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quarta-feira, 3 de março de 2010

Capítulo 4

Capítulo 4 - As mulheres na guerrilha

A primeira militante a chegar ao Araguaia foi Criméia (Alice), em janeiro de 69. Em seu depoimento, ela fala sobre as dificuldades que enfrentou:
“... Quando veio o AI-5, a minha vida legal tornou-se impraticável e eu totalmente disponível para a luta. Falei para o Partido: “Olha”! Este tempo todo eu estou esperando para ir para o campo. [...] Não dá para esperar mais. Após esse ultimato, me liberaram para o campo. Aí, eu descubro o seguinte: a protelação encontrava respaldo no fato de eu ser mulher. Como mandar mulher para o campo? Como os companheiros iriam reagir? Aceitariam? Havia muitos militantes que eram contra. Na realidade, havia os abertamente contra e os omissos, porque a favor não havia ninguém. [...] Quem me levou foi o João Amazonas. No caminho, ele me disse — e eu fique puta da vida — que ia depender do meu desempenho a ida ou não de mulheres para o campo. Porque eu estava sendo a primeira e se não desse certo... Respondi-lhe no ato: “Você também disse isso para os militantes do sexo masculino, que já estão lá? Porque dar ou não certo, depende, única e exclusivamente, de cada indivíduo, independente de seu sexo. Agora, é necessário fazer a revolução, é necessário ir para o campo, está certo? A guerra é popular, todo mundo vai participar desta guerra ou só os homens? Por que você está colocando isso para mim? Não dá. É querer muito de mim!” Mas, no fundo, era essa a responsabilidade. Se você não desse certo, então, mulher não servia para essa atividade! (In: Lima, 1998:518).
Mais tarde, ela e André Grabois (Zé Carlos), filho de Maurício Grabois, formariam um casal. Assim que o namoro se firmou, Criméia reuniu os camaradas para contar a novidade.
Em 69, com 56 anos, Elza Monnerat era uma dirigente experimentada, que dedicara os últimos 24 anos à atividade partidária. Desde os tempos em que usara as suas habilidades de alpinista para pichar o Morro Dois Irmãos, ela sempre estivera presente nas tarefas mais difíceis.  Não seria surpresa encontrá-la no Araguaia, onde era conhecida como Dª. Maria.
““ Eu e o Zé Carlos estamos vivendo juntos”, sapecou a militante.
O silêncio inicial foi quebrado por uma inconfundível e envelhecida voz feminina.
“Perdemos uma companheira”, reagiu Dona Maria. ”[1]
Aqui se faz necessário uma digressão. O ano de 68 costuma ser associado à popularização da pílula anticoncepcional, à revolução sexual, ao amor livre; a “É proibido proibir!”, “Façam o amor e não a guerra!” e outros slogans semelhantes. Sexo, drogas e rock-and-roll; Woodstoock e o movimento hippie. No número 95, abril/maio, da Revista Princípios, publicada pelo PC do B, há um artigo de José Carlos Ruy, “1968 a Revolução do Eu”. Pode-se ler em sua chamada: “Maio de 1968 continua a suscitar debates e polêmicas sobre suas motivações, significados e alcances. Neste artigo afirma-se que seus slogans rejeitaram a política e colocaram o sonho, o desejo e a autonomia na ordem-do-dia. Todavia, este movimento esteve longe de ameaçar o capitalismo...” Grifos nossos.
Cada um tem na cabeça o seu 68 e, mesmo discordando do artigo, não iremos propor aqui uma outra visão. Gostaríamos apenas de registrar o nosso depoimento: essa não era a postura dos militantes do PC do B. Pelo contrário, o seu comportamento poderia se considerar rígido, em relação à permissividade dos anos 60.
A formação ideológica dos dirigentes mais antigos, que se procurava transmitir aos militantes mais novos, enfatizava uma moral proletária calcada na tradição soviética. Os personagens da coleção Romances do Povo[2], organizada por Jorge Amado, e parte da obra desse autor, forneciam os modelos do revolucionário ideal: pudico, sem vícios e totalmente dedicado à causa. Na já citada trilogia “Os subterrâneos da liberdade”, Jorge Amado contrapõe o amor proletário ao amor pequeno-burguês e à depravação da burguesia. O primeiro - sempre pronto a se sacrificar pelos interesses da revolução e o segundo - egoísta e fechado em si mesmo.   Quanto à burguesia, ela seria incapaz de uma ligação afetiva legítima. Portanto, não havia nada mais longe da “revolução do eu” do que o comportamento dos militantes do PC do B. A reação de Elza Monnerat é típica dessa concepção.
Seria totalmente anacrônico suscitar aqui uma discussão de gênero, a luz dos avanços das últimas décadas. A concepção que prevalecia na época, na esquerda mais ortodoxa, via a emancipação feminina totalmente subordinada à luta de classes, não possuindo dinâmica e autonomia próprias. Um outro viés dessa luta, que ocupava os maiores espaços na mídia, era a concepção das feministas americanas. Esta última tinha muito pouco a dizer aos revolucionários dos países da periferia do capitalismo.
Quando Criméia chegou ao Araguaia, Elza já estava instalada na área há mais de um ano. A dirigente era vista como um militante sem sexo, em pé de igualdade com todos os outros, sem dúvida, mas não como uma mulher militante. Esse era o padrão de comportamento que se esperava de Criméia e essa é a justificativa para a reação de Elza. Achamos que isso não ofusca o papel de destaque que Elza Monnerat ocupa na luta do povo brasileiro e até mesmo na luta pela emancipação feminina, que depende da superação do capitalismo para um avanço decisivo.
                                 
