Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte, capítulo 6

A biblioteca
A Biblioteca Pública ficava na rota de saída do colégio. Eu descia a pé a Rua da Bahia, parava para devolver um livro e retirava outro. Lia num ritmo de uma página por minuto, praticamente um livro por dia. Todo Sherlock Holmes, todo Dostoievski, Allan Poe, Chesterton,  Aldous Huxley, Walter Scott e um monte de autores menores, ingleses e americanos. Voltaire e Bertrand Russell. Anatole France, Prosper Merimée e um monte de autores menores franceses.
Lia sem método, pulando estilos, países, sem recomendação de ninguém. Dostoievski me impressionou particularmente. Seus personagens torturados, perdidos. Adorava seus enredos melodramáticos, quase novelísticos, suas mulheres orgulhosas, que se humilhavam para provar sua superioridade moral. Eu as via pálidas, de grandes olhos, gargantilhas e camafeus, cabelos presos, saias negras até o chão.
Admirava suas discussões teológicas, seu eslavismo, sua exacerbação. Os nomes que eu pronunciava à brasileira (Karamazóv e não Karamázov), os estranhos costumes, os prédios com vários apartamentos, pequenos quartos alugados e um pátio. Era um escritor que contabilizava cada copeque. Dostoieviski  fazia questão de discriminar o valor em rublos de cada propriedade, o salário de cada pequeno funcionário, o valor de cada garrafa de vodka barata.
Estranhamente, nunca pensei em escrever. Acho que era muito crítico, tinha padrões muito altos. Detestava as aulas de português, a poesia e as redações obrigatórias. Gostava de fazer resenhas de livros. Na maior parte das redações, os meus colegas buscavam os efeitos fáceis, as descrições de paisagem com o sol sempre se pondo, ou nascendo. Eu fazia uma redação padrão, dissertativa, sem grandes voos.
Lembro-me de uma redação que fez sucesso na escola. O soldado, perdido do batalhão, no meio da neblina, escutando cada ruído. Era jovem, arrimo de família, não entendia o porquê da guerra, queria viver, aqueles clichês todos. Alto, quem vem lá! Era amigo. E tome discurso. Até o fim triunfal. Um estalo. Quem vem lá! Era o inimigo.
A maior parte de minha cultura inútil foi adquirida na adolescência. Adquiri a arte de pesquisar rapidamente um assunto, de estabelecer correlações e me tornei definitivvamente um autodidata. Meu vocabulário era enorme, possuía um conhecimento enciclopédico de países, cidades, costumes, moedas, etc. Karl May foi lido de cabo a rabo. Sabia os nomes dos animais amigos do Tarzan, as palavras da linguagem dos gorilas, um monte de expressões em árabe, as peças de uma armadura medieval e por aí vai.
Era o mais novo da turma, um dos mais baixos. Óculos fundo de garrafa, tártaro nos dentes, desajeitado. Não sabia dançar nem andar de patins e caia da bicicleta.. Tímido, poucos amigos, sofri nos primeiros anos com as piadas e as alusões sexuais que não entendia. O espelho era meu inimigo. Gordinho, feio, a testa curta, o nariz chato, o queixo redondo. Até chegar aos 15.



Trama

Trama


Novelo enrolado
No centro da trama, um gato
Desembaraçado

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A trilha Ho Chi Minh - segunda parte

