Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A face feia da Revolução Cubana


É próprio do ser humano criar imagens e mitos sobre processos que conhecemos pouco. A revolução cubana atraiu minha atenção desde o início. Em 59, minha simpatia estava toda com os barbudos. Minha e de toda uma geração. Lembro da revista A Turma do Pererê, do Ziraldo, que dedicou um número à luta entre o Saci e a turma rival, que havia tomado a Mata do Fundão. O uniforme dos rebeldes era uma barba postiça, numa alusão claríssima aos cubanos.
Mais tarde, quando começou minha militância política, tomei uma posição mais crítica. O voluntarismo das organizações revolucionárias, que queriam criar vários Vietnãs na América Latina, copiando o que achavam ser o modelo cubano, não me atraia.
Na década de 70, Cuba se tornou um aliado incondicional da União Soviética e com a derrota da luta armada em praticamente toda a América Latina, perdeu seu poder de atração.
Em 90, com a queda do bloco soviético, a ilha ficou por conta própria. Foi o chamado período especial. Em 97 visitei Cuba. Encontrei um país vivendo quase todo de cesta básica, uma falta de absurda de itens básicos e um povo extremamente caloroso e hospitaleiro. Havia um corte claro de gerações. Os mais novos, que não conheceram o regime de Batista e os avanços espetaculares dos primeiros anos, só tinham como referência o retrocesso e a queda do padrão de vida. Eram freqüentes às reclamações sobre a falta de liberdade.
Recentemente, com a doença de Fidel e o anúncio das reformas, comecei a me interessar mais de perto por Cuba. Vejo nela sinais preocupantes, que podem levar à uma implosão no estilo soviético. Durante anos, havia reunido uma pequena biblioteca sobre a Revolução Cubana e comecei a estudá-la, além de pesquisar na Internet.
Gosto muito deste trabalho de confrontar várias fontes e informações conflitantes. Vários conceitos prévios tiveram que ser modificados e aos poucos vai surgindo uma imagem mais coerente.
Quando li as memórias de Gregório Bezerra, deparei com uma imagem muito poderosa, que era uma constante na defesa que ele fazia dos desvios e deformações da Revolução Russa: um sexto do mundo estava construindo o socialismo e aos capitalistas interessava desmoralizar esta experiência, para continuarem dominando a classe operária. Por isso, ele defendia incondicionalmente os dirigentes soviéticos.
Em relação à Cuba, criou-se a imagem das 90 milhas, ou dos 120 Km de distância, que a separam dos Estados Unidos. O embargo, além da ameaça constante de uma intervenção, somados a presença americana em Guantánamo, são um atenuante à qualquer crítica mais contundente.
Entretanto, há uma face oculta da Revolução que não admite nem remotamente a desculpa das 90 milhas: a repressão aos homossexuais e o seu confinamento em campos de concentração.
Logo nos primeiros anos da revolução, no seu período romântico, os dirigentes adotaram a idéia de que era preciso construir um novo homem. Neste modelo, o puritanismo, o tradicional machismo cubano e o realismo socialista soviético se fundiram para decretar que os homossexuais eram covardes por natureza, sujeitos à chantagem, potencialmente inimigos da revolução e perigosos por sua influência sobre a juventude.
Foram criados os campos de concentração intitulados de UMAP. Unidades Militares de Ajuda a Produção. Para eles foram enviados os homossexuais, os afeminados, os jovens que usavam calças justas e cabelos compridos, os hippies, os crentes e uma série de indesejáveis. Pablo Milanés foi um destes.
Além dos maus tratos que sofreram nos campos, que incluíam maus tratos físicos e péssima alimentação, os homossexuais foram, em muitos casos, proibidos de exercerem suas profissões. O surrealismo chegou ao ponto de um cidadão ser proibido de trabalhar e ser perseguido por ser um parasita, já que não trabalhava.
Fidel Castro, pessoalmente, assumiu esta campanha. Faz pouco tempo, ele admitiu que errou. A sua sobrinha, Mariela, atualmente a frente do CENESEX, Centro Nacional de Educação Sexual, por ironia da história, é lésbica. Hoje em Cuba, já se realizam operações de mudanças de sexo. Há uma piada que diz que em Cuba é mais fácil mudar de sexo do que mudar de partido.
Ela declarou sobre as UMAP e às perseguições sofridas pelos indesejáveis:

 "Pedir perdón sería una gran hipocresía. (…) Me alegro que aquí no se pida perdón, sino que se traten de establecer reglas y leyes para que nunca más ocurra". 
Governar é nunca ter que pedir perdão.


