Hoje usarei esse espaço para lembra um amigo que faleceu recentemente: Luiz Paulo Lyrio de Araújo.
Fomos contemporâneos de Colégio Estadual. Ele no Clássico, eu no Científico. Isso foi no tempo em que o vestibular era feito por escola: para entrar na Escola de Engenharia, se fazia o vestibular de engenharia. As matérias eram Matemática, Física, Química e Desenho Geométrico. Quem preferia História, prestava vestibular para o Curso de História, da Faculdade de Filosofia, na Rua Carangola. Não sei quais eram as matérias cobradas.
Luiz optou pelas Ciências Humanas e eu, pelas desumanas. O sistema era muito complicado e foi substituído pelo atual vestibular.
O Colégio Estadual era famoso pela sua participação no movimento estudantil secundarista. E por sua efervescência cultural. Henfil foi meu contemporâneo. Os irmãos Amilcar e Roberto Martins também. Luiz participava ativamente do movimento estudantil. Eu tinha uma participação mais discreta. Empregava a maior parte das manhãs, jogando xadrez no salão do barbeiro Renard, e das tardes, jogando no Clube de Xadrez de Belo Horizonte, na Rua Carijós.
Isso foi em 1966, 67. Veio 68, o ano que já acabou, e perdi contato com o Luiz. A sua trajetória, assim como a de muitos amigos, foi narrada no seu livro “Nos idos de 68”. Ficamos quase quarenta anos, separados pelo tempo e pelo espaço. Foi justamente esse livro que acabou nos reaproximando.
Nesse meio tempo, Luiz seguiu lutando em duas frentes: como professor de História e como escritor. Escreveu um livrinho sobre a organização dos Grêmios Escolares, que deve ter ajudado muito o movimento secundarista a se reorganizar.
As reviravoltas da vida, que dispersaram aquela geração, foram nos endurecendo. Luiz continuou extremamente suscetível. Um comentário inocente, uma brincadeira de mau gosto, a mínima hostilidade, o abatia. Tinha aversão à burocracia. Quase todo ano, nos últimos dias de prazo, eu o ajudava com a sua declaração de imposto de renda. Com dois salários de professor, não haveria renda a tributar, se o nosso sistema fosse mais justo. Mesmo assim, não escapava da dentada do Leão.
Luiz tinha um olhar diferente, que o tornava um grande cronista. Seus contos nutriam-se da própria vida. Seus casamentos, seus amores, seus desenganos. Alguns eram simplesmente catárticos. Outros, quando ele conseguia se sobrepor ao sofrimento, eram deliciosos. Lembravam um pouco Gógol, de O capote e principalmente de O nariz.
Há um, meu preferido, A meio pau, que narra as desventuras de um órgão que escapa de seu dono. Ele jura que nunca leu O nariz. Eu acredito. A mesma sensibilidade fez com que Machado de Assis escrevesse “O Alienista” e Tchekhov “A enfermaria número 9”.
A elaboração de “Nos idos de 68” foi trabalhosa. Exigiu muita pesquisa histórica, muita leitura de periódicos da época. Luiz brincava dizendo que não tivera a sorte de ter sido torturado. Reclamava da imprensa e da televisão, que só queriam entrevistar os medalhões que haviam sido presos, torturados e até exilados. Sentia-se excluído. “Nos idos de 68” conta a história do ponto de vista da massa que participava dos movimentos estudantis. Esse é um dos grandes méritos do livro.
É pena que essa suscetibilidade o tornasse inseguro. Luiz queria ser lido, preocupava-se bastante com a reação do leitor. Há um público que espera que todo conto seja uma espécie de fábula moral, com personagens bonzinhos, retratando fielmente a realidade. E com um final edificante. Esse não pode ser nosso referencial.
Ele sofreu um choque, quando a publicação de “Nos idos de 68” acabou coincidindo com a morte trágica de um amigo em comum, que também participava do movimento estudantil. Sentiu-se culpado, talvez porque esse amigo não fosse retratado sob uma luz muito favorável. Entrou em depressão e foi internado no Hospital do Ipsemg.
Foi justamente aí, que a vida nos reaproximou. Eu estava na Receita Federal, do outro lado do Parque Municipal e acabara de conhecer uma grande amiga, Clevane Pessoa. Pesquisando sobre 68, para um romance que vivo escrevendo, soube do livro de Luiz. Clevane, que também era sua amiga, contou-me onde ele estava. Fui visitá-lo e passamos a nos ver com freqüência.
Eu e Luiz Paulo, recebendo uma homenagem na Câmara de Belo Horizonte, pela participação no movimento de 68. Foto de Clevane Pessoa, que batalhou pela nossa indicação. Foram vários os homenageados.
Foi o período da Revista Estalo, que promoveu concursos e lançou inúmeros poetas e escritores. Pela primeira vez, fui publicado em papel. A proposta era um tanto quixotesca e a revista acabou fechando, como tantas outras. Luiz lançou mais alguns livros, pagos pelo próprio bolso: “Marcas de Baton”, “Abdução”, a nova edição de “Nos idos de 68” e “Vida depois da morte”.