A minha guerra era travada no alpendre da casa da minha avó. As bisnagas de colírio eram as B 52; as formigas cortadeiras eram as outras formiguinhas humanas, os vietnamitas. Como eu já revelei, um metro abaixo do parapeito, havia um ressalto que contornava toda a casa. Ele era usado como trilha para abastecer o formigueiro. O bombardeio de água não era letal. No máximo eu conseguia acertar em cheio uma formiga, com uma gota de água, arremessando-a uns dois metros abaixo, no chão do jardim. As bisnagas podiam dar rajadas (jatos contínuos) ou tiros (gotas). Eu preferia os tiros, a água durava mais e não eram tão impessoais. Às vezes eu perseguia uma formiguinha mais rápida, com tiros que iam deixando sua marca na trilha caiada. Ela se sacrificava para permitir que suas irmãs atravessassem com sua carga preciosa. Outras vezes, era mais científico: fazia uma barreira de fogo que detinha a coluna. O bombardeio durava horas. Ás vezes, um curioso parava no passeio, para ver aquele adolescente, de óculos fundo de garrafa, brincando como uma criança.
É engraçado como cultivamos alguns medos e aversões. Toda minha adolescência foi povoada de fantasias de duelos e de brigas, no melhor estilo dos filmes B. Uma coisa eu detestava nesses filmes: aquelas cenas de batalha em que a infantaria avançava com o passo cadenciado pelos tambores, passando por cima dos soldados que iam caindo, derrubados pela artilharia do inimigo. Se alguém tem um fuzil na mão, por que não atirar? O que tem na cabeça de um sujeito que vai para a batalha tocar tambor ou carregar o estandarte do regimento?
Nas poucas passeatas em que participei, ficava sempre na retaguarda, pronto a sair correndo. Não era só uma questão de medo. Uma vez participei de uma panfletagem no Mineirão. O Mineirão foi inaugurado quando eu estava no segundo científico, com um gol de Bugleaux. A panfletagem deve ter sido no segundo ou no terceiro científico. Lembro que o Xexéu (também conhecido como Ferrugem) participou de alguma maneira. Os panfletos eram guardados dentro da meia; uma folha de meio papel ofício, mimeografada. Não lembro qual era o jogo. Ações assim, individuais, em que eu “controlava” os acontecimentos eram excitantes. Mais tarde eu faria com prazer pichações e panfletagens noturnas.
Era difícil definir como eu encarava aqueles estudantes que iam à frente das passeatas; com as faixas, muitas vezes de braços dados, formando uma corrente. Na maioria das vezes eram os primeiros a apanhar de cassetete e não tinham muito para onde correr. Primeiras manifestações de individualismo? Eu me dispunha a levar o meu fardo na trilha, junto a outras tantas formiguinhas, mas nada de ir na frente.
O que eu fazia com 17 anos na casa da minha avó? Acompanhava minha mãe, que mais uma vez havia brigado com o meu padrasto. Nas horas vagas, comia a garota retardada do vizinho e estudava para o vestibular de engenharia. Consegui sucesso nas duas empresas: passei e engravidei a garota. Perdi a guerra contra as formigas. Os americanos também perderam a sua.


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - A trilha Ho Chi Minh, primeira parte

A trilha Ho Chi Minh
Sem querer, acabei abandonando o critério temporal em favor de uma abordagem temática: o colégio, os professores, o clube de xadrez. Essa escolha tem uma vantagem evidente, ela ressalta as invariantes e as transformações de meu caráter. Minhas obsessões e minhas escolhas.
A datação por artefatos, como método auxiliar vai perdendo importância, à medida em que aumenta a minha interação com o mundo exterior. A maior parte dos artefatos de minha infância e mesmo da adolescência não chegou até a idade moderna. O sabão Aristolino foi um dos que se extinguiram. Ficava em cima da pia de louça decorada, dentro de um globo de vidro preso por uma corrente. O líquido verde se acessava apertando uma peça de metal na parte de baixo da esfera. Mais uma espécie extinta: as caixas de madeira do Mate Leão, feitas de peças denteadas de madeira, que se prendiam por pressão e eram ótimas para se guardar bugigangas.

Gostava também dos potes de Rugol, um creme que minha avó usava diariamente, feitos de um plástico duro e com uma tampa de rosca toda decorada, como um camafeu. O creme parecia fazer efeito, pois ela chegou aos noventa com uma face de porcelana.
Alguns remédios, talvez mais eficazes, perduram: a Emulsão de Scott, ótima fonte de vitaminas A e D (eu adoro o seu gosto e parece que não mudaram muito o rótulo); o Polvilho Antisséptico Granado e as pastilhas Walda (tenho um monte de suas caixinhas de metal).
O Fercobre, que deixava os dentes pretos e era bom para anemia acabou. Seu sucessor, o sulfato ferroso, é um pó muito barato e sem graça, que nem embalagem tem. O avô de todos os fortificantes eram as garrafadas que o meu bisavô fazia: uma beberagem que vinha sempre com um prego enferrujado no fundo. Ao fazer um inventário destes produtos, percebo que as suas embalagens me atraiam muito mais do que o conteúdo, por mais virtuoso que ele fosse. Seria esta a minha primeira manifestação de formalismo?
O formalismo é o pior inimigo da arte socialista soviética. Seu perigo geralmente reside no fato de que ele oferece aos agentes fascistas, aos desprezíveis degenerados trotskistas, aos renegados de direita e a todos os inimigos do povo a possibilidade de difundir ideias antissoviéticas e contrarrevolucionárias, sob a capa de infinitas maquinações, manobras e “valores estéticos” independentes. (Revista Teatr, 1937)
Uma coisa é certa, eu adorava as bisnagas de plástico do Colírio Moura Brasil. Nunca usei o seu conteúdo. Pelo contrário, às vezes acabava com ele mais rápido para poder usar a bisnaga. Elas tinham um bico de plástico com um furo muito bem dimensionado. Quando cheias de água seu jato ia longe e não se dispersava. Era ótimo para produzir rajadas de metralhadora nas paredes caiadas de rosa.