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A autocrítica de Fidel

Em 1970, Fidel lançou a campanha das 10 milhões de toneladas de açúcar. A meta não foi cumprida. Apesar de todo o país ter se engajado nela, o total produzido ficou em torno de 8,5 milhões. Para analisar o fracasso, Fidel fez um discurso, registrado em um livro intitulado “Autocrítica.”
Inicialmente, ele aponta as dificuldades demográficas: de 1959 a 1970, a população cubana subiu de 6.500.000 a 8.300.000 (aproximadamente). Entretanto, devido à estrutura da pirâmide populacional, só 32% estavam ocupados em atividades econômicas. Somente para o  qüinqüênio 1975-1980 estava prevista uma melhora desta composição etária. Como comparação, os países industrializados da Europa, no mesmo período, contavam uma média de 45% da população ocupada em atividades econômicas.
Paralelamente, houve um aumento muito considerável do gasto público em saúde, educação, seguridade social, etc. Com o aumento da renda, cresceu o meio circulante em poder da população. Este desequilíbrio não foi repassado ao preço dos produtos essenciais, o que agravou os problemas do racionamento.
Cerca de 300.000 homens foram empregados nas tarefas de defesa interna e externa, o que representa mais de 10% da população economicamente ativa. Mesmo levando em conta  que os soldados e milicianos se envolviam nas tarefas de produção, assim como os estudantes, este é um fator de peso, num país com escassez de mão-de-obra.
Além destas dificuldades, Fidel considera o fator subjetivo:
“... de inicio éramos apenas um povo rebelde, emocionalmente revolucionário, mas que quanto aos problemas políticos e sociais estávamos realmente confusos e doutrinados pelos jornais, as revistas, os filmes, os livros e todos os meios de divulgação imperialistas.
... há que dizer que a maioria do nosso povo nos começos de 1959 nem sequer era antiimperialista, não tinha consciência de classe. Instinto de classe – o que não é o mesmo.
É preciso lembrar que os primeiros anos foram anos de grandes batalhas políticas, de grandes batalhas ideológicas entre o caminho capitalista ou socialista, entre o caminho burguês ou proletário, e que o trabalho da pequena vanguarda revolucionária foi conquistar antes de tudo a consciência das massas.”
É preciso lembrar que estas batalhas político-ideológicas resultaram na negação da autonomia universitária, no cerceamento dos sindicatos e federações, que em suas primeiras eleições livres impuseram uma derrota esmagadora ao PCC, e no afastamento de uma série de lideranças históricas do movimento guerrilheiro e do 26 de Julho.
Há que dizer que a auto intitulada vanguarda se apoiou na importação mecânica do modelo soviético, com a colocação de todas as organizações revolucionárias na camisa de força do PCC. E que o poder revolucionário acumulou as funções executivas e legislativas nas mãos desta vanguarda, usando todo o crédito que a liderança carismática de Fidel lhe conferia.
Houve, enfim, a passagem de uma revolução democrático burguesa, pelo seu conteúdo, para uma estatização total da economia e uma apropriação do poder por um pequeno núcleo dirigente.
Embora, não houvesse consciência de classe (se aceitarmos a colocação de Fidel) as transformações iniciais atenderam à expectativa popular. A maioria da população experimentou uma melhoria notável no seu nível de vida.  
As opções feitas tornaram o comércio exterior cubano muito dependente do campo socialista.
“Não esqueçamos que, apesar de tudo, durante estes anos tivemos grandes desequilíbrios no nosso comércio externo, especialmente com a União Soviética. Não esqueçamos que temos de importar cinco milhões ou mais de toneladas de combustível...”
Não esqueçamos que o açúcar, em Cuba, esteve intimamente ligado à exploração colonialista e neo-colonialista. Com a imposição de preços e cotas, e a exportação de todo o tipo de produtos, o imperialismo americano manteve Cuba debaixo de sua influência desde que ela se libertou do domínio espanhol. Não esqueçamos que uma das razões para o regime investir tão pesadamente nesta monocultura foi justamente o déficit no comércio exterior. Martí, um dos grandes inspiradores de Fidel, havia dito: “o país que quer morrer vende a um único país.”
E, mesmo deslocando toda a força de trabalho que podia para a colheita da cana, a meta não foi alcançada. Uma das causas que Fidel aponta, sem meios termos, é a ineficiência. Ele enumera algumas razões desta ineficiência: falta de infra-estrutura, carência de mão-de-obra e absenteísmo.
Este último fator é preocupante. É um sinal de que as massas estão começando a se afastar da revolução e que a batalha político-ideológica não foi ganha. Embora Fidel não chegue a esta conclusão, uma das causas deste afastamento é o racionamento.
Falta quase tudo: sabão, tecidos, pasta de dente, cerveja, carne, vegetais e frutas. A indústria leve copiou em tudo o modelo soviético. São incapazes de fazer um sapato que não se desmanche em pouco tempo.
As dificuldades de infra-estrutura vão desde a carência absoluta de meios de transportes, de armazenamento e de estocagem, passando pela dificuldade de carga e descarga nos portos, até os cortes constantes de energia elétrica.
E qual a razão última destas dificuldades?
“Hoje, a indústria, as matérias-primas, os recursos naturais, as fábricas, as máquinas, o equipamento de toda a ordem, pertencem à coletividade. Se com essas máquinas, se com esse equipamento, se com esses recursos não fazemos o ótimo, não é porque sejamos impedidos por um capitalista, não é porque sejamos impedidos por um imperialista, não é porque sejamos impedidos por um proprietário...
Se não fazemos o uso ótimo não é porque alguém nos impeça: é porque não sabemos, é porque não queremos, é porque não podemos. E por isso temos de saber e querer empregar esses recursos da maneira ótima. E temos de poder empregá-las de maneira ótima recorrendo simplesmente às reservas de vontade, de moral, de inteligência, de decisão do povo, que já demonstrou como as possui, sim já o demonstrou!”
Excelente diagnóstico, pena que não foi implementado.
Há dois pontos a serem analisados: o primeiro é a questão da planificação socialista; o segundo, a questão da democracia socialista.
Em relação ao planejamento, Fidel propõe medidas burocráticas: criar um Gabinete de Produção Social no Comitê Central; criar mais organismos de coordenação, além do Conselho de Ministros; separar as tarefas de administrador e de dirigente partidário nas fábricas, entre outras. Ou seja, mais centralização e mais poder para o Partido.
Num governo extremamente centralizado e personalista, o primeiro culpado pelo fracasso da economia seria naturalmente o seu dirigente máximo.
“... Seria melhor dizer ao povo: procurem outro. Ou mesmo: procurem outros (Gritos de: “Não!”). Seria melhor. Mas na realidade seria uma atitude hipócrita de minha parte.
Creio que nós, os dirigentes desta Revolução, saímos demasiadamente caros com o nosso processo de aprendizagem. E desgraçadamente o nosso problema – não no que respeita à substituição dos dirigentes, pois este povo pode-os substituir quando quiser, no momento que quiser, agora mesmo se quiser! (Gritos de: “Não!”) E: “Fidel!” “Fidel!” “Fidel”) -, um dos nossos mais difíceis problemas – e estamos agora a pagá-lo – é antes que tudo, a herança da nossa própria ignorância.”
Você é um fanfarrão, Fidel.
É obvio que os gritos de “Fidel” deviam ser sinceros. Que alternativa haveria? Coloquemos a questão numa perspectiva menos personalista - a luta política-ideológica a que Fidel se refere foi travada principalmente no seio da revolução, para assegurar que o núcleo dirigente não sofresse contestações. A estrutura de poder não permitia modificações de dentro. E a participação popular não ia muito além de aclamar em praça pública o seu líder carismático.
É verdade que uma revolução deve destruir a máquina do estado tal como a encontra. Como e o que colocar no seu lugar é a grande questão. Fidel narra que fábricas tinham que interromper a produção porque não havia espaço para estocá-la e nem transporte para retirá-la. A pergunta que não quer calar é: será que não havia um operário antigo, mais esperto, que poderia ter previsto o problema? A resposta é: se ele fosse mesmo esperto, ficaria calado e deixaria que o administrador se virasse sozinho. Para que ser acusado de contra-revolucionário?
Depois do fracasso, 12 anos depois de assumir o poder, o regime começa a se preocupar em elaborar uma constituição e criar uma estrutura de governo que chama de poder popular. Se já houvesse um poder popular dentro das fábricas, erros grotescos, como os que Fidel apontou, não teriam sido cometidos.  
O planejamento de cima para baixo adota a mesma dinâmica da luta política: baixa palavras de ordem, no caso cifras de controle, e coloca a militância para implementá-las com apelos ideológicos. Qualquer crítica a este planejamento é tratada como manifestação contra-revolucionária. Os técnicos não são ouvidos. Os dirigentes se tornam, do dia para noite, especialistas em áreas que nunca dominaram. Che foi nomeado diretor do Banco Nacional de Cuba, espécie de Banco Central Cubano.
Quando Deng Xiao-ping lançou o slogan: “não importa se o gato é vermelho, o importante é que ele saiba caçar gatos”, ele estava fazendo uma crítica direta a este estilo de planejamento. Mao havia lançado a campanha de construção dos auto-fornos domésticos para aumentar a produção de aço. Escolas e comunas começaram a derreter talheres e utensílios de aço para cumprirem as metas estabelecidas. O aço que produziam era de baixíssima qualidade e não podia ser usado. O “grande salto para frente” gerou uma grande fome. Em minha opinião, a essência da crítica de Deng estava correta. Politicamente, ele não era o que poderíamos chamar de vermelho.
Outra característica deste tipo de planejamento é que ele simplesmente passa por cima das leis da economia, como se elas pudessem ser derrogadas através da simples vontade política. Um exemplo clássico é a ilusão de que o estado pode fixar arbitrariamente preços para facilitar a transferência de recursos para os setores onde ele acha que são mais necessários. Na União Soviética, esta política resultou em super-exploraçao dos camponeses, mercado negro, ineficiência da indústria ligeira, inflação, déficit de moradias e uma série de outros desequilíbrios.
O tabelamento e o racionamento dos produtos essenciais em Cuba resultaram no mercado negro e na queda continuada da produção agrícola. Quando finalmente o Estado autorizou a venda direta dos produtos agrícolas, houve o aumento das desigualdades. Como a libreta não cobria todas as necessidades, os mais pobres passaram a gastar proporcionalmente uma parcela muito maior de seus salários com a compra destes produtos do que os mais favorecidos.  O igualitarismo imposto por decreto se transformou no seu contrário.
Em resumo, foi louvável a tentativa de se fazer uma autocrítica, embora a correção de rumos proposta não tenha resultado em mais democracia e nem em um melhor planejamento.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A esquerda é geneticamente mais inteligente do que a direita?

