Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sábado, 6 de março de 2010

Mais uma crônica escrota

Um dos problemas de se escrever crônica no Brasil é que qualquer referência a fatos de nossa política a torna datada. A de hoje não escapou desta sina. Foi escrita quando cresciam as denúncias contra o Senador Sarney e já se especulava sobre a sua renúncia. Para nós brasileiros, isso parece ter acontecido há décadas.
Como esse blog se propõe a revolver o nosso passado remoto (mais de quarenta anos atrás), resolvi publicá-la. Fui buscar apoio no alhures. Na antiguidade clássica, antes um pouco de Rubem Braga revolucionar o gênero, a missão da crônica era justamente essa: registrar os tempos e os costumes. Por hipótese, toda crônica já nascia datada. O gancho dessa são algumas considerações que faço sobre o ano de 1968, que já terminou há muito tempo e sobre a CNDH. Aí vai:

Desculpa aí qualquer coisa...

Ontem, depois de quase quarenta anos, o Estado Brasileiro me pediu desculpas. Aconteceu no auditório da Face, no campus da UFMG, onde recebi a portaria de aplicação da Lei de Anistia, assinada pelo Ministro Tarso Genro. A solenidade fazia parte da comemoração dos 30 anos da Anistia.
Pela idade provecta de alguns, parecia mais um encontro de ex-combatentes. Aliás, era um encontro de ex-combatentes. As apresentações eram assim - fulano, esse é beltrano, que esteve preso comigo em Linhares, e por aí vai.
O pedido foi formal - o Presidente da Comissão da Anistia me entregou a Portaria, apertou as minhas mãos e disse: "o Estado Brasileiro pede desculpas por ...", não me lembro do resto.  Depois tiramos uma foto, mostrando o papel. Ele parecia impressionado, achei suas mãos frias e um pouco trêmulas. Podia ser o ar condicionado.
Em seguida me deram a palavra. Relembrei a minha estadia de 40 dias no DOPS de Belo Horizonte, onde fui passando de cela em cela, em contagem regressiva: 7, 5, 3 e 1. Numa delas estava escrita na parede uma frase do Millor: “E ficam para sempre glorificados os heróis do passado e encanados os do presente”.
Eu mesmo dei a minha contribuição e coloquei na parede da cela: “ A verdadeira liberdade é o conhecimento da necessidade.” A frase é de Engels. Cartola disse a mesma coisa, com muito mais poesia, no samba Acontece: “... e você vai sofrer, vai chorar, mas isso não acontece...”.  E foi isso que não aconteceu: lutamos, alguns deram a vida e não derrubamos a ditadura. O que será, será.
No Brasil, aplicamos a Lei de Lavoisier em sua versão tupiniquim – aqui nada se cria, nada se transforma; tudo se ajeita e tudo se acochambra. Não é que tivemos uma Lei de Anistia vigorando junto com uma Lei de Segurança Nacional? Graças a ela, a de Segurança, um metalúrgico barbudo do ABC foi preso e processado.
Em 98, depois de um longo intervalo, tivemos uma eleição direta para presidente.  Elegemos um cabra de testículos roxos, o atual Senador Collor. Parte do seu sucesso se deveu às denuncias de corrupção contra o atual Senador Sarney, de farta bigodeira, que, durante alguns tempos, escutou cobras e lagartos do nosso sapo barbudo, como diria o Brizola.
