto e um livro por dia.
Os nomes e lugares exóticos me atraíram desde cedo. Em consequência, a minha cultura inútil, verdadeiramente enciclopédica, foi ganhando milhares de verbetes. Lia atabalhoadamente, sem método. O meu primeiro livro (ou um dos primeiros) foi “As aventuras do sapo Toaddy”. A gravura dele voando num barco de madeira e se espatifando persistiu. Durante muito tempo, quando minha mãe queria brincar com a minha falta de jeito dizia: - lá vai o sapo Toaddy.

 Depois vieram os livros de Tarzan (a coleção completa), Júlio Verne, Sherlock e os clássicos de aventuras: Capitão Blood, Beau Geste, Scaramouche, etc. Todos lidos no primário, com certeza. São anteriores à Avenida do Contorno. Outro nome absolutamente real e talvez simbólico. Mas o que é que eu iria contornar? De qualquer maneira, não pretendo sacrificar as minhas recordações para que elas se amoldem a um nome: A Idade do Contorno. As eras geológicas têm nomes muito mais arbitrários e nem por isso determinam o trabalho dos paleontologistas. 

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