Este estudo está bombando no Facebook, como prova de que a esquerda seria mais inteligente do que a direita.

O artigo original
Como eu sou um chato de galocha, dei-me ao trabalho de ler todo o artigo. Preliminarmente, ele foi publicado num site de vulgarização de estudos sobre psicologia, que produz material muito parecido com aquelas seções que se lêem nas revistas de moda mais sofisticadas.
Em segundo lugar, o estudo não opõe esquerda x direita, ele opõe liberais x conservadores. E mesmo esta oposição deve ser entendida num sentido bem específico: liberais seriam aquelas pessoas mais preocupadas com o bem estar geral e dispostas a pagar mais impostos para beneficiar os menos favorecidos.
Segundo o estudo, mulheres são mais liberais que os homens e negros são mais liberais que os brancos. A hipótese que explicaria a correlação entre inteligência e liberalismo seria a de que o liberalismo é uma novidade genética evolutiva. Os grupos humanos primitivos seriam pequenos e não faria sentido se preocupar com o bem estar dos membros de outros grupos. Conservadores seriam mais preocupados com o bem estar familiar e liberais mais altruístas.
O artigo afirma que a queixa dos conservadores de que a mídia, o show business e outras áreas acadêmicas são dominadas pelos liberais é verdadeira. Em compensação, os conservadores teriam mais sucesso na selva dos negócios. Como a vida social moderna lida com grandes grupos e não grupos familiares, liberais teriam uma vantagem evolutiva.
No meu tempo, um pouco depois do paleolítico, alguém de esquerda ser chamada de liberal era um insulto. E a idéia de que deveríamos pagar mais impostos para investir em programas sociais, era considerada o tipo de assistencialismo que ajuda a embelezar o capitalismo selvagem. A esquerda estava mais interessada no tipo de proposta que incluía a derrubada do governo, a abolição dos impostos e a colocação dos menos favorecidos no poder.
Infelizmente, eu não me vi contemplado no estudo e penso que o pensamento de esquerda não deve ter nenhuma vantagem genética evolutiva. Pelo menos, grande parte da esquerda que eu conheci foi eliminada pela ditadura e não viveu para perpetuar os seus gens (se é que posições de esquerda tem um componente genético). Ao contrário, a direita teve vida boa para si e seus pimpolhos. Ser de direita, durante o regime militar deveria ser uma vantagem no processo de seleção natural (se é que ele ainda atua na espécie humana).

