Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

segunda parte - O Vietnã é aqui!

Primeira Campanha


Capítulo 1 – Os arapongas[1]

            O ataque aos guerrilheiros foi precedido por uma grande atividade dos serviços de informação do exército. O próprio relatório Arroyo afirma que “nos primeiros dias de abril, já alguns policiais andaram pelas áreas dos destacamentos A e C à procura de informações sobre os “paulistas””[2]. Segundo Criméia, os guerrilheiros já sabiam que, em 31 de março, o exército chegara à Faveira.
            As informações iniciais sobre o destacamento C vieram de Pedro Albuquerque. Em sua 4ª edição, “A guerrilha do Araguaia”, publicada pela editora do PC do B reproduz as duras palavras do relatório Arroyo: “... O Exército soube de nossa presença no sul do Pará através da denúncia do traidor Pedro Albuquerque que, meses antes, havia fugido com sua mulher do destacamento C. [NE: mais tarde, soube-se que não foi Pedro Albuquerque o denunciante dos guerrilheiros que se encontravam no Araguaia].” A nota da edição, desmente laconicamente o texto, sem dizer quem foi o denunciante.
            Embora essa polêmica não tenha maior relevância numa perspectiva histórica, é importante restabelecer os fatos. Pedro havia deixado a área em junho de 71. Ao chegar a Fortaleza, havia procurado o Partido e se mantinha escondido em apartamentos de amigos e conhecidos, ligados de alguma forma ao PC do B. De sua parte, havia o compromisso de manter o trabalho em sigilo. Além disso, era fácil para a direção do PC do B monitorar os seus passos. Essas informações, com certeza, haviam sido repassadas à Comissão Militar, já que envolviam um sério risco de segurança.
            Criméia afirma que a fuga de Pedro foi decisiva na resolução de desativar a base de Faveira. Os futuros guerrilheiros do Destacamento A se estabeleceram longe das margens do Araguaia, em três PA.
Em dezembro de 71, a CM decidiu deslocar os pontos de apoio do Destacamento C mais para o interior, para o norte, na direção do Igarapé Abóbora. A demora de mais de seis meses é explicável, se pensarmos que o PC do B tinha certo controle sobre a situação.
            Em dezembro, Paulo, o comandante do Destacamento C, chamou um vaqueiro para tomar conta de sua fazenda. O escolhido foi Raimundo José Veloso, o Raimundinho, tio de Neuza, que havia se casado com Amaro. Paulo disse que faria uma longa viagem e, em janeiro de 72, entrou na mata, juntamente com os paulistas. Raimundinho não teve mais notícias suas. A pressa com que a mudança foi feita talvez se deva à informação de que Pedro pretendia abandonar a clandestinidade.
             Em fevereiro de 72, Pedro foi preso ao tentar tirar a segunda via da carteira de identidade. Segundo ele: “Eu achava que eles já não estavam mais me vigiando (na volta a Fortaleza), trabalhava clandestino como corretor e fui a uma delegacia tirar minha identidade para um emprego no Laboratório Roche, em Teresina. Na polícia, fui preso.” [3]
Pedro Albuquerque estava no PC do B desde 62, vinha de uma família de comunistas e tivera papel de destaque no movimento estudantil cearense. Elio relata que ele se tornara particularmente visado pela repressão ao deter, na sala de aula, um policial infiltrado, tomando sua arma. Ele foi reconhecido e enviado para a Polícia Federal.
A notícia da prisão de Pedro chegou ao Araguaia em março de 72, de acordo com o relatório Arroyo. Segundo depoimento de Francis, um militante cearense, uma enfermeira ligada ao partido viu Pedro sendo atendido em um hospital. Ele tentara se suicidar fazendo cortes profundos na altura do antebraço.
Os autores de “Operação Araguaia” tiveram acesso a fontes do exército. Pretendemos contrapor essas informações aos depoimentos dos sobreviventes e ao próprio Relatório Arroyo, de maneira crítica. Segundo o livro, o CIE (Centro de Informações do Exército) tomou conhecimento da existência de um campo de preparação de guerrilha rural em fins de março. A Operação Peixe I, determinada pela Segunda Seção[4] da 8ª RM, teria duas fases. “Na primeira, os investigadores sairiam para confirmar a presença de guerrilheiros no Sul do Pará. Na segunda, seria feito “o isolamento, cerco e redução do inimigo””[5].
A área da guerrilha tem uma peculiaridade: são inúmeras as localidades que possuem o mesmo nome - Pau Preto, Gameleira, e Cigana, entre outras. São nomes de pássaros ou de árvores da região. Próximo a Marabá, às margens do Rio Tauarizinho, havia um lugarejo com o nome de Cigana. Teria sido para lá que os agentes se dirigiram inicialmente. Ao procurarem informações em São João do Araguaia, acabam descobrindo o PA da Faveira, já desativado. Antes de retornarem a Belém, “Souberam de outro lugarejo Cigana, às margens do Sororó. Acreditavam que essa pista fosse boa, pois ficava perto de Xambioá, cidade de Goiás com nome semelhante a Xangri-Lá, referência dada por Pedro Albuquerque.”[6] A equipe voltou para Belém no dia 31 de março.
Embora os guerrilheiros soubessem da existência de outros destacamentos, Pedro, provavelmente, não sabia da existência do PA em Faveira. Ou acreditamos na versão de que os militares chegaram lá por acaso, ou somos obrigados a concluir que houve outra fonte de informação, alguém que conhecia esse local.
É justo dizer que Pedro resistiu ao máximo e que as informações que forneceu eram imprecisas.
“Na Polícia Federal, foi torturado e humilhado. Resistiu, mentiu e trocou nomes de pessoas e regiões. Disse que tinha contato no PC do B com André, que nunca existiu. Falou do suposto dirigente Mário Alves, militante histórico, morto pela repressão um ano antes. O verdadeiro Mário Alves nunca pertenceu ao PC do B...”[7]
Depois de acareado com José Sales de Oliveira, militante do PC do B que também estava preso, a tortura se intensificou e Pedro deu mais informações. Vejamos alguns trechos de seu depoimento:
“... o militante foi mandado pelo partido para São Paulo, junto com a esposa. Viajaram e se encontraram com um militante de codinome Lauro, branco, mais ou menos 45 anos, que o encaminhou para “Mário Alves”. Em São Paulo, o casal recebeu a tarefa de viajar para Belém, onde teriam outro contato.
... o casal foi recebido em Belém por Paulo, cor clara, cabelos pretos, 33 anos, aproximadamente 1,70 m. Paulo conduziu os dois até Cigana, lugarejo no  município de Conceição, sul do Pará. No local havia outros 15 militantes, divididos em cinco células (célula é o nome dado pelos partidos às unidades mínimas na base da organização).” Grifos nossos.
Mário Alves seria Mário, codinome de Maurício Grabois, Lauro era Lincoln Oest (o autor se lembra que ele usava esse codinome) e Paulo era Paulo Mendes Rodrigues. O destacamento C, no período em que Pedro lá esteve, tinha aproximadamente 15 militantes. Em outro depoimento, ele cita que o destacamento era comandado por Paulo e Vitor.
“Operação Araguaia” afirma que ao deparar com a base de Faveira, no final de março de 72, o Exército não tinha noção do que havia encontrado. “O General Darcy Jardim e o tenente-coronel Raul Augusto Borges montaram a Operação Peixe II ainda sem ter certeza sobre as atividades dos paulistas na área. No documento Confirmação de Ordens Verbais, os dois militares expõem as hipóteses de que sejam subversivos, contrabandistas ou hippies.[8]  
Essa “informação” é contraditória. Os arapongas tinham verba e tempo limitados e uma indicação de um local bem distante da Faveira. Estavam lá à caça de “subversivos”. No entanto, abandonam o objetivo inicial, encontram uma base desativada, e ainda suspeitam de uma colônia hippie? O objetivo do vazamento desse documento pode ser o de proteger a fonte de informação sobre o Destacamento C.
Se estavam lidando com hippies ou não, o certo é que os arapongas fizeram o que sabiam fazer: prenderam vários moradores para obter informações. As prisões realizadas durante essa operação foram de pessoas que conheciam os militantes, mas que não estavam envolvidas diretamente na preparação da guerrilha. Segundo “Operação Araguaia”, a investigação durou até o dia 12 de abril, sendo que entre 7 e 12 de abril, 11 homens ficaram de tocaia na Transamazônica, na altura de São Domingos, esperando a passagem de Joca.
“O documento Operação “Peixe II” (INFO) aponta erros no comportamento dos agentes e conclui que os homens das Forças Armadas circularam muito em uma região de poucos habitantes. Perguntaram demais; a missão perdeu o sigilo e nenhum guerrilheiro foi preso. O documento constata a falta de pessoal de informação qualificado.”
A Operação Peixe III se sobrepõe à Operação Peixe II. Um grupo de 24 soldados do Pelotão Antiguerrilha, o PESAG, se dirige para o Alvo (Chega com Jeito), procurando por aproximadamente 11 homens. “- O pelotão “PESAG”, por meio de ações rápidas, violentas se necessário, e de surpresa, deverá aproximar-se, cercar e neutralizar e/ou destruir o “ALVO”[9].
            Segunda Elza Monnerat, no início de abril, o vice-comandante do Destacamento A, Piauí “... foi comprar farinha em um pequeno povoado, denominado Bom Jesus. Quando se aproximava do lugarejo, ouviu vozes de muitos homens e se afastou do trilho. Viu quando os soldados passaram e percebeu do que se tratava. Conhecedor da região, abandonou o caminho e, rapidamente, tornou ao rancho por atalhos na mata. Avisou aos companheiros e todos puderam retirar-se em ordem, o mesmo ocorrendo nas casas vizinhas.”[10]