A frase do Millor continua muito pertinente. Conhecemos (muito superficialmente) o nosso passado, mas não aprendemos nada com ele. E ele, impertinente, volta sempre a nos atormentar. Acabei dando uma entrevista para os canais de televisão da UFMG e da Assembléia de Minas Gerais. Devo ter engrossado um pouquinho o traço de audiência, com os meus 15 segundos de glória.
A pergunta mais difícil foi a inevitável: o que esse pedido de desculpas representa para você? A resposta mais apropriada seria: nada. Pensei na meia dúzia que iria me assistir, tomei fôlego e despeijei:
- Todo evento como esse nos leva a fazer um balanço. Embora tenha a convicção de que fomos derrotados, porque não alcançamos os nossos objetivos maiores, tenho a consciência tranqüila, escolhi o lado certo. Naquela época, era muito fácil escolher o lado certo. Dureza é hoje, quando os meus ex-camaradas formam ao lado da tropa de choque de Collor e Renam Calheiros, para defender Sarney, em nome da governabilidade.
Em off, a repórter concordou comigo - é dureza mesmo. Do lado de fora do auditório, um estudante solitário havia montado uma barraquinha do PCR (Partido Comunista Revolucionário). Em 66, quando eles surgiram, comunista e revolucionário era extremamente redundante. Hoje até que faz sentido 
Comprei um livreto e fiquei de papo com mais um ex-combatente: Carlos Eugênio, ex-ALN e autor de dois livros (Viagem à luta armada e um outro, não me recordo qual). Falando dos velhos e bons tempos, dos idos de 68, ele me corrigiu - não havia só duas opções, parte da juventude havia aderido ao movimento hippie.
Contou um caso. Ele e mais um companheiro de ALN estavam indo para a Bahia num fusquinha cheio de armas, granadas e metralhadoras. Pararam para almoçar em Feira de Santana e dois hippies pediram carona. Carlos convenceu o seu companheiro e os dois embarcaram. Foi o papo mais surrealista que ele já teve. Os dois hippies se recusavam a ver um palmo a frente do nariz, não queriam saber de política, só miravam o próprio umbigo.
Quarenta anos depois, a versão que cada vez mais predomina é que em 68 houve a Revolução do Eu, com slogans do tipo “é proibido proibir”, “façam o amor e não façam a guerra” e assim por diante. Woodstock tem mais espaço no imaginário das pessoas do que a passeata dos 100 mil. Fazer o quê? Esse foi um momento complexo e multifacetado e cada um tem o seu 68 na cabeça. A história costuma ser escrita em cima de seus aspectos mais folclóricos, mais pitorescos. Acontece.
Aceita as desculpas, guardada a portaria, fui conversar abobrinha com um militante do PC do B, meu amigo de longa data, num boteco da Rua da Bahia. A cachaça estava horrível, mas a Boehemia estava bem geladinha e a carne de sol com mandioca desceu bem. Hoje voltei à minha vidinha pacata de funcionário publico. Não preciso mais levantar cedo para salvar a pátria. Espero que o barbudo, o bigodudo e o de saco roxo estejam tomando conta dela direitinho. Desculpa aí qualquer coisa, Estado Brasileiro.