                             Elza Monnerat, numa foto mais recente

A outra objeção que se levantou sobre a ida de mulheres para o Araguaia era de ordem mais prática. Quando se anunciou que a primeira guerrilheira, Suely, se integraria ao destacamento B, Osvaldão levantou dúvidas sobre a sua adaptação à vida dura dos camponeses. Essa desconfiança foi superada com mais facilidade.
 Posteriormente à chegada das primeiras mulheres, nota-se uma tendência a se trazerem casais. É um avanço em relação ao celibato compulsório. De qualquer maneira, já que não se ignorava a dimensão sexual dos militantes, era preciso tomar as medidas contraceptivas devidas. Ainda que o custo da pílula fosse alto, ou que ela ainda não fosse comercializada naquela região, existiam o DIU e o diafragma. Sob condições de forte tensão ou mesmo de desnutrição, a menstruação se torna irregular, o que afasta o uso de métodos baseados nos dias férteis.
Essa imprevidência causou problemas graves de segurança. No caso de Lúcia Regina (Regina), mulher de Lúcio Petit (Beto), foi feita uma curetagem com êxito, apesar das condições precárias.  Teresa, mulher de Pedro, também engravidou, o que precipitou a fuga dos dois.  Criméia, grávida depois do início da guerrilha, foi retirada da área e acabou sendo presa mais tarde em São Paulo. Há notícias de mais uma guerrilheira grávida, embora as fontes não sejam confiáveis.
A orientação do partido em caso de gravidez era fazer o aborto. As razões são óbvias, já que se estava num cenário de guerra. Nesse ponto, achamos injusto colocar toda a responsabilidade nos ombros da direção – ela deve ser distribuída entre os militantes e os dirigentes.
Além do modelo soviético, o outro padrão de comportamento disponível era o da revolução chinesa. O autor recorda de um comentário feito por Ozeas, no calor da revolução cultural: “na China a moda burguesa foi abolida. As mulheres possuem apenas dois costumes militares, calça e colete, um azul e um preto. No entanto, a vaidade ainda persiste - elas ora usam uma cor; ora a outra; ora uma combinação das duas.”
Felizmente, esse modelo não chegou a ser copiado entre nós. O autor conheceu pessoalmente duas guerrilheiras, Walquíria (Walk) e Helenira. Embora totalmente devotadas às tarefas partidárias, elas nunca se enquadraram nesse estereótipo. Posso falar mais de perto de Walquíria, com quem convivi no Comitê Estudantil do PC do B em Minas Gerais. Ela dedicava às tarefas partidárias e ao convívio com os amigos a mesma generosidade. Bonita, alegre, dinâmica e de forte personalidade, ela se impunha como uma liderança natural, sem se masculinizar. Adorava a música e mantinha um largo círculo de amizades. Aonde quer que fosse, era bem recebida pelas pessoas mais simples, e conseguia se integrar em qualquer grupo. Ótima aluna, Walquíria estava muito distante do chamado estudante profissional, que só ia à escola fazer política. Lendo diversos depoimentos sobre a guerrilha, não me surpreendeu saber que essa alegria de viver contagiou militantes e moradores.
Segundo Criméia, em 69, na sua ida para a guerrilha, foi orientada a comprar alguns metros de pano para fazer absorventes, pois não existiam essas comodidades na região. Mais tarde, em 72, os militares encontraram, num ponto de apoio do destacamento C, algumas caixas de absorvente. Aparentemente, os sectarismos foram sendo superados com o tempo.
Entre os 69 guerrilheiros que o Relatório Arroyo lista, 22 no destacamento A, 21 nos destacamento B e 20 no C, além dos 6 membros da Comissão Militar, havia 15 mulheres. Considerando que Lúcia Regina e Tereza abandonaram a área antes do início da guerrilha, que Elza Monnerat fazia parte da CM e estava retornando; que Rioko foi presa ao tentar se incorporar à guerrilha, teremos um total de 18 mulheres, quase um quarto dos envolvidos.