Criméia nos forneceu mais detalhes sobre o ataque. Na madrugada anterior, um morador de um castanhal próximo procurou os guerrilheiros, solicitando a presença de Sônia. Segundo ele, haveria um doente necessitando sua ajuda. Os guerrilheiros, desconfiados, negaram, dizendo que não poderiam deixar uma moça andar sozinha, à noite, pela mata. Mais tarde o exército estabeleceu uma base nesse castanhal. O pedido poderia ter sido uma cilada, com o objetivo de efetuar uma prisão.
Os soldados que Piauí avistou seguiram um caminho mais longo e se detiveram na casa de um camponês amigo dos guerrilheiros. Ele desconfiou dos estranhos, que embora descaracterizados, usavam armas e botas novas e um relógio que dava a direção (bússola). Eles se apresentaram como amigos dos “paulistas”. O camponês os convenceu a pernoitarem, alegando que os paulistas moravam longe dali.
De manhã cedo, mandou seu filho procurar os guerrilheiros, com a desculpa de pedir um pouco de café. Mário disse ao menino que as suspeitas de seu pai estavam certas e explicou porque estavam sendo procurados. Os guerrilheiros ficaram na área aguardando a chegada da tropa. Criméia conta que assistiu a ocupação do PA e o sobrevôo de um helicóptero a uma distância de uns 50 metros. Devido à disparidade das forças, a decisão foi de se internarem na mata.
A precisão do ataque faz pensar que o Exército, desta vez, disponha de boas informações. Atualmente, o PC do B afirma que a fonte do exército foi a esposa de Lúcio Petit, Lúcia Regina. Levada até Anápolis para se tratar de brucelose, ela fugiu do hospital e chegou à casa dos pais em 19 de dezembro de 71. Ela nega que tenha denunciado a guerrilha e afirma que foi presa em 74, quando não mais poderia fornecer qualquer informação útil.
Desde 71, os guerrilheiros estavam estabelecidos em Metade, Chega Com Jeito e um outro PA, mais novo, que ficava entre os dois. Ao sair da região, no lombo de um burro, Regina seguiu a picada que vai até São Domingos. Depois, juntamente com Maurício Grabois e Elza Monnerat, pegou um ônibus na Transamazônica. Coincidentemente, os soldados do PESAG seguiram o caminho inverso até o PA.
Há um outro indício que a incrimina: quando retornava ao Araguaia, no momento em que o Exército iniciava o seu ataque, o ônibus em Elza viajava foi parado na Transamazônica, no exato local em que os militantes que retornavam ao Araguaia costumavam descer. Elza não foi molestada, porque, segundo ela, os soldados estariam procurando João Amazonas. Por motivo de saúde, os dois inverteram as datas em que iriam retornar. Essa troca seria do conhecimento de Regina, que havia sido contatada para retornar com o dirigente.
Elza se recorda que quando informou a Beto que Regina havia voltado para São Paulo, ele comentou: “Ela não volta mais, o pai dela é amigo de uns militares e possivelmente não vai permitir que ela volte.”[11] A conclusão dela é taxativa:
“Continuei a viagem até Marabá e no dia seguinte comecei a voltar para encontrar o Amazonas em Anápolis. Se não fosse a Regina ter denunciado a guerrilha, eles não encontrariam de jeito nenhum o nosso povo, nem saberiam em que ponto estava, o adiantamento, etc. A Regina era do Destacamento A e tinha um cunhado, uma cunhada e uma concunhada no Destacamento C [Jaime, Maria e Lena, respectivamente], e ela sabia que do Destacamento C tinha fugido um casal [Pedro e Tereza]. Ela tinha condições de saber que além do destacamento A, que era o dela, havia um Destacamento C. Foi ela quem informou direitinho o ponto em que o Amazonas iria descer na Transamazônica e indicou que havia também gente lá para cima, mas ela não sabia indicar por onde entravam nem coisa nenhuma. Assim, no dia 12 eles entraram no A e no dia 14 eles entraram no C”. [12]Grifos nossos.
            Em seu livro, Araguaia, o Partido e a Guerrilha, Wladimir Pomar, filho de Pedro Pomar, levanta algumas questões interessantes. Segundo ele, parte do Comitê Central e de sua Comissão Executiva ignoravam completamente os detalhes concretos do trabalho militar. Ozeas relata que participou em algumas reuniões com dirigentes que tinham crises de malária. A dedução lógica é que a luta armada se travaria em algum lugar da selva Amazônica (que cobre quase metade do território brasileiro).
“Entretanto, apesar de todo o método conspirativo adotado, o dispositivo foi descoberto por denúncia de outra desertora. Regina, uma das militantes selecionadas para o trabalho na área, ficou doente e teve que ser enviada para o sul em meados de 1971 para tratamento, apesar das normas em contrário estabelecidas pela Comissão Militar. Acabou desertando e, sob a pressão da própria família, denunciou o trabalho de preparação, possibilitando que as forças repressivas montassem todo o plano de ataque. Durante muito tempo, o CC ficou sem saber a causa da descoberta do trabalho do partido na área, em grande parte porque ignorava a deserção daquela militante. A comissão militar e seu principal dirigente, que teve que permanecer na área após o ataque das forças armadas [Maurício Grabois], não se sentiram na obrigação de informar nem mesmo a CEx [a Comissão Executiva do Comitê Central] sobre o assunto. Só após 1974, com a derrota da guerrilha, foi possível desvendar o mistério.”[13]
Os futuros guerrilheiros eram advertidos de que a ida para o campo era um caminho sem volta. Danilo, por exemplo, foi obrigado a permanecer na área até o início da luta, para não criar um risco de segurança. As circunstâncias da fuga de Regina (ela levava dinheiro escondido, suficiente para chegar até São Paulo, e foi deixada num hospital, sozinha) caracterizam uma falha gravíssima da Comissão Militar. 
Em minha opinião, o depoimento de Criméia lança uma luz definitiva sobre essa questão.
“Depois da fuga de Pedro, por medida de segurança, os militantes mais novos foram transferidos para o PA de Chega com Jeito. A Transamazônica estava em fase inicial de construção. Perto da futura estrada, Regina disse que não agüentava mais caminhar e pediu “que a deixassem por ali mesmo, porque ela preferia morrer ali”. Esta atitude levou o próprio Mário [Maurício Grabois] a suspeitar de Regina.
Outra atitude que, vista retrospectivamente, compromete Regina, foi uma conversa que mantivemos. Ela havia ido para a região antes de Lúcio, seu marido. Vendo que leva seguinte ele não estava entre os recém chegados, Regina se lamentou, dizendo que só havia ido para lá acompanhar o marido. Esse comentário provocou um certo mal estar.
Alguns sobreviventes alegam que foram parar no Araguaia enganados sobre o tipo de trabalho que iriam desenvolver. Eu não concordo. O clima político do país, as discussões internas que travávamos no PC do B, os documentos divulgados, tudo dizia que o trabalho no campo visava o desencadeamento da guerra popular. Eu, pelo menos, fui para o Araguaia com esta visão.
Em fevereiro de 72, encontrei com Regina, em São Paulo, em um ponto de rua, perto do Colégio Madre Cabrini, em Vila Mariana. Ela afirmou que não voltaria á guerrilha. Saí do ponto com duas enormes sacolas de plástico, cheia de bugigangas, que seriam para os guerrilheiros.
Era uma oferta tão inusitada que preferi me desfazer delas, jogando-as fora num córrego. Suspeitei que pudesse ser uma marca, algo que poderia me identificar para a repressão.”
O depoimento de Elza é contraditório. Ela diz que Regina foi contatada, intimada a voltar, contrariando todas as expectativas que o bom senso apontava, e que, inclusive, conheceria a data do retorno de Amazonas. Por outro lado, não poderia informar aos militares a localização certa do PA de onde havia saído! Parece uma tentativa de incriminar definitivamente Regina, e, ao mesmo tempo, minimizar as falhas de segurança da CM.
            Quase simultaneamente ao ataque partido de Belém, 15 homens do CIE, Centro de Informações do Exército, do CMP, Comando Militar do Planalto e da 3ª Brigada de Infantaria partem de Brasília, levando Pedro Albuquerque. É o início da Operação Cigana, que tinha como alvo o Destacamento C. As localidades visadas eram Caianos, Cachimbeiro e Cigana (aparentemente Pedro não conhecia Pau Preto).
A nossa opinião é que houve duas fontes de informação: uma, Pedro, sobre o Destacamento C; a outra, que se originou de Regina, sobre o Destacamento A. Em breve, com a prisão de Genoino, o exército teria informações detalhadas sobre o Destacamento B.
Outros depoimentos e fontes do próprio exército indicam que a repressão considerava a área potencialmente perigosa. Vários exercícios militares contra supostos guerrilheiros já haviam sido realizados e prisões haviam sido efetuadas, de militantes ligados as correntes foquistas. Em poder de um militante da ALN, havia sido apreendido um mapa da região. A construção da Transamazônica e de vários quartéis podem ser vistas como medidas preventivas. Entretanto, a região do Bico do Papagaio é imensa e despovoada, além de ser coberta por mata densa. As informações mais precisas sobre a guerrilha e a sua localização exata só foram obtida em 72.
É razoável supor que, cedo ou tarde, a guerrilha seria localizada, já que o Exército monitorava a região e tinha informantes entre os jagunços e bate-paus dos fazendeiros. De uma maneira ou de outra, o conflito militar era iminente, naquele ano de 72.