Eu era um pouco o seu Sancho Pança, ainda que ele não tivesse o físico do Cavalheiro da Triste Figura. Luiz não compreendia por que eu não me interessava em ser publicado, já que tinha dinheiro para bancar uma edição. Dizia que eu tinha obrigação de mostrar ao mundo a minha produção. Ser lido era um dever do escritor. Eu argumentava com o esquema cada vez mais mercantilista da literatura, com o número crescente de analfabetos funcionais, com a concorrência desleal das outras mídias. Dizia para ele: Luiz, meu amigo, seja menos Lyrico e mais Paulada. Não adiantava, ele seguia inconformado com o estado de nossas letras.
Mudou-se para Aracaju, em busca de ares mais amenos. Continuamos a nos falar pela Internet. Volta e meia, eu entrava no seu blog para deixar um comentário provocador. Nos últimos tempos, ele voltara a publicar um tablóide, Estalo, participava ativamente de vários movimentos culturais e parecia mais feliz. Infelizmente a saúde não ia bem. Havia sofrido três AVC e estava diabético. Fora fumante por muito tempo. Como a vida não é uma história com final feliz, morreu de câncer linfático, que não tem relação alguma com o fumo ou com a obesidade.
Antes de ele morrer, nos reencontramos no mesmo Ipsemg, numa quarta-feira. No domingo anterior, estava em Sete Lagoas, passando raiva com o meu Galo, quando o celular tocou. Era o filho André, contando que ele estava internado em estado grave. Na saída do jogo, falei com o próprio Luiz. A ligação estava toda cortada.
Minha mãe estava internada no Semper, pertinho do Ipsemg, com pneumonia. Na segunda, não tive tempo de visitá-lo. Na terça, cheguei quando o horário de visita havia terminado. Na quarta, conversamos um bom tempo. Foi a última vez que o vi. Achei que ele estava bem. Prometi que o veria sempre, embora, talvez, não pudesse ir todos os dias. Não pude voltar na quinta e nem na sexta. No fim de semana, seu filho me contou que ele estava no Otaviano Neves. Recebi a notícia de sua morte na segunda.
Luiz Paulo foi um batalhador abnegado. Lutou toda sua vida em defesa da cultura e da educação. Pagou com sua saúde e uma situação financeira precária. Não teve o sucesso que merecia, mas foi querido pelos que o conheceram de perto.
Se houver um outro lado, é justo que ele tenha um destino melhor. Imagino um céu dos escritores, onde não haja imposto de renda e nem Serasa. Onde as edições sejam em capa dura e papel couché e não custem um centavo. Onde não passe o BBB na televisão, só programas culturais. Onde seja proibida a entrada dos pitbulls de duas e de quatro patas. Onde os tablóide não falem de futebol e nem de crimes, só de lançamentos e resenhas de livros. Uma ou outra foto de uma beldade seminua, porque ninguém é de ferro. Onde o escritor tenha sempre um photoshop amigo. E as gostosas também. Onde o Luiz possa pitar seu cigarro, comer um tropeiro com bastante torresmo, precedido de uma pinga de Salinas, sem temer enfisema, colesterol, diabetes e balança. E numa roda de amigos, comentar com o Maurício, dando uma risada gostosa: esse Marco só escreve bobagem. Essa história de céu é um plágio barato do Brancalleone.
Sossega e aproveita, Luiz.
Muito bom o seu texto
ResponderExcluirO Luiz lyrio era mesmo encantador
Pequnaflor
Olá Marco Lisboa, o meu nome é Luciana Tannus,sou mineira de Belo Horizonte e muito amiga de Clevane. Atualmente moro em Aracaju e foi justamente por intermédio de nossa amiga em comum que pude conhecer o Lyrio quando me mudei para essa cidade. Estava em BH de férias na semana em que o Luiz fora hospitalizado, mas como eu havia chegado do Rio exatamente por aqueles dias e já estava prestes a voltar para o nordeste, não tive a oportunidade de ir visitá-lo. Quando recebi a notícia pela Clevane ao telefone de que ele estava internado, fiquei muito chateada, visto que, eu havia conversado e recebido um convite dele, acerca do projeto Estalo, no qual a gente já vinha trabalhando juntos há poucos dias de minha viagem. Mas Clevane me tranquilizou dizendo que ele estava bem melhor, que você o encontrou sentado na cama, trabalhando no notebook e isso me deixou feliz. Mas, infelizmente a notícia de sua passagem veio logo em seguida não é mesmo? O que nos resta Marco, é relembrarmos de Luiz da forma como ele sempre foi: atuante, batalhador, expressivo e denodado escritor que muito contribuiu com os seus ensinamentos e experiência de vida. Cumprimento-lhe pelo belíssimo texto em homenagem ao nosso amigo e pela oportunidade que você nos proporciona, de conhecermos mais um pouquinho da história do Luiz e da amizade de vocês.