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Último capítulo

O poder popular

Finalmente chega a hora de responder a pergunta que dá título ao livro: democracia ou ditadura?
Segundo Harnecker:
O estado cubano, como todo Estado – burguês ou socialista – representa uma ditadura de umas classes sobre outras. ... Mas tal como o Estado cubano foi uma ditadura para a contra-revolução, foi para o povo – ainda sem a presença de instituições representativas – um estado essencialmente democrático. Durante todos estes anos tem representado os interesses dos trabalhadores, da grande maioria do povo cubano e, ao mesmo tempo, não tomou nenhuma medida revolucionária importante sem consultar as massas através de diferentes mecanismos.
Aqui se sente algo estranho: um estado democrático sem instituições representativas, uma democracia no ar, onde as massas são consultadas sobre as questões mais importantes. E o que garante o caráter democrático deste estado? Segundo ela, o fato de ele defender os interesses dos trabalhadores. É quase uma tautologia – o estado é democrático porque ele afirma que é democrático.
“Raúl Castro expõe da seguinte maneira o caráter democrático do Estado cubano, na sua intervenção na clausura do seminário para os delegados do Poder Popular, em 22 de agosto de 1974:
“Quando um Estado como o nosso, representa os interesses dos trabalhadores, sejam quais forem a sua forma e estrutura, resulta um tipo de Estado mais democrático do que nenhum outro tipo que jamais tenha existido na história, porque o Estado dos trabalhadores, o Estado que constrói o socialismo é, sob qualquer forma, um Estado das maiorias enquanto que todos os Estados anteriores foram os Estados das minorias exploradas.” Harnecker, Marta.
Aqui há uma grande confusão. Cada país pode e deve encontrar as suas formas revolucionárias. A comuna de Paris teve uma, a revolução soviética teve outra, mas não existe governo dos trabalhadores sem instituições representativas. As massas não precisam ser consultadas, elas devem decidir.
A própria autora sente que não está em terreno firme e tenta aprofundar a questão.
“O termo “Poder Popular” que se tem usado em Cuba para designar este processo de participação institucionalizada das massas na gestão do Estado pode prestar-se a confusão. Alguns poderiam pensar que só no momento em que os nossos elegem os seus delegados e estes começam a usar as faculdades que lhes outorgou o Poder Popular, se pode falar da existência de um poder do povo em Cuba.” Harnecker, Marta.
Ao reproduzir a opinião de um cubano, ela lança algumas luzes sobre o que seriam os diferentes mecanismos de consulta das massas.
“... A luta de classe foi extraordinariamente foi extremamente violenta, tivemos uma invasão mercenária, uma luta interna de classes nos primeiros momentos da Revolução. Mas o povo com o poder na suas mãos decidiu o seu destino ... A Primeira Declaração de Havana, a Segunda Declaração, foram submetidas ao povo reunido na Praça da Revolução. O povo é que tem governado sempre... O Poder Popular é uma forma de institucionalizar o Estado, porque já estamos na altura de o fazer. E além disso é um aperfeiçoamento da nossa democracia. E a democracia tem existido sempre desde o triunfo da Revolução.” Harnecker, Marta.”
Ou seja, a aclamação em praça pública bastava como mecanismo para garantir a democracia!
Mais adiante a autora explica a razão deste pequeno atraso (12 anos) na institucionalização da democracia:
“Os primeiros anos da Revolução caracterizaram-se por alterações revolucionárias profundas, radicais e aceleradas. Era necessário um aparelho estatal ágil, operativo que exercesse a ditadura em representação do povo trabalhador contra as agressões da contra-revolução interna e do imperialismo. Concentrando nas suas mãos as funções legislativas, executivas e administrativas podia tomar rápidas decisões que as circunstâncias requeriam.” Grifos nossos.
Segundo se conclui, a Revolução deve o seu êxito ao fato de não ter a sua agilidade atrapalhada pela necessidade de dividir as funções legislativas, executivas e administrativas com o povo! Que foi muito bem representado pelos seus dirigentes.
“De fins de 1970 em diante preparam-se aceleradamente as condições para a participação direta do povo na gestão estatal.
O processo de institucionalização da Revolução iniciado nessa época, começa a avançar a um ritmo muito rápido a partir de 1972 quando já se atingiu um importante grau de recuperação econômica e se deram passos decisivos no fortalecimento das organizações de massa.
...
Durante 1973 reestrutura-se o sistema judicial e tem lugar o importante XIII Congresso da Central de Trabalhadores de Cuba, fortalecendo-se enormemente o movimento sindical que passa a jogar, desde então, um papel fundamental na direção da economia.” Harnecker, Marta – grifos nossos.
Em 1959, os trabalhadores haviam realizado um congresso e eleito em sufrágio direto os seus delegados. Mas seria preciso esperar o momento oportuno e a aceleração do processo para poderem exercer o seu papel fundamental.
A autora conclui assim sua exposição:
“Essa participação direta do povo na gestão estatal, este Estado proletário dirigido por um Partido marxista-leninista, intimamente ligado às massas das quais surge e nas quais se apóia para sua fiscalização e controle, é ditadura ou democracia?”
Deixo aos leitores a conclusão. A minha, desde já, é a seguinte: Se isto é um estado proletário, se o PCC é marxista-leninista, se ele está intimamente ligado as massas e nelas se apóia, minha avó é o prédio do Ministério da Fazenda. É fria. A bola está gelada!