[1] Gíria que designava os agentes da comunidade de informação.
[2] Os guerrilheiros ficaram conhecidos na região como paulistas e povo da mata.
[3] Entrevista de 30.07.2007
[4] A segunda seção era responsável pela informação e contra-informação. Participava ativamente da repressão política.
[5] Operação Araguaia, p. 62.
[6] Idem, p. 64
[7] Operação Araguaia, p.53
[8] Operação Araguaia, p. 68.
[9] Operação Araguaia, p. 77.
[10] Guerrilha do Araguaia, Anita Garibaldi, p. 89.
[11] Romualdo, p. 105
[12] Romualdo, p. 106
[13] Pomar, p. 38.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Luiz Paulo Lyrio de Araújo



Hoje usarei esse espaço para lembra um amigo que faleceu recentemente: Luiz Paulo Lyrio de Araújo.
Fomos contemporâneos de Colégio Estadual. Ele no Clássico, eu no Científico. Isso foi no tempo em que o vestibular era feito por escola: para entrar na Escola de Engenharia, se fazia o vestibular de engenharia. As matérias eram Matemática, Física, Química e Desenho Geométrico. Quem preferia História, prestava vestibular para o Curso de História, da Faculdade de Filosofia, na Rua Carangola. Não sei quais eram as matérias cobradas.
Luiz optou pelas Ciências Humanas e eu, pelas desumanas. O sistema era muito complicado e foi substituído pelo atual vestibular.
O Colégio Estadual era famoso pela sua participação no movimento estudantil secundarista. E por sua efervescência cultural. Henfil foi meu contemporâneo. Os irmãos Amilcar e Roberto Martins também. Luiz participava ativamente do movimento estudantil. Eu tinha uma participação mais discreta. Empregava a maior parte das manhãs, jogando xadrez no salão do barbeiro Renard, e das tardes, jogando no Clube de Xadrez de Belo Horizonte, na Rua Carijós.
Isso foi em 1966, 67. Veio 68, o ano que já acabou, e perdi contato com o Luiz. A sua trajetória, assim como a de muitos amigos, foi narrada no seu livro “Nos idos de 68”. Ficamos quase quarenta anos, separados pelo tempo e pelo espaço. Foi justamente esse livro que acabou nos reaproximando.
Nesse meio tempo, Luiz seguiu lutando em duas frentes: como professor de História e como escritor. Escreveu um livrinho sobre a organização dos Grêmios Escolares, que deve ter ajudado muito o movimento secundarista a se reorganizar.
As reviravoltas da vida, que dispersaram aquela geração, foram nos endurecendo. Luiz continuou extremamente suscetível. Um comentário inocente, uma brincadeira de mau gosto, a mínima hostilidade, o abatia. Tinha aversão à burocracia. Quase todo ano, nos últimos dias de prazo, eu o ajudava com a sua declaração de imposto de renda. Com dois salários de professor, não haveria renda a tributar, se o nosso sistema fosse mais justo. Mesmo assim, não escapava da dentada do Leão.
Luiz tinha um olhar diferente, que o tornava um grande cronista. Seus contos nutriam-se da própria vida. Seus casamentos, seus amores, seus desenganos. Alguns eram simplesmente catárticos. Outros, quando ele conseguia se sobrepor ao sofrimento, eram deliciosos. Lembravam um pouco Gógol, de O capote e principalmente de O nariz.
Há um, meu preferido, A meio pau, que narra as desventuras de um órgão que escapa de seu dono. Ele jura que nunca leu O nariz. Eu acredito. A mesma sensibilidade fez com que Machado de Assis escrevesse “O Alienista” e Tchekhov “A enfermaria número 9”.
A elaboração de “Nos idos de 68” foi trabalhosa. Exigiu muita pesquisa histórica, muita leitura de periódicos da época. Luiz brincava dizendo que não tivera a sorte de ter sido torturado. Reclamava da imprensa e da televisão, que só queriam entrevistar os medalhões que haviam sido presos, torturados e até exilados. Sentia-se excluído. “Nos idos de 68” conta a história do ponto de vista da massa que participava dos movimentos estudantis. Esse é um dos grandes méritos do livro.
            É pena que essa suscetibilidade o tornasse inseguro. Luiz queria ser lido, preocupava-se bastante com a reação do leitor. Há um público que espera que todo conto seja uma espécie de fábula moral, com personagens bonzinhos, retratando fielmente a realidade. E com um final edificante. Esse não pode ser nosso referencial.
Ele sofreu um choque, quando a publicação de “Nos idos de 68” acabou coincidindo com a morte trágica de um amigo em comum, que também participava do movimento estudantil. Sentiu-se culpado, talvez porque esse amigo não fosse retratado sob uma luz muito favorável. Entrou em depressão e foi internado no Hospital do Ipsemg.
Foi justamente aí, que a vida nos reaproximou. Eu estava na Receita Federal, do outro lado do Parque Municipal e acabara de conhecer uma grande amiga, Clevane Pessoa. Pesquisando sobre 68, para um romance que vivo escrevendo, soube do livro de Luiz. Clevane, que também era sua amiga, contou-me onde ele estava. Fui visitá-lo e passamos a nos ver com freqüência.

Eu e Luiz Paulo, recebendo uma homenagem na Câmara de Belo Horizonte, pela participação no movimento de 68. Foto de Clevane Pessoa, que batalhou pela nossa indicação. Foram vários os homenageados.  