A trilha Ho Chi Minh é fácil de ser datada. Foi no ano em que fiz vestibular. A guerra do Vietnã estava no auge. Os vietnamitas usavam uma trilha no meio das selvas, através do Cambodja, para abastecer os guerrilheiros que lutavam no Vietnã do Sul. E os americanos os bombardeavam diariamente, com suas B 52, que eram inacessíveis aos poucos Mig 17 e 21 do Vietnã do Norte. Os armamentos eram transportados individualmente, nas costas dos soldados, como numa enorme correição de formiguinhas. Um ano depois, houve a ofensiva do Tet, o ano lunar chinês. Fiz meu primeiro poema concreto, que me deixou muito orgulhoso.   

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - Capítulo 4, continuação

O Clube de xadrez - última parte


Nas partidas amistosas, os trocadilhos e as provocações se cruzavam, como num jogo de truco:
- Isso não é cavalo, é um pedaço de pau!
- Isso não é bispo, é um peão grande!
- Aceita tablas? - só se empatava (entablava) em espanhol.
 Jaque! - os xeques eram dados com o jota bem escarrado.
O espanhol era a língua do xadrez. Influência dos livros vendidos na Livraria Científica, onde o Cota trabalhou. Até o dia em que meteu uma bala na cabeça por causa de uma mulher.
O abandono da partida era uma marca individual: os mais dramáticos deitavam o rei sobre o tabuleiro. Havia gradações: uns derrubavam a peça com raiva, outros a mantinham presa pelo cocuruto com o indicador e só faziam uma leve reverência ao adversário. Os discretos apenas paravam o relógio, igualando a altura dos dois pinos. Os amantes do suspense escreviam abd. (Abandonam) na planilha e depois apertavam a mão do adversário. O aperto de mão final era praxe, algo como o abraço dos dois boxeadores depois do combate. A diferença era que, aqui, a iniciativa devia partir sempre do derrotado. O abandono mais espetacular que eu já vi foi num torneio em São Paulo, em que o perdedor varreu o tabuleiro com as duas mãos, que se fecharam com uma porção de peças no meio do tabuleiro. Depois elas foram largadas, deixando a posição completamente destroçada. O perdedor se levantou e saiu, sem assinar a planilha e sem cumprimentar o adversário. Mas isso é muito raro. Eu, particularmente, preferia pular as etapas, erguer a cabeça para o adversário e apertar a sua mão.  Quem tem uma posição ganha, está espreitando esse momento, tentando adivinhar quando e como será o abandono.
Outra regra de etiqueta, que o capivara ignora solenemente, é que não se deve prosseguir uma partida totalmente perdida, até ficar sem todas as peças ou levar mate. Entre mestres, a vantagem de uma peça, sem compensação, já é suficiente. É, é obvio, um mate forçado. Não se deve insultar o adversário presumindo que, depois de jogar melhor o tempo todo, ele não verá um lance idiota. Uma das lições mais amargas do xadrez é essa: saber quando é a hora de desistir, de reconhecer que a partida acabou.





Infelizmente um acidente me impediu de continuar frequentando o Clube. Escolhi a sua sacada para uma panfletagem. Os panfletos subiram na pasta da escola e no horário marcado, seis horas da tarde, quando eles deveriam chover sobre todo o centro, não foi difícil chegar até a sacada sem ser notado.  Eu levava dois maços de quinhentos panfletos mal cortados, impressos em mimeografo Gestetner, com a tinta ainda úmida. Com medo de ser visto pelos freqüentadores do clube, fui atirando os bolos rapidamente, torcendo para eles se abrirem e se espalharem. O último não abriu e os panfletos desceram unidos. A parábola terminou em cima do teto de um carro estacionado, a força do atrito quase não diminuiu a aceleração e o barulho chegou até lá em cima. Felizmente não houve vítimas fatais. A polícia subiu pouco depois que eu desci pelo elevador e até hoje eu sou lembrado como o cara que quase fechou o Clube de Xadrez de Belo Horizonte.
A essa altura, eu sabia que a Revolução era o grande jogo - o pôquer da política. Eleição, reforma, isso é buraco, jogo de mulher prenha.  No xadrez, cada jogada é condicionada pela anterior e as forças vão se exaurindo, à medida que as peças são tomadas. Uma grande inferioridade estratégica é irreversível, pelo menos numa partida bem jogada. No pôquer, cada mão é uma nova história. E você pode comprar mais e mais cacifes. Basta ter culhões.
O que os bolcheviques fizeram na Rússia foi persistir no jogo, minimizar as perdas, manter a perspectiva e não afinar nunca. Quando chegou a grande mão, quebraram a banca e acabaram com o jogo. Isso também é conhecido como tomar o bonde da história. O bonde demora e não passa duas vezes. Ou, pelo menos, eu pensava assim.