Conto de Natal
O Sr. Erany
informa que tem 67 anos, é aposentado e sustenta um filho epiléptico e uma
mulher “com paralizia”. Nada disso é relevante para o processo em tela, mas
ele, com aquela educação das pessoas
humildes, acha que é necessário se apresentar e explicar minuciosamente sua
história.
Tudo isto foi escrito em uma folha de papel almaço, com letra irregular e
surpreendentemente legível, apesar dos tremidos. Aduziu que não encontra
emprego, por causa da idade. Ganha os R$ 260,00 da aposentadoria, o que mal
deve dar para os remédios. Mas isso ele não revela, com aquele resto de pudor
que ainda mantém.
Inicia nomeando o cargo da autoridade competente, precedido pelo
indefectível Sr. Dr Fulano de Tal. O assunto é a sua inscrição em dívida ativa.
A origem do débito é explicada com singeleza: para aumentar os seus proventos,
montou uma barraquinha de ambulante, tudo legalizado, segundo ele. Mas assim
não entendeu o fiscal municipal de postura, que lavrou o competente auto de
infração. Ainda segundo ele, a multa o deixou
“decepissionado”.
Não há dúvida de que o estilo é o homem. Logo à frente, pondera que a
razão do não pagamento é “porque, talvez, ele não tinha dinheiro”. A frase é
toda uma vida. Usa-se um eufemismo para não ofender tão alta autoridade com
problemas tão prosaicos. Reconhece a obrigação de pagar e não cogita em
argumentar que ela é injusta - todo o seu argumento é “ad misericordiam”.
O Sr. Erany é um daqueles homens bons, que acredita no poder de uma boa
conversa, com jeitinho, sem forçar a barra. Até se excede um pouco, afirmando
que, “com certeza”, o Doutor veio das classes humildes. Talvez isso fosse
verdade no seu tempo, em que o filho da lavadeira começava como contínuo e ia
galgando, degrau por degrau, a hierarquia do serviço público.
Os tempos agora são outros. A Carta Magna de 1988 acabou com os
privilégios e decretou a igualdade de todos perante a lei. A nomeação para os
cargos de carreira se faz através da aprovação em concurso público. Quero ver o
filho da lavadeira, que estudou em escola pública, que escreve “paralizia” e “dessepicionado” chegar até
aqui, aonde eu cheguei.
Mas o coitado persiste nesta crença e acha mesmo que a autoridade poderia
ser sensível ao seu apelo. Admitindo que o fosse, estaria cometendo crime de prevaricação
se agisse contra a legislação em vigor,
apesar do motivo humanitário. Tenho certeza que ele desconhece o que seja
prevaricação.
Porque há o motivo. O Sr. Erany não mente. Sua exposição é uma peça
inteira, consistente, uma aula de sociologia em uma única mísera lauda de papel
almaço, meio amarelado. Acabo por admitir que no seu pedido há muito mais
conteúdo do que no meu arrazoado. Esse
meu estilo cartorial e pedante, cheio de polissílabos e de jargão jurídico,
temperado com um latim macarrônico, acaba abafando as minhas convicções.
Em anexo, xerox da carteira de identidade e mais uma papelada: exames,
atestados, etc. Já se acostumou a ter que provar que é ele mesmo, e que o que
disse é verdade. Não perdi tempo olhando a sua foto.
Sou simpático a sua causa, mas não a sua figura. Ele me irrita com seus
eufemismos, sua humildade, sua resignação. Indigno-me, por ele que não se
indigna. Mas uma repartição pública é o lugar mais inadequado do mundo para
indignações. Se o papel aceita o que se lançar nele, o papel dos processos é de
um tipo especial, anti-séptico, apesar de ser freqüentado por ácaros, fungos e
bactérias de todas as cepas. O chefe pode passar por alto um estilo não
parlamentar, digamos assim, mas quer saber qual a motivação do despacho, o seu
enquadramento legal. E é ele quem decide. Eu apenas emito um parecer, penso que
acho alguma coisa, salvo melhor juízo.
É claro que indeferi de pleno o pedido, por carecer de embasamento legal.
Não, não fiz nenhuma subscrição entre os colegas. O Sr. Erany que se vire para
pagar a multa. Porque ele vai pagá-la, pobre não sabe sonegar e perde o sono se
ficar devendo. Que seja às custas do remédio da mulher, ou do filho, pouco se
me dá. A caridade não é uma das minhas virtudes. Sinto muito, não sou cristão.
Não, também não convoquei o Sr. Erany à repartição. Ele provavelmente não
me escutaria. Que adiantaria eu lhe dar uma aula sobre a injustiça das taxações
em geral, e desta em particular? Ele acabaria por me irritar ainda mais, pedindo para falar pessoalmente
com o chefe, insistindo, querendo apenas um pouquinho de esperança.
Não há um final feliz possível para esta história. Mesmo que a multa
fosse perdoada, ele continuaria, pobre, desempregado e doente. Porque sofre de
câncer no fígado, conforme os laudos que anexou. Sua vida deve ter sido toda
vivida nesta mesma toada, é tarde para mudá-la. É véspera de Natal e eu só
queria achar um lugar neste mundo onde o ser humano fosse um pouquinho menos
hipócrita e eu pudesse destilar a minha raiva sem maiores constrangimentos.