ResponderExcluirUm grande abraço.
Obrigado Luciana,
ResponderExcluirPelo que você conta, parece que o Luiz encontrou no Nordeste um ambiente muito favorável. Fiquei surpreso com a evolução de sua doença. Ele foi vago a respeito do seu estado. Disse que os médicos não tinham um diagnóstico definitivo e eu suspeitei de um enfisema.
Até o fim ele esteve dividido: ao mesmo tempo que queria os amigos ao seu lado e precisava de carinho, tinha ainda a esperança de driblar a indesejada das gentes e não queria conjurá-la falando abertamente o seu nome. Falou de um problema nos gânglios, como uma hipótese que os médicos iriam examinar. No final, foi vítima de um câncer linfático.
Ele me contou os episódios tragicómicos que aconteceram com ele no hospital em Aracaju e eu o encorajei a escrever uma daquelas crônicas cujo tom só ele sabia encontrar. Durante toda sua vida, Luiz carregou muito sofrimento em seus ombros. Ao mesmo tempo, tinha um humor muito agudo. Essa foi sua última batalha. Ele preferiu as armas do lirismo à paulada da realidade.
Inconscientemente, eu acabei ajudando-o. Foi melhor nos despedirmos assim, gracejando e fazendo projetos.
Caro Marco;
ResponderExcluirSua crônica em homenagem a Luiz Lyrio deixou-me comovido. Não pela convivência, que nunca houve, nem nossa, nem com ele, só o vi uma vez, na frustrada reunião em torno do projeto Blah!. Mas, pelas circunstâncias da sua, da dele, e agora acrescento, das nossas vidas, contemporâneos que somos.
Sua crônica trouxe informações que me projetaram para dentro dessa bagagem, desse passado. O Colégio Estadual, onde estive em 69 e 70, noturno, científico. A agitação secundarista. A minha ficou para trás, no ginásio, quando fui presidente do Grêmio Literário, na ocasião ultra politizado. Em seguida, 68, os liames foram cortados, os meninos perdemos o contato com a geração mais velha, professores incluídos.
E você nos informa que Luiz Lyrio se preocupou com os grêmios, veja só. Quantas vezes lamentei com meus filhos o estado de apatia dos atuais grêmios literários, "desarmados" pelas próprias escolas.
Também nos identifica o desejo de escrever. Os potenciais escritores que somos hoje, ele em parte realizando-se com a publicação de seus livros. A identidade pela literatura que, por necessidade eu pragmaticamente escanteei, e em cujo caminho você não acreditou.
De resto, as histórias se parecem: aos 31 anos (1979) eu consegui fazer um concurso para fiscal do estado que "salvou" a mim e à minha grande família.
Enfim, a homenagem a Luiz Lyrio é também uma homenagem a esses tempos que, de uma forma ou de outra, fazem parte do que somos e do que é a sociedade brasileira hoje. E sua morte é a anunciação de nossa própria morte — não se assuste, cada um a seu tempo — e da morte desses bem vividos tempos.
Parabéns pela crônica. E um abraço na memória do companheiro que não conheci, senão pela memória de nossa história comum.
Caro Marco;
ResponderExcluirSua crônica em homenagem a Luiz Lyrio deixou-me comovido. Não pela convivência, que nunca houve, nem nossa, nem com ele, só o vi uma vez, na frustrada reunião em torno do projeto Blah!. Mas, pelas circunstâncias da sua, da dele, e agora acrescento, das nossas vidas, contemporâneos que somos.
Sua crônica trouxe informações que me projetaram para dentro dessa bagagem, desse passado. O Colégio Estadual, onde estive em 69 e 70, noturno, científico. A agitação secundarista. A minha ficou para trás, no ginásio, quando fui presidente do Grêmio Literário, na ocasião ultra politizado. Em seguida, 68, os liames foram cortados, os meninos perdemos o contato com a geração mais velha, professores incluídos.
E você nos informa que Luiz Lyrio se preocupou com os grêmios, veja só. Quantas vezes lamentei com meus filhos o estado de apatia dos atuais grêmios literários, "desarmados" pelas próprias escolas.
Também nos identifica o desejo de escrever. Os potenciais escritores que somos hoje, ele em parte realizando-se com a publicação de seus livros. A identidade pela literatura que, por necessidade eu pragmaticamente escanteei, e em cujo caminho você não acreditou.
De resto, as histórias se parecem: aos 31 anos (1979) eu consegui fazer um concurso para fiscal do estado que "salvou" a mim e à minha grande família.
Enfim, a homenagem a Luiz Lyrio é também uma homenagem a esses tempos que, de uma forma ou de outra, fazem parte do que somos e do que é a sociedade brasileira hoje. E sua morte é a anunciação de nossa própria morte — não se assuste, cada um a seu tempo — e da morte desses bem vividos tempos.
Parabéns pela crônica. E um abraço na memória do companheiro que não conheci, senão pela memória de nossa história comum.