Foi o período da Revista Estalo, que promoveu concursos e lançou inúmeros poetas e escritores. Pela primeira vez, fui publicado em papel. A proposta era um tanto quixotesca e a revista acabou fechando, como tantas outras. Luiz lançou mais alguns livros, pagos pelo próprio bolso: “Marcas de Baton”, “Abdução”, a nova edição de “Nos idos de 68” e “Vida depois da morte”.
Eu era um pouco o seu Sancho Pança, ainda que ele não tivesse o físico do Cavalheiro da Triste Figura. Luiz não compreendia por que eu não me interessava em ser publicado, já que tinha dinheiro para bancar uma edição. Dizia que eu tinha obrigação de mostrar ao mundo a minha produção. Ser lido era um dever do escritor. Eu argumentava com o esquema cada vez mais mercantilista da literatura, com o número crescente de analfabetos funcionais, com a concorrência desleal das outras mídias. Dizia para ele: Luiz, meu amigo, seja menos Lyrico e mais Paulada. Não adiantava, ele seguia inconformado com o estado de nossas letras.
Mudou-se para Aracaju, em busca de ares mais amenos. Continuamos a nos falar pela Internet. Volta e meia, eu entrava no seu blog para deixar um comentário provocador. Nos últimos tempos, ele voltara a publicar um tablóide, Estalo, participava ativamente de vários movimentos culturais e parecia mais feliz. Infelizmente a saúde não ia bem. Havia sofrido três AVC e estava diabético. Fora fumante por muito tempo. Como a vida não é uma história com final feliz, morreu de câncer linfático, que não tem relação alguma com o fumo ou com a obesidade.
Antes de ele morrer, nos reencontramos no mesmo Ipsemg, numa quarta-feira. No domingo anterior, estava em Sete Lagoas, passando raiva com o meu Galo, quando o celular tocou. Era o filho André, contando que ele estava internado em estado grave. Na saída do jogo, falei com o próprio Luiz. A ligação estava toda cortada.
Minha mãe estava internada no Semper, pertinho do Ipsemg, com pneumonia. Na segunda, não tive tempo de visitá-lo. Na terça, cheguei quando o horário de visita havia terminado. Na quarta, conversamos um bom tempo. Foi a última vez que o vi. Achei que ele estava bem. Prometi que o veria sempre, embora, talvez, não pudesse ir todos os dias. Não pude voltar na quinta e nem na sexta. No fim de semana, seu filho me contou que ele estava no Otaviano Neves. Recebi a notícia de sua morte na segunda.
Luiz Paulo foi um batalhador abnegado. Lutou toda sua vida em defesa da cultura e da educação. Pagou com sua saúde e uma situação financeira precária. Não teve o sucesso que merecia, mas foi querido pelos que o conheceram de perto.
Se houver um outro lado, é justo que ele tenha um destino melhor. Imagino um céu dos escritores, onde não haja imposto de renda e nem Serasa. Onde as edições sejam em capa dura e papel couché e não custem um centavo. Onde não passe o BBB na televisão, só programas culturais. Onde seja proibida a entrada dos pitbulls de duas e de quatro patas. Onde os tablóide não falem de futebol e nem de crimes, só de lançamentos e resenhas de livros. Uma ou outra foto de uma beldade seminua, porque ninguém é de ferro. Onde o escritor tenha sempre um photoshop amigo. E as gostosas também. Onde o Luiz possa pitar seu cigarro, comer um tropeiro com bastante torresmo, precedido de uma pinga de Salinas, sem temer enfisema, colesterol, diabetes e balança. E numa roda de amigos, comentar com o Maurício, dando uma risada gostosa: esse Marco só escreve bobagem. Essa história de céu é um plágio barato do Brancalleone.
Sossega e aproveita, Luiz.

domingo, 8 de agosto de 2010

Lapidação

Graças ao Presidente Lula e seu amigo Ahmadinejad, o tema ganhou repercussão. Lula até chegou a cantarolar, em um comício em Curitiba o samba de Ataulfo Alves: "atire a primeira pedra, ai, ai, ai, aquele que não traiu por amor...
Aproveitando a deixa, publico um antigo texto antigo meu, onde ensino:


Como fazer una poesia



A inspiração


 
Se eu estivesse escrevendo um conto, começaria assim:
           Um dia, caminhava pela rua, quando avistei um formoso colibri.... Um poeta escreveria simplesmente: 

Um colibri
            A metáfora
       As metáforas são para os poetas como as notas musicais, para os músicos. Mal um poeta avista um colibri verde, logo lhe vem a metáfora: colibri - esmeralda - joia viva.

            Ele então escreverá:



Esmeralda de pura gema

O tempo e o espaço na poesia

Em poesia não há passado e nem futuro e sim um tempo poético próprio. As poesias estão  adormecidas, esperando  que alguém as acorde e pasam, a vôo de pássaro, pela mente do leitor. Nelas as coisas não acontecem num espaço definido.  Eu quero que o leitor veja o colibri como se estivesse diante dele. Logo ....
Pousou aqui
Mas as esmeraldas só se transforma em jóias depois de lapidadas. Meu passarinho agora é:
Uma metáfora lapidada
            Vejamos os primeros versos:
Um colibri
Esmeralda de pura gema
Pousou aqui
       Uma metáfora lapidada
Se eu parasse por aqui, teria escrito uma bela porcaria. Até agora, disse apenas que avistei um colibri e que ele parecia uma joía viva, uma esmeralda.  Poderia dizer o mesmo com uma fotografia. Segundo Borges, os poetas não necessitam romper suas cabeças em busca de novas metáforas. Podem  nos bastar umas poucas, que todos conhecem. É preciso, no entanto, utilizar-las de uma nova maneira. Não me atraem os passarinhos voando livres pelo céu. São um lugar comum, nosso inimigo mortal.  Os poetas costumam ser  violentos e passionais. Pelo menos diante de uma folha em branco.  Logo...


Durou o instante de uma bodocada
Agora o leitor só tem diante de si penas voando. O sonho acabou. Precisamos, porém, exterminar os passarinhos com arte. Os moleques os apedrejam a toda hora e nem por isso são poetas.
Nosso ofício é trabalhar com a palavra. O dicionário é um de nossos intrumentos de trabalho. Buscamos esmeraldas brutas para lapidar. Ninguém consegue advinhar a forma que terá a jóia lapidada, apenas o ourives a pressente, oculta na pedra bruta.
Lapidar, no dicionário, possui duas acepções. Uma delas é a que se conjuga em alguns países contra as mulheres adúlteras.
E assim termina o poema:

 Lapidação


Um colibri
Esmeralda de pura gema
Pousou aquí

Uma metáfora lapidada
Durou o instante de uma bodocada
Desferida pelo poeta em estado bruto

A poesia também é reciclável. Com a mesma idéia, podemos fazer vários poemas. Vejamos:
Vôo poético

Pobre passarinho
A metáfora encontrou
Um poeta concreto
O poeta concreto da foto é Tonto, nossa  pantera em miniatura, surpreendido com as penas da vítima ainda presas ao bigode. Quem teve a sorte de ser adotado por um gato, conhece sua elegância, a precisão com que ele apanha a presa. Se ele gostar muito de você, de vez em quando, colocará em sua cama um presente: um raminho, um ratinho morto, coisas assim. Kiki, a siamesa de minha mulher, presenteia com pregadores de roupa.
Em homenagem a esses poetas concretos, fiz uma
Poesia

        Todo gatinho é um poeta        


Perseguindo um borboletema


Um fulgurante


Extravagante


Borbulhante

Poema



Um salto improvável

No hiperespaço


Num imponderável contrapé


No contratempo do compasso



A presa destroçada

A fugidia borboleta


Agarrada

Despojada de seu brilho


Depois deixada


Na cama dum dono indiferente


A poesia
 Para terminar, como membro do Movimento "Poetas pela Paz", gostaria de fazer um apelo às autoridades iranianas, onde o adultério ainda é considerado questão de estado: comutem a pena de Sakineh Ashtiani por uma lapidação no melhor sentido. Quem nunca pecou, que atire o primeiro poema. Ao nosso Presidente, também faço um apelo: as palavras às vezes machucam, deixe os versos de Ataulfo em paz.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Os desaparecidos

Reproduzo texto divulgado na internet, pela Carta o Berro.



Carta Maior

Desaparecidos: à margem do rio dos Mortos


Hoje, no Brasil, ainda são 144 os desaparecidos políticos da ditadura civil-militar. Corpos à espera do sepultamento. Familiares à espera de concretizar o luto, de acabar com a incerteza. Almas à espera da travessia do Aqueronte. Como definiu Ivan Seixas, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, “são os fantasmas que voltam sempre. São os fantasmas que querem lembrar que não podem ser esquecidos”. A reportagem especial é de Paula Sacchetta, publicada originalmente no Brasil de Fato.




Queres tu, realmente,
sepultá-lo, embora isso tenha
sido vedado a toda a cidade?

Fala de Ismênia na tragédia Antígona

Cena 1: o começo ou sepultamento inusitado
Segunda-feira, 18 de maio de 1992. Em Jales, a 600 quilômetros de São Paulo, um caixão fechado é velado na Câmara Municipal. Foi decretado feriado, a cidade inteira está parada. A Câmara está lotada. Presentes crianças e adolescentes, gente de todas as idades. É um dia de sol muito quente, daqueles que nem ferro de marcar. Após o velório, um cortejo segue a pé até o cemitério.

Depois de anos de busca do filho desaparecido, Ruy Thales consegue enterrá-lo. O caixão é finalmente depositado no jazigo da família Berbert. Dentro dele, porém, não havia um corpo. Nem restos mortais. Apenas um terno completo e os sapatos de Ruy Carlos Vieira Berbert, desaparecido desde 1972. Objetos que haviam permanecido até então intocados em seu quarto, para “caso ele voltasse”.

Antes do início das cerimônias, Ruy Thales, o pai, chamou Amélia Teles em casa para tomar um café. Ela estava em Jales representando a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Ele havia me chamado para o enterro, mas eu sabia que os restos mortais não haviam sido encontrados. Aceitei o convite e não perguntei nada. Ele também não me disse nada”.