Quinto capítulo

A safra dos dez milhões

Em 70, Fidel lançou a campanha da safra dos dez milhões de toneladas de açúcar. Foi um fracasso.
“É mais fácil, mil vezes mais fácil aniquilar o mercenário de Playa Girón numas horas, do que resolver bem o problema duma fábrica. É mais fácil ganhar 20 guerras do que ganhar a batalha do desenvolvimento.” Harnecker, Marta.
Em conseqüência vieram mudança na estrutura do Estado e do Partido.
“Depois de assinalar os erros que se cometeram ao identificar o Partido com a administração do Estado e ao permitir o debilitamento das organizações de massas, assinala que, apoiando-se nelas, no movimento operário, nos Comitês de Defesa da Revolução, nas organizações juvenis, estudantes e camponeses têm as bases para os passos seguintes que consistem na participação muito mais direta das massas nas decisões e nas soluções dos problemas e uma participação multifacetada em toda a parte; no aspecto terrritorial nos problemas que têm que ver diretamente com eles.” Harnecker, Marta.
Aqui cabe analisar o que causou o debilitamento das organizações de massas.
“Em 18 de novembro de 1959, o novo congresso nacional dos trabalhadores teve lugar no antigo palácio da Confederação dos Trabalhadores Cubanos (CTC). Por sufrágio direto, secreto e livre – nas primeiras e últimas eleições livres no governo de Fidel Castro – foram escolhidos 3.200 delegados entre todos os sindicatos e grupos sindicais do campo. Três mil eram do Movimento 26 de Julho e duzentos dos comunistas e demais grupos.” Franqui, Carlos.
“Os trabalhadores amavam Fidel; o que ele pedisse, eles davam. Mas nunca entregaram seus sindicatos independentes. Quando Che, Raúl e o próprio Fidel os pressionaram com seu apelo pela unidade, eles responderam com um sonoro sim a favor da revolução e do socialismo humanístico. Mas votaram não aos comunistas. O Congresso e os sindicatos rejeitaram completamente as influências externas. Os duzentos delegados comunistas se abstiveram em todas as votações, enquanto os três mil que votaram escolheram uma CTC que era puro Movimento 26 de Julho.” Franqui, Carlos.
Mais tarde esta derrota seria superada, através da atuação do Ministro do Trabalho, comunista e do esvaziamento gradual dos sindicatos.
Os estudantes haviam ocupado um lugar de destaque na luta contra Batista e Pedro Luis Boitel era um dos líderes estudantis do Movimento 26 de Julho cuja importância na universidade era crescente.
“A universidade era um ponto-chave por ser o nascedouro e o lar da revolução. Ela apoiava as mudanças sociais e políticas radicais que a revolução acarretara, mas exigia a autonomia e eleições diretas que tradicionalmente eram seus direitos. Neste ponto entravam em conflito com Fidel, que não queria eleições e nem autonomia para ninguém, especialmente para os estudantes. Estes (como os sindicatos) engoliram a afirmação de Castro em Montevidéu (“Uma revolução latino-americana nova, humanista. Liberdade com pão, pão sem terror”) como um peixe engole a isca. Mas dezenove não são vinte, e agora Fidel exigia “unidade” e obediência dos estudantes, dos sindicatos e do povo. Nem a universidade nem os sindicatos poderiam permanecer independentes, e tampouco o permaneceram. Boitel renunciou e obteve uma vitória moral. Então começou uma campanha de oposição. Antes do fim de 1960, ele estava na prisão. Foi o único líder do Movimento 26 de Julho que morreu na greve de fome ocorrida nas prisões de Fidel em 1974.” Franqui, Carlos – grifos nossos.
A identificação do Partido com o Estado era a própria essência do modelo soviético. Segundo Harnecker, “O Partido é o máximo organismo dirigente em Cuba e como tal dirige e controla os organismos estatais e de massas. Mas dirigir não significa substituir.” Esta é a chave da questão: devido a escassez de quadros e às complexidades das tarefas, o trabalho partidário e a gestão administrativa acabaram se confundindo. Agora estava se colocando as coisas em seu lugar: o partido decide, o administrador executa.
O livro de Marta Harnecker entrevistou trabalhadores da província de Matanzas onde se lançou o piloto do chamado Poder Popular. A cifra de controle foi outra instituição soviética importada. A JUCEPLAN, a réplica cubana da Gosplan, determinava qual deveria ser a produção de cada fábrica, dentro de um planejamento nacional. Destacamos este depoimento colhido numa fábrica de papel:
“Assim vai se desenvolvendo a discussão do plano e então se estabelece um compromisso: a massa de trabalhadores faz um compromisso do que tem que produzir, mas já não é isso de “Pátria o Muerte!” mas sim analisando todos os detalhes, sabendo o que vai poder realizar, e com melhores condições, porque vão passando os anos e nós vamos tendo maiores recursos, não é verdade? ... Mas fazer as coisas “Pátria o Muerte!” como dizem os companheiros implicava de fato fazer avançar as coisas apenas com o movimento dos trabalhadores de vanguarda, aquele grupo de trabalhadores que tinha demonstrado condições exemplares frente ao trabalho e à Revolução. A grande massa ficava para trás, não se integrava nas tarefas.” Grifos nossos.
Outra maneira encontrada de “fazer as massas participarem” foi a introdução do pagamento por norma. Estabelece-se um salário mínimo e paga-se à parte a produção que exceder a norma. Nos países capitalistas, a obtenção desta mais-valia extra chama-se super-exploração.