A participação feminina, na avaliação dos próprios dirigentes, foi muito positiva. O relatório Arroyo coloca: “Os de maior prestígio [entre a massa] eram Osvaldo e Dina. Logo depois vinham Sônia, Piauí, Nelito, Zé Carlos (do A); Amauri, Mariadina (no B); Mundico (no C); Joca (CM) e Paulo.” Grifos nossos.
Helenira, morta logo no início da luta, deu o seu nome ao Destacamento A. Dina, do Destacamento C, se tornou uma lenda na região, inspirando terror nas tropas da ditadura. Ela chegou a ser vice-comandante de seu destacamento. Walk, do Destacamento B, foi a última guerrilheira - capturada depois de vagar meses sozinha pela mata.
Genoino fez parte da diretoria da UNE eleita no XXX Congresso, presidida por Jean Marc. Chegamos a nos encontrar em Belo Horizonte, quando o autor se preparava para participar da próxima diretoria. O codinome que Genoino usava era o mesmo que levaria para o Araguaia - Geraldo. Cearense de Quixeramobim, o mais velho dos 13 filhos de um camponês, ainda guardava nos gestos aquela dureza de quem pegou na enxada por muito tempo. É dele esse depoimento sobre a participação feminina:
“Foi também nesse ano [71] que chegaram as primeiras mulheres. A Sueli, nissei, filha única, professora, deixou tudo. Nunca tinha saído de casa, sem experiência no campo, 22 anos, estudante de letras. Ao chegar lá, ficamos preocupados com a sua fase de adaptação, mas foi uma surpresa para todo mundo: ela se integrou com as mulheres da região e facilitou em muito o nosso trabalho. Com elas chegaram outras companheiras: a Tuca, de São Paulo, enfermeira profissional, e do Rio veio a Lia. Chegou a Mariadina e a Valquíria [Walk]. Mariadina era estudante de Geografia na Bahia.
As mulheres participaram de todos os trabalhos. Enfrentam maiores dificuldades na adaptação, devido toda a herança de formação anterior.  Foi importante sentir o engajamento da mulher no mesmo nível do homem, e observar que a diferença seria eliminada a partir do próprio homem ao confiar na capacidade da mulher, e da própria  mulher, demonstrando a sua força política, física e militar.[3] Grifos nossos.
Fizemos questão de destacar a atitude condescendente que transparece nos comentários: havia uma diferença objetiva que deveria ser superada; aos homens cabia confiar na capacidade das mulheres e a elas cabia demonstrar que estavam à altura dessa confiança. Por mais óbvio que seja, nunca é demais ressaltar que houve grandes dificuldades de adaptação entre a maioria dos homens, que, acostumados à vida nas grandes cidades, não sabiam pegar num facão e nem se orientar na mata. Resultado da sua formação anterior, sem dúvida. Mas a formação à qual o comentário de Genoino se refere só pode ser aquela que preparava a mulher para ser o sexo frágil e que a tornaria diferente do homem. É a essa que ele chama de diferença objetiva.
            Retomando o aparte inicial de Criméia, as mulheres não precisavam provar nada no Araguaia. Ao final, fizeram o que era esperado: foram combatentes tão valorosos e dedicados quanto os homens.
Luzia Reis Ribeiro, a Baianinha do Relatório Arroyo, numa entrevista ao Diário Vermelho, do PC do B, acrescenta algumas luzes sobre o que era a visão do partido sobre os relacionamentos amorosos entre os guerrilheiros:
“A direção do comando não proibia namoros, mas tinha normas. O Comandante disse pessoalmente pra mim, o Maurício (Grabois), que era muito brincalhão, dizia, “querendo bem Lúcia (o nome usado por ela era Lúcia), pode namorar”. Tinha casais, mas já chegaram casados. Mas a Dinalva [Dina], que foi casada com o Antônio, chegou lá, se separou e se apaixonou por Gilberto. E ficou com Gilberto até eles morrerem. Mas muitos ficaram anos lá, eu não tive tempo, fiquei cinco meses. Mas foi uma universidade aquilo pra mim. Havia muito respeito, eu era virgem, eu era irmã dos companheiros para a população. Uma paquera de leve começou com Bérgson. Logo quando cheguei, tinha 15 dias, ele era que mais saía comigo, ensinava a fazer depósito no meio da mata. Nesses trabalhos, ele me deu um beijo. Nada mais sério, só isso.”