Depois do café, o conteúdo do caixão foi revelado. Naquele dia, Amélia foi cúmplice de Ruy Thales. Ninguém, além dos dois, sabia que o ataúde estava praticamente vazio. O pai já estava bastante idoso, e, prevendo que morreria logo, quis enterrar o filho. Mesmo sem ter um corpo. No fim do dia, depois do ato na Câmara e do enterro, deu um jantar para 80 pessoas. “Era uma mesa enorme, parecia um banquete”, conta Amélia. O pai de Berbert morreu pouco tempo depois. Mas conseguiu enterrar seu filho.

Cena 2: Ruy Carlos Vieira Berbert, presente!
O ritual foi a forma encontrada pela família Berbert para acabar com a espera. A maneira de encerrar o luto que já durava 20 anos. Estavam se libertando de um fantasma que, até hoje, assombra a vida de famílias inteiras: filhos, pais, mães e irmãos. Hoje, no Brasil, ainda são 144 os desaparecidos políticos.

“Não pode haver aceitação da ideia de que ainda existem mais de 140 brasileiros que muitos vivos sabem onde estão seus corpos ou como seus corpos deixaram de existir”, afirma Paulo Vannuchi, à frente da Secretaria Especial de Direitos Humanos desde o final de 2005.

O caso de Ruy Carlos Vieira Berbert é emblemático. Nascido em Regente Feijó, no interior paulista, em 1947, veio para São Paulo tentar o vestibular da USP. Passou em letras, começou o curso e se tornou militante no movimento estudantil. Mais tarde, passou à luta armada. Em 1969, viajou, pela ALN – Ação Libertadora Nacional, organização de maior expressão no cenário da guerrilha urbana, nascida como dissidência do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e que teve Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira como dirigentes –, para Cuba, de onde retornou como militante do Molipo – Movimento de Libertação Popular, surgido a partir de um racha da própria ALN.

A maioria dos que voltavam do treinamento na ilha socialista já chegava ao Brasil “queimada” e procuradíssima pela repressão. Quando os serviços de informação da ditadura souberam que os integrantes do Molipo estavam se espalhando de forma clandestina para dentro do país, o governo baixou uma ordem exigindo a prisão de todo e qualquer estranho recém-chegado às cidades do interior.

O turista relâmpago
Na virada de 1971 para 1972, Berbert instalou-se em Natividade (na época, em Goiás, hoje, no Tocantins), em uma pequena pensão. No dia seguinte, foi preso enquanto conversava tranquilamente na calçada com a filha do dono do estabelecimento.

A delegacia da cidade era bem antiga. Suas celas possuíam amplas janelas gradeadas que davam para a praça principal. Da janela, o preso conversava com as pessoas que por ali passavam. Em algumas horas, o militante tornou-se celebridade, quase uma atração turística. Ficou conhecido.

Dois ou três dias após sua prisão, baixou em Natividade “o pessoal de São Paulo”, como eram chamados os agentes do DOI-Codi. Nesse mesmo dia, Berbert apareceu enforcado em sua cela. A versão oficial: suicídio.

No dia seguinte, um grande proprietário de terras da região, não muito querido pela população local, também morreu. Os dois corpos partiram em cortejo rumo ao cemitério, seguidos por boa parte dos habitantes daquela cidade. Os agentes da repressão acreditavam que era por conta da morte do latifundiário, mas as pessoas estavam seguindo Berbert, o turista relâmpago, que, embora tivesse ficado tão pouco tempo na cidade, angariou simpatia e admiração, e que, do mesmo jeito que chegou, foi-se embora num piscar de olhos. Enterraram o latifundiário na ala “dos ricos” do cemitério, e o militante, numa vala comum, junto aos indigentes.

A família Berbert passou a ter informações sobre o filho somente através de notícias de jornal. Em 1979, um general ligado ao aparelho repressivo admitiu sua morte em entrevista concedida à Folha de S. Paulo. Na ocasião, dona Ottília, mãe de Ruy Carlos, disse ao grupo Tortura Nunca Mais que gostaria de mostrar a luta constante pela qual passaram, na busca incerta da solução de um passado certo: “Apesar dos fatos comprovarem a quase certeza de sua morte, nós vivemos mais de uma década com a esperança e o sonho de vê-lo novamente”.

Corpo que não era corpo
Apenas em 1991 começaram a obter dados mais concretos. Um atestado de óbito com o nome de João Silvino Lopes foi entregue à Comissão 261/90 da Prefeitura de São Paulo, criada no mandato da prefeita Luiza Erundina, para acompanhar a identificação das 1.049 ossadas encontradas na vala clandestina do cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus. Segundo a versão oficial, Lopes havia se suicidado em 2 de janeiro de 1972, em Natividade. Embora pudesse ser um militante político, seu nome não constava na lista de desaparecidos.

Só um ano mais tarde, em 1992, quando os familiares dos mortos e desaparecidos tiveram acesso aos arquivos do Dops, foi encontrada uma relação elaborada a pedido de Romeu Tuma, diretor da unidade paulista do órgão entre 1977 e 1982. Nela, estava o nome de Ruy Carlos Vieira Berbert com as seguintes observações: preso em Natividade, suicidou-se na Delegacia de Polícia, em 2 de janeiro de 1972. Concluiu-se que João Silvino Lopes era o nome com que fora enterrado Ruy Carlos Vieira Berbert.

Tendo-se como base esse mesmo documento, foi possível saber que seu corpo estava no cemitério de Natividade, mas não em qual local exatamente. Para exumá-lo e fazer a posterior identificação, seria preciso escavar o cemitério inteiro. Membros da Comissão 261/90 explicaram a situação à família Berbert, que, resignada, se contentou com um atestado de óbito, concordando em não fazer a exumação praticamente impossível. O corpo permaneceu no local, mas um enterro simbólico foi realizado na cidade onde seus pais moravam.

Naquele dia, quem passou pela Câmara Municipal de Jales prestou homenagens frente ao caixão vazio de corpo, mas repleto de símbolos. Velaram um corpo que não era corpo, que não sabiam que não era corpo, mas que reverenciavam e o fariam ainda que o soubessem. No cemitério, colocaram a bandeira a meio-pau e cantaram o hino nacional. Tudo isso para o homem que não estava lá.

Cena 3: dona Gertrudes ou “é ele, é ele!”
Quando o filho de dona Gertrudes morreu, ela começou a se interessar em saber mais sobre a sua luta. Já senhora, foi estudar direito e leu todos os livros que pôde sobre a esquerda brasileira. Saiu atrás das pessoas que conheceram seu filho e que com ele militaram. Soube da participação de Frederico Eduardo Mayr na ALN, descobriu que ele foi treinar guerrilha em Cuba e que voltou como militante do Molipo.

Dona Gertrudes participou ativamente da luta dos familiares de mortos e desaparecidos. Conseguiu localizar os restos mortais de Frederico (na vala comum do cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus), pois haviam documentos que atestavam sua morte e o local onde ele havia sido enterrado.

“Dona Gertrudes era capaz de dizer quando seu filho havia sido preso, onde e quem o prendeu, sabia de tudo, mas dizia que, até o dia de enterrá-lo, toda vez que chovia à noite e uma porta ou janela batia, pulava da cama e corria para a porta dizendo 'é ele, é ele!'”. Quem conta a história é o ministro Paulo Vannuchi. Mayr foi morto sob tortura no DOI-Codi em 1972. Foi enterrado, no Rio de Janeiro, somente 20 anos depois.

“Esse é o tema da espera que gosto de colocar em todas as conversas que tenho, posso ter e terei ainda com o [ministro da Defesa Nelson] Jobim e com chefes militares”. Vannuchi afirma que não entra na discussão da punição dos torturadores. Não diz que não, nem que sim, mas, se o pressionam muito, acaba confessando ser a favor de punir, sim. “Não que punir seja necessariamente enfiar na cadeia, porque significaria enfiar na cadeia octogenários”. Mas defende que essa discussão é tema do Judiciário. O presidente Lula já avisou: o Executivo não entra no debate sobre punição.

“Lula insiste em que eu coordene o trabalho de apoio às famílias, para localizar todas as informações, arquivos e, sobretudo, os corpos. Porque os corpos constituem um problema limiar de uma ideia de barbárie. Essa espera eterna se constitui numa manutenção da violação dos direitos humanos, numa manutenção do crime. A ocultação de cadáveres não está protegida por nenhuma lei de anistia”, diz Vannuchi, que acrescenta: “Às vezes, as famílias se irritam e dizem: ‘temos de obrigá-los a falar onde estão os corpos’.Vamos obrigar com 110 ou 220 volts? Não tem pau de arara, não tem cadeira elétrica. Não tem como obrigar ninguém, o esforço agora é de convencimento. E, nesse sentido, o convencimento é muito difícil quando a imprensa e setores conservadores não ajudam a reforçar esse consenso necessário e nacional de que não queremos discutir quem ganhou ou quem perdeu. Vamos dizer que o Brasil perdeu”.