Quarto capítulo

Putas, pederastas e proxenetas, os 3 Pês cubanos

A sovietização de que fala Franqui se estendeu a toda vida cubana. Foi uma importação mecânica de modelos que desprezou as especificidades históricas, culturais e políticas de Cuba.
Criaram-se os pioneiros, a juventude comunista e a UNEAC (União dos Escritores e Artistas Cubanos), réplica da União dos Escritores da União Soviética. Junto com ela veio a tentativa de impor o modelo do realismo socialista e a perseguição aos intelectuais, que teve o seu período negro no qüinqüênio 71 – 75.
Para os homossexuais e prostitutas criou-se uma gigantesca operação policial, em que os presos eram vestidos com um traje listrado com um grande P nas costas. Segundo Franqui:.
“Fui ao palácio expressar minha raiva a Fidel, Raul e os outros. Lá estavam eles com Ramiro Valdés, Isidoro Malmierca, Barba-Ruiva (Manuel Piñeyro) e José Abrahantes. Valdés é um neurótico torpe, impopular, taciturno e corrupto, como quase todos os moralistas. Estava se gabando do sucesso de sua operação enquanto os outros riam. Ele disse que todas as forças socialistas de segurança que havia consultado (soviéticas, chinesas, vietnamitas, tchecas e alemãs) relataram o que tinham em estoque para esse tipo de gente: execução, vinte anos de trabalhos forçados e campos de reeducação. Ele até trouxera uma máquina tcheca de detecção homossexual. Isto arrancou gargalhadas dos irmãos Castro.
...
Fidel e Dorticós interviram nesse instante, dizendo que as prostitutas seriam enviadas a campos de reeducação e transformadas em novas mulheres, com novos empregos. Os proxenetas seriam processados com todo o rigor da lei. Os homossexuais não seriam processados, mas não teriam permissão de exercer influência na arte, na cultura ou na educação. Afirmaram que a operação foi importante como medida contra-revolucionária.” Franqui, Carlos.
Na organização do trabalho, importou-se o udarniki. Udárit, em russo, significa golpear. Udarniki eram os trabalhadores de vanguarda, que estavam à frente da produção. Na verdade, acabavam constituindo uma casta que recebia privilégios e melhores salários. No caso cubano isto significava ingressos para espetáculos e preferência na compra de eletrodomésticos, entre outras vantagens materiais. O prestígio político também abria várias portas.
Finalmente, em 3 de outubro de 1965 cria-se o Partido Comunista de Cuba (PCC) e constitui-se o seu Comitê Central. Em seu site oficial, o Partido ignora seu passado anterior e sua colaboração com o governo de Batista e com outros ditadores que o antecederam.
“El antecedente histórico más inmediato de la formación del Partido Comunista de Cuba se encuentra en el amplio proceso unificador que tuvo lugar en 1961 con la formación de las Organizaciones Revolucionarias Integradas (ORI), que constituyó el primer paso hacia la creación del instrumento político unitario de la Revolución; formadas por el Movimiento Revolucionario 26 de Julio, liderado por Fidel Castro, fundador del Ejército Rebelde e iniciador de la última etapa de la lucha revolucionaria; el Partido Socialista Popular (PSP) (Comunista) cuyo secretario general era Blas Roca y el Directorio Revolucionario 13 de Marzo, dirigido por el comandante Faure Chomón.” Site oficial do PCC.
É engraçada esta omissão, porque o próprio Fidel discursou no 50º aniversário do Primeiro Partido Comunista de Cuba, em 22 de agosto de 1975. Harnecker reproduz trechos deste discurso:
“E Fidel termina dizendo: “Recordaremos sempre com emoção o dia em que, algum tempo depois do triunfo da Revolução e em seguida a um processo de unificação das forças revolucionárias, Blas Roca depositou nas nossas mãos as bandeiras gloriosas do Primeiro Partido Comunista de Cuba.”
A bolinha foi “sorteada”.
Mais interessante ainda é a data do Primeiro Congresso do Partido Comunista Cubano: maio de 1975! De 65 a 75, democraticamente, o Comitê Central decidiu sobre os rumos da revolução, sem a necessidade de ouvir as suas bases.
A opção pelo modelo soviético levou Cuba a se filiar, em 72, ao COMECON, o bloco econômico fundado em 1949, que abrangia a União Soviética e os países do leste europeu. Antes disso, através de tratados comerciais com os russos, ela vendia seu açúcar a preços acima do mercado e comprava petróleo a preços subsidiados. A lógica do mercado entre os países socialistas era que cada um deveria investir onde suas vantagens comparativas fossem maiores. Complementando suas economias, todos sairiam lucrando. A conseqüência para Cuba foi reforçar a monocultura e travar a sua industrialização, criando uma dependência político e econômica.

Terceiro Capítulo

Um estranho no ninho

O cuco é conhecido por colocar seus ovos no ninho de outros passarinhos. O filhote de cuco, assim que nasce, tenta jogar os outros para fora, para receber sozinho a alimentação dos pais adotivos.
Desta vez, os pais adotivos pegaram o filhotinho de cuco em flagrante.
“Segundo o máximo dirigente da Revolução cubana, desta maneira não se estava organizando um partido, mas antes uma “clique”. “Estávamos a organizar ou a criar um colete de forças, um jugo, companheiros. Não estávamos criando uma organização livre de revolucionários, mas sim um exército de revolucionários domesticados e amestrados.” Harnecker, Marta.
Na hora de retificar o erro, some a direção da revolução e aparece o máximo dirigente. Mais tarde, o Comandante veria que era justamente do exército de revolucionários domesticados e amestrados que ele iria precisar.
O movimento de depuração das ORI começa com a criação de uma Escola Superior de Formação Política, de onde serão escolhidos os melhores alunos para serem os militantes. Em 62 o projeto das ORI é abandonado e surge o Partido Unido da Revolução Socialista, “que responde ao caráter socialista que toma abertamente o processo cubano depois da invasão de Playa Girón.” (Harnecker, Marta)
O socialismo em Cuba foi, literalmente, decretado. E o fator que definiu o caráter socialista da revolução, ao invés de vir da correlação de forças, da dinâmica interna dos interesses de classes em choque, veio de fora, de uma tentativa desastrada de invasão. Foi este fator, a ameaça americana, que acabou precipitando o alinhamento de Cuba à esfera de influência soviética.
“Certo dia acordamos e, maravilha das maravilhas, não havia nada para comer – nem café, nem arroz, nem açúcar, nem carne, nem feijão, nem leite, nem frutas – yes, nós não tínhamos bananas.... Tínhamos abundância de nada, mas tínhamos longas filas, racionamento, aumento de preços, mercado negro e uma crise que afetou tanto a economia quanto os meios de produção.
...
Che disse com todas as letras: não podíamos culpar o imperialismo por um declínio da produção nacional. Fidel concedera poder aos velhos comunistas, que, disse ele, eram os únicos que entendiam de socialismo – Escalante e os outros. Estes foram os resultados; eles sovietizaram tudo de cima a baixo. Tentavam consertar máquinas com leituras sobre o marxismo, e se um operário dissesse que a Internacional era inútil para a manutenção de máquinas, acusavam-no de contra-revolucionário.
O que acontecera na realidade? Primeiro, houve um aumento extraordinário do poder de compra de cada cidadão, de no mínimo 100%. Segundo, todas as reservas de comida se esgotaram, assim como suprimentos de artigos de luxo. Terceiro, houve uma queda brusca na produção agrícola, porque os grandes proprietários rurais e criadores de gado simplesmente abandonaram a terra que lhes restou após a expropriação. Estas chegavam perto de setenta hectares, que eles não achavam viável cultivar. A maioria das pastagens e fazendas de Cuba havia sido estatizada, mas o problema era que os administradores do Partido enviados para dirigi-las procediam todos da cidade, e metiam os pés pelas mãos em tudo. O quarto fator foi que havíamos comido todo o nosso gado. Isto significava que não tínhamos nem leite e nem carne. O sistema de transportes foi também abandonado à ruína, de forma que o que era produzido não chegava aos mercados.” Franqui, Carlos – grifos nossos.

