Em 1970, Fidel lançou a campanha das 10 milhões de toneladas de açúcar. A meta não foi cumprida. Apesar de todo o país ter se engajado nela, o total produzido ficou em torno de 8,5 milhões. Para analisar o fracasso, Fidel fez um discurso, registrado em um livro intitulado “Autocrítica.”
Inicialmente, ele aponta as dificuldades demográficas: de 1959 a 1970, a população cubana subiu de 6.500.000 a 8.300.000 (aproximadamente). Entretanto, devido à estrutura da pirâmide populacional, só 32% estavam ocupados em atividades econômicas. Somente para o qüinqüênio 1975-1980 estava prevista uma melhora desta composição etária. Como comparação, os países industrializados da Europa, no mesmo período, contavam uma média de 45% da população ocupada em atividades econômicas.
Paralelamente, houve um aumento muito considerável do gasto público em saúde, educação, seguridade social, etc. Com o aumento da renda, cresceu o meio circulante em poder da população. Este desequilíbrio não foi repassado ao preço dos produtos essenciais, o que agravou os problemas do racionamento.
Cerca de 300.000 homens foram empregados nas tarefas de defesa interna e externa, o que representa mais de 10% da população economicamente ativa. Mesmo levando em conta que os soldados e milicianos se envolviam nas tarefas de produção, assim como os estudantes, este é um fator de peso, num país com escassez de mão-de-obra.
Além destas dificuldades, Fidel considera o fator subjetivo:
“... de inicio éramos apenas um povo rebelde, emocionalmente revolucionário, mas que quanto aos problemas políticos e sociais estávamos realmente confusos e doutrinados pelos jornais, as revistas, os filmes, os livros e todos os meios de divulgação imperialistas.
... há que dizer que a maioria do nosso povo nos começos de 1959 nem sequer era antiimperialista, não tinha consciência de classe. Instinto de classe – o que não é o mesmo.
É preciso lembrar que os primeiros anos foram anos de grandes batalhas políticas, de grandes batalhas ideológicas entre o caminho capitalista ou socialista, entre o caminho burguês ou proletário, e que o trabalho da pequena vanguarda revolucionária foi conquistar antes de tudo a consciência das massas.”
É preciso lembrar que estas batalhas político-ideológicas resultaram na negação da autonomia universitária, no cerceamento dos sindicatos e federações, que em suas primeiras eleições livres impuseram uma derrota esmagadora ao PCC, e no afastamento de uma série de lideranças históricas do movimento guerrilheiro e do 26 de Julho.
Há que dizer que a auto intitulada vanguarda se apoiou na importação mecânica do modelo soviético, com a colocação de todas as organizações revolucionárias na camisa de força do PCC. E que o poder revolucionário acumulou as funções executivas e legislativas nas mãos desta vanguarda, usando todo o crédito que a liderança carismática de Fidel lhe conferia.
Houve, enfim, a passagem de uma revolução democrático burguesa, pelo seu conteúdo, para uma estatização total da economia e uma apropriação do poder por um pequeno núcleo dirigente.
Embora, não houvesse consciência de classe (se aceitarmos a colocação de Fidel) as transformações iniciais atenderam à expectativa popular. A maioria da população experimentou uma melhoria notável no seu nível de vida.
As opções feitas tornaram o comércio exterior cubano muito dependente do campo socialista.
“Não esqueçamos que, apesar de tudo, durante estes anos tivemos grandes desequilíbrios no nosso comércio externo, especialmente com a União Soviética. Não esqueçamos que temos de importar cinco milhões ou mais de toneladas de combustível...”
Não esqueçamos que o açúcar, em Cuba, esteve intimamente ligado à exploração colonialista e neo-colonialista. Com a imposição de preços e cotas, e a exportação de todo o tipo de produtos, o imperialismo americano manteve Cuba debaixo de sua influência desde que ela se libertou do domínio espanhol. Não esqueçamos que uma das razões para o regime investir tão pesadamente nesta monocultura foi justamente o déficit no comércio exterior. Martí, um dos grandes inspiradores de Fidel, havia dito: “o país que quer morrer vende a um único país.”
E, mesmo deslocando toda a força de trabalho que podia para a colheita da cana, a meta não foi alcançada. Uma das causas que Fidel aponta, sem meios termos, é a ineficiência. Ele enumera algumas razões desta ineficiência: falta de infra-estrutura, carência de mão-de-obra e absenteísmo.
Este último fator é preocupante. É um sinal de que as massas estão começando a se afastar da revolução e que a batalha político-ideológica não foi ganha. Embora Fidel não chegue a esta conclusão, uma das causas deste afastamento é o racionamento.
Falta quase tudo: sabão, tecidos, pasta de dente, cerveja, carne, vegetais e frutas. A indústria leve copiou em tudo o modelo soviético. São incapazes de fazer um sapato que não se desmanche em pouco tempo.
As dificuldades de infra-estrutura vão desde a carência absoluta de meios de transportes, de armazenamento e de estocagem, passando pela dificuldade de carga e descarga nos portos, até os cortes constantes de energia elétrica.
E qual a razão última destas dificuldades?
“Hoje, a indústria, as matérias-primas, os recursos naturais, as fábricas, as máquinas, o equipamento de toda a ordem, pertencem à coletividade. Se com essas máquinas, se com esse equipamento, se com esses recursos não fazemos o ótimo, não é porque sejamos impedidos por um capitalista, não é porque sejamos impedidos por um imperialista, não é porque sejamos impedidos por um proprietário...