Narrativa e reconstrução
O regime ditatorial sufocou a cultura, a manifestação, o pensamento, a juventude. Matou e torturou. “Eles vão dizer que, se não houvesse isso, haveria uma ditadura comunista pior ainda”. Para Vannuchi, esse não é o ponto. “Continuemos pensando diferente, vamos debater isso no voto, na universidade. O problema é que não dá pra dizer que o assunto terminou, que está encerrado”.

Segundo ele, não adianta colocar uma pedra em cima. “É preciso acabar com a ocultação de cadáveres e, se não houver cadáver, é preciso construir uma narrativa oficial, formal, com um pedido oficial de desculpas feito pelo presidente da República e pelo ministro da Defesa, ou os chefes das três armas”.

Vannuchi cita o caso de Ulysses Guimarães. Até hoje, não encontraram seu corpo.

Porém, há uma reconstituição do acidente. Ele estava em um helicóptero, sobrevoando o mar de Angra dos Reis no dia 12 de outubro de 1992. A aeronave caiu no oceano – a hora exata do acidente pode ser informada –, foram detectados os problemas que a fizeram cair e foram encontrados os corpos de todos os outros passageiros à bordo: sua mulher, o senador Severo Gomes e esposa, e o piloto.

A narrativa e a reconstrução do momento permitem afirmar que, mesmo sem terem achado o corpo, ele está morto. Sem o corpo e, pior, sem a narrativa e a certeza da morte, resta a dúvida: “e se fulano foi torturado até perder a consciência, teve uma amnésia e está encostado em um asilo ou abrigo?”, indaga o ministro.

“A narrativa é importante para encerrar esse processo de espera que se caracteriza como crime continuado e violação de direitos continuada. Essa incerteza, essa angústia, produz situações como a de dona Gertrudes. Tem que haver uma narrativa. Sem ela, não existe nenhuma certeza. E sem a certeza, os familiares não podem processar o luto. Isso tem que acabar, os familiares de desaparecidos não podem legar aos seus filhos essa espera”.

Cena 4: o ritual necessário ou a travessia de Caronte
O ministro sabe o que está dizendo. Segundo Carl Gustav Jung, um dos “pais” da psicologia analítica, para lidar com o imponderável, de nada adianta ao homem seu pensamento lógico e sistematizado que explica o mundo. Em situações em que o desconhecido, o incompreensível e o inexprimível estão envolvidos (no caso, o desaparecimento de familiares), a instância simbólica se compõe como a única solução. Apenas os rituais permitem ao homem, de alguma forma, participar do fenômeno e vivenciá-lo de fato.

A busca incansável dos familiares pelos corpos dos desaparecidos está ligada à instância simbólica. Racionalmente, há muito pouca diferença entre ter ou não o corpo, a prova concreta dessas perdas. Simbolicamente, no entanto, isso representa muito mais do que uma prova; o corpo sem vida é a passagem para o que Jung chamou de participação mística, que permite à pessoa enlutada transformar o momento de dor e melancolia em verbo, significá-lo, fazê-lo acontecer.

Por isso, a situação dos familiares de desaparecidos políticos, de nutrir uma esperança sobre a morte, é pior do que o luto, “uma tristeza inteira”. Aquilo que não pode ser definido e não pode ser falado, não se concretiza. Somente a simbolização poderia fazer essa ponte, o que, nesse caso, só poderia ocorrer com um enterro dos corpos ou restos mortais dos desaparecidos. Os familiares se certificariam de sua perda e concretizariam a morte, pondo fim à eterna angústia da incerteza.

A necessidade de rituais fúnebres está tão arraigada no imaginário da humanidade que já existia na mitologia grega. O barqueiro Caronte tinha a função de atravessar as almas para a outra margem do Aqueronte, o rio dos Mortos. Porém, só transportava as dos que tinham tido seus corpos devidamente sepultados.

Segundo essa lenda, as almas dos que não haviam sido sepultados não podiam atravessar o rio, e estavam condenadas a vagar pela margem do Aqueronte durante 100 anos.

Cena 5: sobre Penélope e Antígona
Laura Petit tem 63 anos. Viu seus irmãos, pela última vez, em 1970. Viveu e vive a melancolia até hoje. Espera até hoje. Assim como Antígona, quer enterrar seus irmãos, para que eles não sejam obrigados a vagar durante um século às margens do rio dos Mortos. Como Penélope, que aguardava seu Ulisses, Laura espera a abertura dos arquivos da ditadura, espera respostas, e a punição dos responsáveis.

Eram em quatro: Lúcio, o mais velho, Jaime, ela e Maria Lúcia, a mais nova.
O pai deles morreu antes de Maria Lúcia nascer. Era administrador de uma fazenda de café perto de Jaú, no interior de São Paulo, quando um de seus capatazes o assassinou. A mãe, de então 28 anos, ficou viúva cedo e com quatro filhos pequenos.

Permaneceram por um tempo onde viviam, na fazenda que pertencera aos parentes da escritora Hilda Hilst, numa cidade hoje chamada Itapuí. A família do pai das crianças ofereceu à mãe uma casa que havia sido do avô delas, em Amparo. E para lá se foram, os cinco. Lúcio e Jaime, os mais velhos, fizeram o primário na cidade e Laura começou a estudar por lá. Moraram ali durante quatro ou cinco anos. Era uma casa enorme, com um quintal muito grande também. Clóvis, o quinto irmão, nasceu do segundo casamento da mãe.

“As lembranças são boas. Crescemos juntos, todos tínhamos quase a mesma idade. Lúcio sempre se destacava, porque era muito inteligente, e a professora lá de Amparo ficava admirada. Ele surpreendia”, conta Laura. De Amparo, mudaram-se de novo, dessa vez, para Bauru, onde o avô materno administrava uma fazenda.

Ali, Lúcio começou a fazer o ginásio e a mãe, sozinha e sem apoio da família do pai, começou a ter dificuldade para manter os quatro filhos estudando. Decidiu: “os meninos vão continuar estudando e as meninas vão parar”. Mais tarde, escreveu para um tio das crianças que morava em São Paulo, que aceitou receber Laura e custear seus estudos.

Que nem a Emília
“Nas férias, eu reencontrava meus irmãos. Eu sentia falta, porque éramos muito unidos. Nessa fase que minha mãe passou dificuldade para comprar material escolar para quatro filhos, o Lúcio a ajudava. Tinha um esquema de escolher café em casa. Era trabalho doméstico infantil”. Laura ri quando conta que a mãe punha todo mundo numa mesa grande para tirar graveto e escolher o café. E recorda: “Uma coisa que foi o traço mais forte de Lúcio era o de sentir e perceber as diferenças. Um dia, estávamos na casa do meu avô em Amparo com relativo conforto, depois, estávamos passando necessidade. Ele teve que trabalhar ainda criança, ajudar a mãe a criar os irmãos. Com certeza, sentiu isso”.

Em Bauru, a família Petit morava perto da estação de trem, por onde passavam a pé na volta da escola. Lá, havia um armazém de cargas coberto, sob o qual paravam ciganos e “um pessoal que rodava o mundo”. Um dia, Lúcio viu um homem negro e muito, muito pobre, que levou para casa. Lá chegando, deu a ele um prato de comida, mesmo diante das dificuldades da família. Depois, buscou uma caixa de ferramentas e pegou um alicate para tirar, do sapato do homem, um prego que estava machucando seu pé. “Eu era bem pequena na época, mas aquilo ficou muito marcado em mim. O Lúcio era assim, solidário e fraterno com o sofrimento alheio. Em termos de caráter, tinha essa coisa de partilhar, de ser solidário, e, por isso, dá para entender porque mais tarde lutou contra uma ditadura opressora e por um mundo melhor onde todos fossem iguais”.

Laura estudava em São Paulo, Lúcio em Minas Gerais e Jaime no Rio, cada um na casa de um tio ou parente que aceitara custear seus estudos. Maria Lúcia e Clóvis, os mais novos, ficaram com a mãe em Duartina, cidade para a qual haviam se mudado recentemente. Nas férias, os três primeiros se encontravam em São Paulo, na estação da Luz, e tomavam o trem até lá, onde se reuniam com os irmãos menores e a mãe durante o mês inteiro, até a volta das aulas.