Segundo capítulo

Fidel: marxista, humanista ou oportunista?

Para decidir sobre esta questão é melhor escutar o próprio Fidel em um discurso feito em Nova York, no Central Park, em 1959, depois da tomada do poder.
"Nossa revolução pratica este princípio democrático e é favorável a uma democracia humanista. Humanismo quer dizer que, para satisfazer as necessidades materiais de muitos, não é necessário sacrificar os mais caros desejos do homem, que são suas liberdades, e que as liberdades mais essenciais do homem nada significam se suas necessidades materiais também não são satisfeitas.... Não ao pão sem liberdade, não à liberdade sem pão; não à ditadura de um homem só, não à ditadura de classes, grupos ou castas. Governo do povo sem ditadura ou oligarquia; liberdade com pão, pão sem terror: é o que significa o humanismo." Franqui, Carlos, Retrato de Família com Fidel.
Fidel diz com todas as letras: não à ditadura de classes. Ora, o traço essencial do leninismo é a sua teoria do estado e da ditadura do proletariado. Marx vê a história com uma contínua luta de classes, justamente o oposto do humanismo abstrato que Fidel defende.
Não se trata aqui de oportunismo ou de esperteza. Um marxista saberia muito bem como defender o conteúdo democrático da revolução, de maneira ampla, sem cometer tantas heresias teóricas. Fidel não era marxista. Seu irmão Raúl, Che, Haydée Santamaria, Camilo Cienfuegos e outros dirigentes, em graus variados, eram influenciados pelo marxismo. Marxista ou não, o fato é que todos reconheciam em Fidel o líder da revolução.
É interessante notar como os comunistas abrem mão de seu direito teórico de guiarem o processo revolucionário:
“ E foi um dia que jamais esqueceremos quando, com Blas Roca à frente, nos apresentamos todos perante Fidel Castro como simples soldados de fila de uma causa comum na qual ele era para nós, como para todo o povo revolucionário, o Comandante em Chefe” (discurso de Carlos Rafael Rodrigues, dirigente comunista). Harnecker, Marta.
Soldados que não pegaram em armas reconhecem em um líder que não era marxista o direito de conduzir o processo revolucionário! Pode-se dizer que nem mesmo os comunistas cubanos eram marxistas.
Tomado o poder, era preciso criar uma estrutura de governo. Dois anos depois, as três bolinhas - o Movimento 26 de Julho, o Diretório Revolucionário e os comunistas - vão para o mesmo saco: as Organizações Revolucionárias Integradas (ORI).
“Ernesto Che Guevara conta como a direção da Revolução pensara num organismo de “quadros estritamente selecionados” e ligados às massas, de uma “organização centralizada e elástica ao mesmo tempo”, e confiou “cegamente na autoridade ganha em muitos anos de luta pelo Partido Socialista Popular” deixando nas suas mãos a organização deste projeto.” Harnecker, Marta.
A bolinha foi para a geladeira!
Falar na “autoridade ganha em muitos anos de luta pelos comunistas” é piada de mau gosto. Vale notar que na hora de cometer um erro, o Comandante Fidel desaparece e surge uma direção da Revolução, anônima. A qualidade que certamente distinguiu os comunistas não foi sua “autoridade” como lutadores. Foi sua estrutura disciplinada e verticalizada, que permitia que seus militantes condenassem o assalto à Moncada como aventura num dia e se apresentassem ao aventureiro, como simples soldados de fila, no outro.
“Isto deu lugar – por tendências sectárias do PSP e porque muitos companheiros honestos acreditaram que Anibal [Escalante] seguia uma linha coletiva que incluía orientações do próprio Fidel – ao por em marcha todo um dogmatismo e sectarismo em que ... até desertores do PSP foram preferidos a combatentes da Serra, apenas por terem sido militantes do mesmo.” Harnecker, Marta.

Uma resenha de Cuba: democracia ou ditadura? de Marta Harnecker.