Se não fazemos o uso ótimo não é porque alguém nos impeça: é porque não sabemos, é porque não queremos, é porque não podemos. E por isso temos de saber e querer empregar esses recursos da maneira ótima. E temos de poder empregá-las de maneira ótima recorrendo simplesmente às reservas de vontade, de moral, de inteligência, de decisão do povo, que já demonstrou como as possui, sim já o demonstrou!”
Excelente diagnóstico, pena que não foi implementado.
Há dois pontos a serem analisados: o primeiro é a questão da planificação socialista; o segundo, a questão da democracia socialista.
Em relação ao planejamento, Fidel propõe medidas burocráticas: criar um Gabinete de Produção Social no Comitê Central; criar mais organismos de coordenação, além do Conselho de Ministros; separar as tarefas de administrador e de dirigente partidário nas fábricas, entre outras. Ou seja, mais centralização e mais poder para o Partido.
Num governo extremamente centralizado e personalista, o primeiro culpado pelo fracasso da economia seria naturalmente o seu dirigente máximo.
“... Seria melhor dizer ao povo: procurem outro. Ou mesmo: procurem outros (Gritos de: “Não!”). Seria melhor. Mas na realidade seria uma atitude hipócrita de minha parte.
Creio que nós, os dirigentes desta Revolução, saímos demasiadamente caros com o nosso processo de aprendizagem. E desgraçadamente o nosso problema – não no que respeita à substituição dos dirigentes, pois este povo pode-os substituir quando quiser, no momento que quiser, agora mesmo se quiser! (Gritos de: “Não!”) E: “Fidel!” “Fidel!” “Fidel”) -, um dos nossos mais difíceis problemas – e estamos agora a pagá-lo – é antes que tudo, a herança da nossa própria ignorância.”
Você é um fanfarrão, Fidel.
É obvio que os gritos de “Fidel” deviam ser sinceros. Que alternativa haveria? Coloquemos a questão numa perspectiva menos personalista - a luta política-ideológica a que Fidel se refere foi travada principalmente no seio da revolução, para assegurar que o núcleo dirigente não sofresse contestações. A estrutura de poder não permitia modificações de dentro. E a participação popular não ia muito além de aclamar em praça pública o seu líder carismático.
É verdade que uma revolução deve destruir a máquina do estado tal como a encontra. Como e o que colocar no seu lugar é a grande questão. Fidel narra que fábricas tinham que interromper a produção porque não havia espaço para estocá-la e nem transporte para retirá-la. A pergunta que não quer calar é: será que não havia um operário antigo, mais esperto, que poderia ter previsto o problema? A resposta é: se ele fosse mesmo esperto, ficaria calado e deixaria que o administrador se virasse sozinho. Para que ser acusado de contra-revolucionário?
Depois do fracasso, 12 anos depois de assumir o poder, o regime começa a se preocupar em elaborar uma constituição e criar uma estrutura de governo que chama de poder popular. Se já houvesse um poder popular dentro das fábricas, erros grotescos, como os que Fidel apontou, não teriam sido cometidos.
O planejamento de cima para baixo adota a mesma dinâmica da luta política: baixa palavras de ordem, no caso cifras de controle, e coloca a militância para implementá-las com apelos ideológicos. Qualquer crítica a este planejamento é tratada como manifestação contra-revolucionária. Os técnicos não são ouvidos. Os dirigentes se tornam, do dia para noite, especialistas em áreas que nunca dominaram. Che foi nomeado diretor do Banco Nacional de Cuba, espécie de Banco Central Cubano.
Quando Deng Xiao-ping lançou o slogan: “não importa se o gato é vermelho, o importante é que ele saiba caçar gatos”, ele estava fazendo uma crítica direta a este estilo de planejamento. Mao havia lançado a campanha de construção dos auto-fornos domésticos para aumentar a produção de aço. Escolas e comunas começaram a derreter talheres e utensílios de aço para cumprirem as metas estabelecidas. O aço que produziam era de baixíssima qualidade e não podia ser usado. O “grande salto para frente” gerou uma grande fome. Em minha opinião, a essência da crítica de Deng estava correta. Politicamente, ele não era o que poderíamos chamar de vermelho.
Outra característica deste tipo de planejamento é que ele simplesmente passa por cima das leis da economia, como se elas pudessem ser derrogadas através da simples vontade política. Um exemplo clássico é a ilusão de que o estado pode fixar arbitrariamente preços para facilitar a transferência de recursos para os setores onde ele acha que são mais necessários. Na União Soviética, esta política resultou em super-exploraçao dos camponeses, mercado negro, ineficiência da indústria ligeira, inflação, déficit de moradias e uma série de outros desequilíbrios.
O tabelamento e o racionamento dos produtos essenciais em Cuba resultaram no mercado negro e na queda continuada da produção agrícola. Quando finalmente o Estado autorizou a venda direta dos produtos agrícolas, houve o aumento das desigualdades. Como a libreta não cobria todas as necessidades, os mais pobres passaram a gastar proporcionalmente uma parcela muito maior de seus salários com a compra destes produtos do que os mais favorecidos. O igualitarismo imposto por decreto se transformou no seu contrário.
Em resumo, foi louvável a tentativa de se fazer uma autocrítica, embora a correção de rumos proposta não tenha resultado em mais democracia e nem em um melhor planejamento.