“Nessa época, na escola, as professoras falavam que a Maria Lúcia era muito crítica. Ela lia e discutia muito. Meus irmãos, que vinham de fora, traziam as discussões para dentro de casa. Ela leu a coleção do Monteiro Lobato inteira e era ‘perguntadeira’ que nem a Emília”.

Pela última vez
Mais tarde, com Lúcio e Jaime formados em engenharia, Laura cursando ciências sociais e Maria Lúcia tendo acabado a escola, os quatro juntaram-se outra vez em São Paulo. Mas não por muito tempo. Lúcio e Jaime tornaram-se militantes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) em 1967. Maria Lúcia entrou para o partido ainda como estudante secundarista.

Em 1968, Jaime, que havia sido preso por alguns dias por conta do 30º Congresso da UNE e fichado pelo Dops, foi chamado para depor. “Já havia muita repressão. Ele ficou com medo de ser interrogado e preso, então, a partir daí, entrou na clandestinidade. Ele não veio para nossa casa, porque podia ser procurado”.

Mais tarde, Laura ficaria sabendo que ele se hospedara na casa de uma tia-avó, na zona Norte paulistana. As filhas dessa tia-avó contaram que haviam sido recomendadas a não comentar com ninguém que ele estava lá. “Ele só saía à noite, para reuniões. Foi aí que o partido o mandou para o interior, mas não podia nos dizer onde por questões de segurança”.

Quando Jaime ia a São Paulo para reuniões, visitava a irmã. Não podiam trocar cartas, mas, mais tarde, Laura soube que ele morou em Goiás. Os três Petit foram para o Araguaia, para a região onde seria instalada a guerrilha, em princípios de 1971. Laura os viu pela última vez, em datas distintas, em fins de 1970.

Maria Lúcia ainda não estava clandestina quando foi para o Araguaia. Trabalhava com Laura em uma escola municipal. “Prestamos os primeiros concursos da Prefeitura para o cargo de professora. Ela tinha acabado de sair da escola e passou. Foi efetivada e escolhemos o mesmo lugar para trabalhar. Ela queria ainda estudar medicina, tinha muitos planos, mas, depois, a vida a levou para outro lado. As coisas mudaram”, conta.

Cena 6: a ditadura que não era branda
Maria Lúcia deixou São Paulo no começo de 1970, e Lúcio, no final do mesmo ano. Ele tampouco estava clandestino: trabalhou como engenheiro até partir. No período de preparação da guerrilha, Maria Lúcia, frequentemente doente de amidalite, fez uma operação e se preparou como pôde. “Eu sabia que ela ia para algum lugar, mas não sabia para onde”, conta Laura.

Sua irmã se despediu no começo de 1970, mas voltou em dezembro, para as festas de fim de ano. “Ela ficou alguns dias na minha casa e, depois, visitou nossa mãe em Bauru. Veio para reuniões do partido. Na noite do reveillón, as irmãs se juntaram “ao pessoal da USP” e foram para o samba no Camisa Verde e Branco, na Barra Funda.

“Nessa época, eu estava grávida, meu filho nasceria em fevereiro. Na hora de se despedir, Maria Lúcia disse: ‘ainda bem que eu não vou conhecer meu sobrinho, seria uma pessoa a mais para sentir saudades lá’”. E se foi mais uma vez. E, mais uma vez, Laura não sabia exatamente para onde. Só sabia que era um lugar quente e com muitos insetos: “quando ela veio, estava muito morena de sol e tinha picadas de pernilongo pelo corpo inteiro”.

A partir de então, Laura não tinha mais contato direto com os irmãos. “Um mensageiro trazia as cartas, eu respondia, e ele as levava de volta. Eu não sabia onde estavam, não tinha nenhuma dica. Esse mensageiro era da direção do partido. Eu o conhecia como Antônio”.

O Exército chegou ao Araguaia em abril de 1972. “Ele nos trouxe a notícia. Não era o momento exato, mas a guerrilha havia começado”. Ainda estava em fase de preparação, mas fora descoberta. Antônio explicou que era difícil circular pela região. Laura ficou sem notícias dos irmãos, mas, agora, sabia onde eles estavam.

“Em 73, vi em um jornal pendurado em uma banca com uma foto imensa estampada na capa: Antônio estava morto. Eram aquelas versões inventadas: tentativa de fuga, morto em confronto com a polícia ou outras alegações do gênero. Já sabíamos que não teríamos mais sequer as notícias dele. A partir daí, ficamos sabendo que Antônio era Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PCdoB”. Ele havia sido morto sob tortura, no DOI-Codi.

Sofrer em silêncio
“Pegamos todos os documentos do partido, fotos dos meus irmãos, o jornal A Classe Operária e meu marido levou numa ponte do Tietê e jogou tudo rio abaixo. Como o Antônio vinha em casa, a qualquer hora poderiam aparecer. Foram livros do Marx, do Lênin e tudo que era considerado ‘subversivo’”.

Laura ficava preocupada com a falta de notícias. “Em fins de 1968, depois de decretado o Ato Institucional número 5, o AI-5, a ditadura nunca foi ‘ditabranda’. A situação estava feia. Pode ter sido branda para quem ficou assistindo televisão, que veiculava as propagandas do governo do tipo ‘este país vai pra frente’ ou ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. Para quem sentiu na pele a repressão, sabe que de branda a ditadura não teve nada”.

Em 1973, Laura foi visitar a mãe em Bauru. Quando voltou, seu marido disse que tinha uma notícia muito ruim. Contou que havia encontrado Regilena de Aquino. Ela, que também havia participado da guerrilha, mas que estava de volta, pois havia se entregado ao Exército, fora casada com Jaime, seu irmão.

Regilena havia contado com detalhes que Maria Lúcia estava morta. Ela fora à casa de um camponês do Araguaia, seu “compadre”, João Coioió, que lhe havia comprado mantimentos. Maria Lúcia se tornaria madrinha de seu filho. Combinou de ir à casa logo cedo, com mais dois companheiros, Miguel Pereira dos Santos, conhecido como Cazuza, e Rosalindo de Souza, vulgo Mundico, que a ajudariam a carregar os mantimentos. Quando estava chegando, recebeu um tiro na altura da bacia e outro na cabeça. Os militares estavam na casa e a executaram assim que ela se aproximou. Seus companheiros conseguiram escapar.

Laura conta que, no momento em que soube da morte da irmã, teve que ficar calada. Sofria em silêncio e chorava às escondidas. Não podia compartilhar seu luto nem contar da morte da irmã aos amigos mais próximos.

Cena 7: será Maria Lúcia?
Quase 20 anos depois, em 1991, acharam ossadas do Araguaia. A irmã de João Carlos Haas, militante do PCdoB que também esteve na guerrilha, obteve indicações de moradores da região de que seu irmão estava enterrado no cemitério de Xambioá, no Tocantins. A Comissão de Justiça e Paz da Prefeitura de São Paulo foi até a região, acompanhada de uma equipe de legistas da Unicamp.

No lugar da escavação em busca de restos mortais de João Hass, foi encontrada, envolta em um paraquedas, uma ossada de uma mulher que teria entre 20 e 24 anos. Junto, estavam os projéteis de uma metralhadora de uso militar. Na ocasião, Fortunato Badan Palhares, à frente da equipe de legistas, afirmou, em entrevista à TV Manchete, que certamente era uma guerrilheira, principalmente porque tinha uma coroa de dente tratada. Se fosse uma moradora da região, não teria tratamento dentário nem tipo algum de prótese.

A informação chegou à Laura Petit. Os restos mortais encontrados talvez pudessem ser de sua irmã. A ossada foi levada à Unicamp. “Na volta do cemitério de Xambioá para São Paulo, Badan Palhares parou em Brasília e conversou com Romeu Tuma. Consta que, nessa época, Tuma teria recomendado a Palhares que não identificasse ossadas de nenhum guerrilheiro do Araguaia. Assim, a atitude dele mudou completamente depois daquela primeira entrevista para a TV Manchete”, conta Laura.

Nessa época, Luiza Erundina, prefeita de São Paulo, deu muito apoio à comissão de familiares. Selou um convênio para que o Departamento de Medicina Legal da Unicamp fizesse identificações de ossadas.

História da carochinha
“Fui umas três vezes até a Unicamp levar fotos e outras coisas que pudessem ajudar na identificação da ossada. Mostrei fotos da Maria Lúcia e o depoimento da Regilena dizendo como ela estava vestida no dia em que foi morta: com uma calça de brim e um cinto de couro com fivela de metal. Portava uma cartucheira de 20mm e uma espingarda de caça. Como estavam no meio da mata, tinham que caçar para comer”, lembra.