4 comentários:

  1. 1968: cada um tem o seu. O meu é coerente com as observações gerais. Começa, antes, com o engajamento no padrão de idéias correntes, libertárias, reinvindicativas, e até certo ponto, revolucionárias.
    Trabalho diurno, escola à noite, presidente do grêmio escolar em 66, discursos entusiasmados, os "irmãos" mais velhos orientando, jovens professores, clima estimulante, de franca renovação.
    67/68, o pau quebrando nas ruas, festa e algum medo dos imbecilizados brucutus, poesia e palavras de ordem, Valéria, Walkíria (e seu "investimento secreto em formas improváveis"), minha canção de esperança, a favela marchando sobre a cidade, nada poderia impedir.
    Em 67, virei soldadinho, serviço numa unidadezinha burocrática e houve um presságio que, obviamente só percebi anos depois: um capitão muito mal humorado, sem lugar e sem função, parecia esconder-se de alguém ou de alguma coisa. O que fazia ali aquele homem desocupado e incerto, sob o comando do Cel. Roberto Gonçalves, que pouco antes desmantelara o "Binômio"?
    Enquanto isso, lá fora o cheiro de gás lacrimogêneo.
    O tempo voa, 69, 70, os liames foram se desfazendo: no colégio Angelo Roncalli não se falava de política; no colégio Santo Antônio também não. Alguma coisa de muito ruim acontecia. O que houve com os jovens professores tão cheios de consciência política?
    Ainda assim íamos ao encontro das caravanas, correr pela Afonso Penna com lágrimas nos olhos, evitando os becos sem saída.
    Walkíria sumiu, a polícia política rondava as famílias, a polícia civil batia e revistava na periferia. As notícias desapareceram, ou tornaram-se ambíguas, de vez em quando uma manchete mostrando mais uma "vitória", a tudo reduzindo a mero terrorismo, capas e conteúdos produzindo o mais forte desalento. Em contraponto, no frontispício do jornal, também se lia "Os Luzíadas", de Camões. Mas era muito pouco.
    71, 72, 73, o Araguaia em pé de guerra e a gente não sabia. Como não sabia de tudo o mais, sobretudo, desde 69.
    Eu intuia, sentia a trepidação por trás da aparente normalidade que foi tomando conta. Então veio o amor livre, as drogas, a liberdade de conflagrar os costumes, o desafio à caretice reinante, havia alguma coisa boa aqui. Mas não se podia ir além disso. O país cindiu-se numa estranha esquizofrenia: uma parte mal sabia ou não sabia da outra. Ambas, sem contato completo com a realidade. A ditadura querendo permanecer, via em cada brasileiro um inimigo. A sociedade negando-se a enxergar a mutilação de que fora vítima. Aliás, essa cisão vem de longe. Somos fragmentados desde priscas eras, sem contato com as realidades de muitos episódios como a revolta do Contestado, a Cabanagem, Canudos, e assim continuamos com a guerrilha do Araguaia no contexto dos anos de chumbo.
    Não se trata de 1968. Trata-se dos anos de chumbo, núcleo de um processo em que grupos militares e civis assumem o aparelho de estado e em nome e através deste perpetram uma violência destrutiva e completamente fora da lei, que transcende os alvos oposicionistas e ferem de morte a sociedade civil organizada na forma do estado de direito. O papel das forças armadas em todos esses episódios se caracterizaram por um banditismo radicalizado, fora da lei, que não deve nada aos ibéricos mais sanguinários no processo de colonização centro e sulamericano. Só não foi pior nesse último episódio — em números, não em violência — porque somos ainda um país de deseducados em nossa maioria, carentes de cidadania política. Enquanto permanecermos assim, sem a autocrítica profunda dos vitoriosos, e sem o reconhecimento do valor e das razões dos derrotados, 1968, como símbolo precário destas cisões em que nos fragmentamos, jamais terminará.
    Luiz P. Santana
    lupasan@uol.com.br

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  2. Gostei muito da afirmação de que cada um tem o seu 68 na cabeça. O movimento hippie de um lado, a luta contra a ditadura de outro. E olha que ambos eram marginais.

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  3. O reducionismo nunca será capaz de expressar a realidade. Há uns 500 anos somos um pais de divisões e de contrastes. Hoje, nas grandes cidades, estamos chegando ao máximo de exarcebação desse processo. Tropa de elite mostrou um país ignorado. Nos cinemas, a classe média neurótica aplaudiu o Bope enfiando a porrada. O quê fazer?
    Marco Lisboa

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  4. Marco, poetamigo, misto de mago, físico, jogador de xadrez, contista apurado e talvez mais umas quantas vocações/ocupações que não sei:esses relatos de rememória, são muito importantes, pois a História deve sempre ser escrita por quem a vivenciou .Os motivos de cada um , as suas motivações pessoais, partidárias, individuais ou coletivas,perpassam por uma espécie de urupema, onde os crivos são pequenos , mas cada um , pode dar os seus depoimentos em contribuição à relembrança de uma época que tantos tentaram sufocar e outros esquecer.Nessa bateia, certamente alguns diamantes brilharão.E você é um deles.
    Boa sorte com esse livro.Abraços:
    Clevane

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