Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A invasão

A invasão Capítulo 4


Quando procuramos algo, o mais importante pode ser o que não encontramos. O museu da História Contemporânea, no número 21 da Rua Tverskaya, antiga Gorki, era um imenso caracol.
Na entrada, uma isbá de antes da libertação dos servos. Com seu arado de madeira e o galão de vodka caseira. Havia isbás mais pobres, sem chaminés, chamadas de negras e as dos camponeses ricos, com chaminés – as isbás brancas.
Mais adiante, “O que fazer?”, uma primeira edição, e fotos de antigos revolucionários.
- Quem são esses? perguntou a colegial à sua colega.
- Políticos, respondeu a outra, com desprezo.
Segui pela casca externa, em direção ao miolo. Numa parede, o martelo pneumático de Stakhanov. No dia 31 de agosto de 1935, Stakhanov, operário de uma mina de carvão em Donets, conseguiu extrair 102 toneladas de carvão, superando 14 vezes sua cota diária. Esta façanha marcou a introdução de métodos tayloristas na mineração soviética. O diploma de herói do trabalho estava ao lado.
Um dos atrativos do turismo arqueológico é a memorabilia. Em lugar do diploma de herói do trabalho, que certamente teria um custo exorbitante, por dez dólares, na Praça Vermelha, comprei um quepe militar com várias medalhas soviéticas. De agora em diante, sou um udarnik, um trabalhador comunista de vanguarda.
Internando-me no caracol e progredindo na linha do tempo, alcancei a Grande Guerra Patriótica. A placa nazista apontava para Moscou, esperançosamente, indicando os poucos quilômetros que faltavam. O grupo de colegiais estava reunido em torno da professora.
_ Vaprossi iest? Perguntas?
- Damói.  ‘Bora pra casa, foi a resposta imediata, seguida da debandada.
A Praça Vermelha rendeu uma foto com Lênin, que trabalhava em parceria com Nicolau II, o sangrento. Nicolau foi dispensado, por motivos óbvios. No mausoléu, a fila era pequena. O Vladimir original tinha uma cor amarelo-limão e repousava num esquife de vidro, vestindo um terno preto, com as mãos ao lado do corpo.
A expressão era astuta, quase brincalhona. Meticuloso, apaixonado, carismático e ... morto. Lênin viveu, Lênin vive, Lênin viverá! é o slogan dos comunistas atuais. Saindo do mausoléu, a muralha, com as cinzas de Gagárin e John Reed. E uma fileira de túmulos, Frunze, Dzerjinsky, Kalinin, Jdanov,Voroshilov , Budioni, Suslov, Brejnev, Andropov, Chernenko e Stalin. Sobre a lápide deste, um funcionário colocava rosas vermelhas de plástico.
Com tão poucos resquícios do socialismo real, como seria a história oficial, daqui a uns 500 anos? Quem seria citado e quem seria nota de pé de página?
Ele mesmo era apenas um verbete no índice onomástico de alguns livros. Conforme a fonte, podia ser um guerrilheiro, um camponês que apoiara a guerrilha, alguém que havia morrido em uma pensão paulista, ou que ainda estava desaparecido.
Nós sempre contamos a nossa história, mesmo quando falamos de outros. A História é a história dos vencedores. Seria mais verdadeira a história dos perdedores?
E se não houvesse mais raça humana? Como um extraterrestre reconstruiria nossa história, a partir de alguns artefatos? Seria como ajustar os pontinhos negros do Campo de Marte às perfurações de um cartão.

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