“Cheguei à Unicamp um dia cedo, e o Palhares não estava. Fiquei esperando até às dez horas da noite. Ele tinha ido a Vinhedo ver uma santa que chorava para fazer a perícia. Chegou tarde e me atendeu muito rapidamente. Já chegou falando: ‘não, não é sua irmã, o cabelo que tem aí é claro. Na foto que você me trouxe, ela tem cabelo escuro. Essa mulher que está aí dentro tem cabelo encaracolado, o que não era o caso da sua irmã!’. Ele tentou me contar uma história da carochinha: ‘você ainda vai encontrar sua irmã, não se preocupe’. Como se eu não tivesse certeza absoluta de que ela tinha sido executada. E ainda gritou comigo: ‘o cabelo que está aí é claro, você quer ir lá dentro ver?’. Imagine se eu, sendo irmã, às dez horas da noite, cansada e impactada pela expectativa, diria ‘sim, eu quero que você me mostre’. Recuei: ‘não, agora, não’. Como é que, sem preparo algum, eu poderia entrar naquela sala e olhar? Não sou uma técnica de Instituto Médico Legal!”. Laura conta que Palhares nunca deu a possibilidade de se fazer um exame de DNA. “Eu era a irmã dela e nossa mãe ainda estava viva quando a ossada foi encontrada”.

Badan deixou o caso de lado por um tempo, e, além disso, Laura estava passando por um período muito difícil. Em 1990, perdeu a filha caçula, de então quatro anos de idade. Em 1991, quando houve a exumação e a possibilidade de identificar a irmã, ainda estava muito impactada pela perda da menina. Foi algumas vezes até a Unicamp e não teve retorno algum. “Ainda disse a Palhares que conhecia o dentista que havia tratado o dente da Maria Lúcia. Eu poderia procurá-lo. E ele falou: ‘procure e me traga as radiografias’. Fui até Bauru atrás do Dr. Tanaka e pedi as radiografias. Ele disse que, depois de mais de 20 anos, não tinha mais nada de Maria Lúcia, mas que, apesar disso, lembrava direitinho do trabalho feito. Nossa mãe não tinha muito dinheiro para uma coroa de ouro, então ele fizera de outro metal. Afirmou ser capaz de reconhecer o dente, porque o trabalho de prótese é quase artesanal. Quando contei ao Badan Palhares, ele afirmou que só aceitava receber o dentista com as radiografias em mãos”.

Estado que ainda mata
Em abril de 1996, o jornal O Globo publicou uma grande reportagem, durante uma semana, sobre a Guerrilha do Araguaia. Um militar entregara todas as suas anotações com fotos e fatos sobre os enfrentamentos entre as forças da ditadura e os militantes do PCdoB. Uma das autoras da reportagem foi a São Paulo à procura de Laura.

Queria que ela reconhecesse Maria Lúcia. “Era uma foto da Maria Lúcia deitada em um paraquedas com um saco plástico cobrindo seu rosto. Eu reconheci, claro que era a Maria Lúcia. E aparecia a calça de brim e o cinto com fivela de metal que estavam com a ossada na Unicamp. Além disso, aqueles restos mortais haviam sido achados envoltos em um paraquedas”.

Depois de ver as fotos, Laura voltou para casa. Estava atordoada, desolada. Viu a irmã morta, lembrou-se da filha que havia perdido e ficou, então, comparando o que as duas tinham de parecido. “A Maria Lúcia era ligeiramente estrábica, usava óculos desde pequena e minha filha também precisou usar, desde bebê”. Quando chegou em casa e ligou a televisão, o noticiário anunciava: 17 de abril de 1996, no sul do Pará, 19 sem-terra foram mortos pela polícia. Era o massacre de Eldorado dos Carajás. “Pra mim, aquilo foi muito, muito forte. Ligo a televisão e vejo PMs armados, praticamente na mesma região, matando camponeses. Dezenove deles. Lembro que, na ocasião, pensei: ‘puxa vida, este país está como anos atrás’. Tinha acabado a ditadura e o Estado continuava matando”.

Cena 8: é ela, é ela!
Depois de publicada a matéria, a jornalista d’O Globo mandou à Laura as fotos de Maria Lúcia ampliadas. “Fomos com a comissão de familiares até a Unicamp. Chegamos com as fotos e, a nós, se juntou uma comissão grande de estudantes da Unicamp, para colocar o Badan contra a parede. Tinha imprensa e tudo mais. Quando ele chegou e viu aquela movimentação toda, acuado, falou, naquele tom professoral típico dele, que só receberia a mim e a meu marido”.

Badan viu as fotos e, finalmente, falou que faria a identificação, “pois, agora sim, tinha indícios. Eu deveria até trazer o dentista de Bauru”, conta Laura. Sua ida à Unicamp foi perto do dia 2 de maio de 1996. Em 15 de maio, o legista convocou uma entrevista coletiva para anunciar à imprensa e à sociedade a identificação de Maria Lúcia. “Ele fez, em 15 dias, o que havia demorado cinco anos para fazer”. Depois do caso PC Farias e das ossadas de Perus, o Departamento de Medicina Legal da Unicamp foi fechado por processos administrativos. “No caso PC Farias, ficou muito claro o caráter desse homem”, diz Laura.

A família Petit esperou até 16 de junho para fazer o traslado dos restos mortais da Unicamp ao cemitério. Maria Lúcia havia sido morta em 16 de junho de 1972. Foram 24 anos para ser encontrada, identificada e enterrada. Mais tempo do que ela viveu. Foi morta aos 22 anos.

“Nessa época, minha mãe disse que passaria, então, a esperar para poder sepultar seus outros dois filhos, mas, infelizmente, faleceu antes de fazer isso. Ela viveu uma espera eterna. Não conseguiu sepultar os outros dois filhos, não conseguiu que os arquivos fossem abertos nem que o governo devolvesse às famílias os restos mortais”, conta.

Vida suspensa
“Durante todo esse tempo, eu pensava, diariamente, se era ou não era minha irmã e o que poderia ser feito. É uma angústia constante, que não te deixa nunca. Depois de todas as negativas do Badan, ficamos esperando ver se alguma coisa nova acontecia. Por isso, é cada vez mais necessária a abertura dos arquivos da ditadura. O simples fato de esse militar que não se identificou entregar seus arquivos possibilitou a identificação da Maria Lúcia”, diz Laura, que indaga: “Quantos outros desaparecidos não poderiam ser localizados e identificados para que as famílias pudessem encerrar esse luto eterno? O luto é uma tristeza muito grande, mas que podemos compartir socialmente. Choramos e depois começamos a tocar a vida de novo. No nosso caso, não conseguimos concretizar a morte, porque não temos um corpo para chorar. Não encerramos esse período de luto. Não é uma tristeza, é uma melancolia que passa a nos acompanhar a vida toda. Ficamos com a vida truncada. Suspensa”.

Até a Lei de Anistia, Laura acreditava que Jaime e Lúcio poderiam estar vivos. “Eu tinha a esperança, sobretudo, que o Lúcio voltaria. Diziam que ele era um mateiro muito experiente. Durante a infância toda, tinha pescado nos rios perto de onde morávamos. Eu pensava que ele poderia ter caminhado, caminhado, até chegar à fronteira com algum país. Eu tinha um primo muito companheiro da gente na juventude. Um dia ele foi à Salvador e voltou dizendo que havia visto o Lúcio por lá e que ele tinha passado reto e fingido que não o conhecia. As pessoas ficam nessa coisa, nesse sebastianismo: eu vi em tal lugar, eu sei que vai voltar”.

Cena final: 30 anos depois ou procura-se
Segundo relatos de um camponês da região na época da guerrilha, Jaime foi morto pelos militares. Estava sozinho em uma cabana, magro, com feridas de leishmaniose e sem munição. Abriram fogo contra a cabana, uma fumaça se levantou com a poeira do chão e, quando foram ver, o corpo de Jaime estava “esbagaçado” pelos tiros.

Depois de morto, ainda teve a cabeça cortada para identificação e o corpo foi enterrado no local. A cabeça foi colocada em um saco e entregue ao chefe da operação na região, o doutor Augusto.

Já Lúcio foi preso, interrogado durante três dias e “foi feito” no dia de Tiradentes, 21 de abril. Na última foto em que se acredita que Lúcio aparece, ele está dentro de um helicóptero, provavelmente sendo levado para o “voo da morte”. Os prisioneiros eram levados para longe e executados.

Até hoje, nenhuma notícia deles. Nenhuma certeza. E Laura é apenas uma das pessoas que seguem esperando. Hoje, no Brasil, são 144 os desaparecidos políticos. Como definiu Ivan Seixas, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, “são os fantasmas que voltam sempre. São os fantasmas que querem lembrar que não podem ser esquecidos”.

Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar

Trecho da letra da música “Angélica”, de Chico Buarque.