            A cultura do PC do B era algo fluida. Havia alguns membros da direção mais brincalhões e abertos, como era o caso de Grabois e outros mais sisudos e fechados, como era o caso de Elza. Mais tarde, cheguei a conhecer Elza, no Rio de Janeiro. Ela era muito querida pelos camaradas e, constantemente, era consultada sobre os problemas de relacionamento. Eu dizia, brincando, que ela era adepta do casamento endogâmico[4], pois sempre privilegiava o namoro entre militantes.
            Mesmo com algumas nuances, havia uma visão consensual: o revolucionário deve dedicar todas as suas forças à revolução e o amor deve implicar em total afinidade ideológica. A separação era considerada natural, se não houvesse essa afinidade, e os casais sempre procuravam colocar as causas do desacordo nesse terreno escorregadio.
Essa visão é persistente. Um antigo militante, por mim entrevistado, explica a separação de Dina pelo comportamento ideologicamente recuado de Antônio. Por alguns depoimentos que nos chegaram, ele era uma pessoa reservada, que tinha dúvidas sobre o êxito da guerrilha. Até hoje, é difícil considerar que relações podem nascer e se desgastar, sem precisarem de uma justificativa ideológica.
            Há fontes que afirmam que alguns guerrilheiros tinham os seus rabichos, nos forrós. Outros seriam pais de filhos gerados com moradoras da região. No livro de Pedro Correa, Xambioá, uma guerrilheira se apaixona e engravida de um agente do CIE[5] infiltrado. O livro é um romance “a la clef”, que mistura ficção e realidade. Os relatos de guerrilheiras grávidas podem ser atribuídos à ausência de menstruação, devido às péssimas condições enfrentadas.
            Genoino afirma que:
“No Araguaia tinha um prostíbulo apelidado Vietnã, mas eu não podia freqüentar, porque corria muito risco de pegar doenças venéreas e também de cruzar com a polícia. Era muito perigoso. Lá no Araguaia nós tínhamos muita disciplina, embora fôssemos muito jovens. Tínhamos em média 23, 24 anos. Aquelas camponesas davam em cima de nós e éramos obrigados a fugir. Porque não dava para criar um laço afetivo com as camponesas, isso poderia depois prejudicar a guerrilha.
Uma vez eu estava atravessando um rio e ouvi uma voz feminina me chamar. Era uma camponesa que morava ali perto, uma menina bonita – daquelas que são uma mistura de negro com índio – e ela estava completamente nua, tomando banho no rio. E eu corri! Fui embora, porque não agüentava ficar vendo aquele monumento à tentação.
Na guerrilha existiam as companheiras casadas e as companheiras solteiras, mas a gente não tinha relação com as companheiras solteiras. Primeiro porque a gente não tinha anticoncepcional, e a gravidez seria uma coisa muito complicada lá na selva. Imagine fazer um aborto naquelas condições. Então era uma mistura de dogmatismo com realidade objetiva. ”[6]
 No Araguaia, homens e mulheres, jovens em sua maioria, foram colocados num ambiente hostil, bem no meio de uma guerra. Cada um lidou à sua maneira com essa situação: houve desde o celibato, aceito voluntariamente, passando pelos casamentos endogâmicos, até relações ocasionais e paqueras. Possivelmente, nem todos foram tão disciplinados e estóicos como Genoino.


[1] Operação araguaia. P. 75.
[2] Inspirada no “realismo socialista”, esta coleção reunia obras de escritores comunistas de todo o mundo. Zhdánov, o ideólogo dessa corrente literária, chamava os escritores de “engenheiros de almas”.  Seus heróis eram mostrados apenas nos seus traços positivos, sem meio tons, e o caráter propagandístico predominava sobre as considerações estéticas.
[3] A Guerilha do Araguaia. Editora Alfa Ômega, p. 39.
[4] Casamento entre membros do mesmo clã. No caso, entre militantes do mesmo partido.
[5] Centro de Informação do Exército. A coleta de informações incluía a prática sistemática da tortura.
[6] Entre o sonho e o poder, p. 61.

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