A bolinha sorteada

Kafunga, um grande filósofo contemporâneo, contava que, em certa época, a Federação Mineira de Futebol havia encontrado a maneira perfeita de responder à acusação de que só escalava árbitros tendenciosos: três juízes eram pré-selecionados; um era escolhido por sorteio para apitar e os dois restantes iam para a bandeira. Toda imprensa podia ver um garoto enfiando a mão na sacolinha de pano e retirando a bolinha de madeira com o número do árbitro principal. O que ninguém via era o dirigente colocando a bolinha que seu filho iria sortear na geladeira.
O livro de Marta Harnecker pergunta: democracia ou ditadura? Eu acrescentaria ainda: socialismo ou capitalismo de estado?
Para responder estas perguntas é necessário conhecer a gênese da revolução cubana, ou melhor, como é que a bolinha do Partido Comunista Cubano foi parar na geladeira.
O mito da Revolução Cubana é muito conhecido: em 26 de julho de 53, Fidel e um punhado de companheiros tentou tomar de assalto o quartel de Moncada. Preso, foi para o exílio no México. Lá reuniu 80 homens que embarcaram no iate Granma. Foram emboscados e apenas 12 sobreviventes alcançaram a Sierra Maestra. Dois anos depois os guerrilheiros entravam em Havana.
O mito não persiste apenas no imaginário popular, ele inspirou uma geração de revolucionários por toda a América Latina. Regis Debray, um intelectual francês, deu forma teórica ao mito em seu livro “Revolução na revolução”. O próprio Che encontrou a morte na Bolívia tentando repetir a receita cubana.
Cuba era um país relativamente próspero sob Batista, apesar da grande desigualdade social e da existência de um governo corrupto e sanguinário. O grande partido de massas, de oposição, era o Partido Ortodoxo, de onde saíram os quadros que atacaram o quartel de Moncada. Seu símbolo era uma vassoura.
Os barbudos, como eram identificados os homens de Fidel, eram uns 300, ao final da luta. Do outro lado, havia o exército de Batista com 50.000 homens. Para entender como isto foi possível é preciso conhecer todas as forças envolvidas no processo.
Os estudantes tomaram parte ativa nesta luta, com suas federações. Os empregados no comércio e na indústria promoveram várias greves, inclusive a greve geral que impediu que o general indicado pelos americanos assumisse o lugar de Batista. Havia ainda o Diretório Revolucionário, que ajudou ativamente ao Che, na batalha decisiva de Las Villas e o Movimento 26 de Julho, muito amplo e abrigando várias tendências. Os camponeses tinham uma tradição de luta que vinha desde a guerra da independência. Fidel e seus homens foram acolhidos, logo depois do desembarque fracassado, por camponeses que já estavam organizados na luta contra Batista.
Pelo seu conteúdo, a revolução era essencialmente democrática burguesa. O Partido Comunista Cubano participava do governo Batista e condenou o levante armado. Apenas no final da luta, quando a balança já havia se inclinado para o lado dos rebeldes, é que eles apareceram na Sierra Maestra.
Segundo Marta Harnecker:
“Em 1959 existiam fundamentalmente três grupos revolucionários: o Movimento 26 de Julho, o Diretório Revolucionário e o Partido Socialista Popular (Partido Comunista) que agrupavam alguns milhares de militantes.”
O Partido Comunista era um grupo revolucionário que, não só não participava da revolução, como era contra ela!
“Esta longa luta começa sem que exista um partido revolucionário forte, mas contando com um líder indiscutível, Fidel Castro, que já antes do assalto ao quartel Moncada, juntamente com outros dirigentes do Movimento 26 de Julho, tinha feito sua a concepção marxista-leninista da história”. Harnecker, Marta.
Continua.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Mea Cuba

Imagino a cena. O foca perguntando a Hemingway: por que você resolveu se estabelecer na Espanha?
Um suspiro e a resposta seca – pelos touros.
- E em Cuba?
- Pelo rum.
O argentino Guevara, um belo dia, meteu na cabeça conhecer o nosso continente e saiu em excursão. Foi uma experiência decisiva. Como na propaganda, ele continuou andando: México, Cuba, Congo, Bolívia.
Os pais de Lula, inconformados com a miséria, fizeram suas trouxas e rumaram para o Eldorado paulista. Uma gotinha no regato da migração interna, afluente de uma grande corrente universal.
O ser humano normal viaja por prazer, por necessidade, por ideal, pelo que lhe der na telha. Pára onde lhe agrada e vai embora quando quer. Somos homens e a Terra é a nossa casa. O nosso local de nascimento é um acidente. É apenas uma posição particular no continuo espaço-tempo. Dentro de si carregamos aquilo que não é contingente, nossa essência. Estivessem onde estivessem, Hemingway era um grande escritor e Che um grande revolucionário.
Dito isto, para mim fica claro que ir e vir é um negócio particular. Cumpridas as formalidades legais, tenho o direito de me deslocar para onde eu quiser. O direito de ser recebido é outra história. Aí entra em consideração a soberania. Cada um administra sua casa como quiser e só recebe quem julgue que deva receber.
As leis, em tese, devem ser impessoais. Na sua aplicação, toma-se o caso particular e verifica-se se ele preenche os requisitos gerais. Satisfeitos estes, está assegurado o direito ou aplicada a sanção.
Os mais espertos já chegaram à conclusão que eu queria: o governo cubano deveria ter autorizado a saída de Yoanis. Alguns mais exaltados dirão: mas ela só virá ao Brasil fazer provocações!
Fazer uma declaração que desagrade ao governo cubano não é crime, pois não? É apenas uma opinião. É o que faço o dia inteiro no Facebook: dar a minha opinião. Crítico as posições de nossa presidente e as suas declarações. Até mesmo o seu corte de cabelo estilo cotonete eu já me meti a criticar. E aplaudo suas decisões corretas. É a tal da política. Eu, como cidadão, não devo me omitir dos assuntos da minha cidade, país ou até mesmo do mundo.
No fundo, o que indigna muita gente é que Yoanis está colocando em xeque mitos muito fortes. A esquerda anda tremendamente carente. O muro caiu, o leste europeu se esfacelou, a China se aburguesou, sobrou apenas uma pequena ilha. E eis que a mocinha proclama para o mundo todo que a vida em Cuba é uma droga e que o seu governo não respeita os direitos humanos. É insuportável. É ofensivo.
Eu já li o seu blog. Mostra uma Cuba não muito diferente da que eu conheci. Depois de 50 anos de revolução, ela não confia mais no socialismo como alternativa. "O modelo cubano não funciona mais nem mesmo para nós". Quem disse isto não foi ela. Foi Fidel em uma entrevista ao jornalista Jeffrey Goldberg.
Cuba está no meio de reformas decisivas. Seria talvez o momento de apelar para que os seus cidadãos participassem mais ativamente dos negócios políticos. Na Grécia antiga, um arauto lia o tema em pauta e perguntava: quem pede a palavra? Hoje, com a Internet, o cidadão pode fazê-lo sem sair de casa. É o que Yoanis está fazendo. Se certa ou errada, é outra questão.
Também é possível bancar o avestruz e achar que as assembléias do Partido único são democráticas, que as pessoas vão se manifestar nelas livremente, que ninguém vai ter medo de criticar as autoridades, porque sabe que não será punido, e assim por diante. A União Soviética fez isso por um longo tempo.
No fim, os oportunistas de sempre saíram do barco antes que ele afundasse. Usaram os fundos partidários para negociatas e compraram e venderam o país na bacia da alma. Eram todos comunistas de carteirinha. Foram leais ao regime até a véspera da queda. No dia seguinte, juraram que eram democratas desde criancinhas e foram ajudar a lacrar as sedes do Partido. Hoje são chamados de oligarcas.