Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

domingo, 8 de agosto de 2010

Lapidação

Graças ao Presidente Lula e seu amigo Ahmadinejad, o tema ganhou repercussão. Lula até chegou a cantarolar, em um comício em Curitiba o samba de Ataulfo Alves: "atire a primeira pedra, ai, ai, ai, aquele que não traiu por amor...
Aproveitando a deixa, publico um antigo texto antigo meu, onde ensino:


Como fazer una poesia



A inspiração


 
Se eu estivesse escrevendo um conto, começaria assim:
           Um dia, caminhava pela rua, quando avistei um formoso colibri.... Um poeta escreveria simplesmente: 

Um colibri
            A metáfora
       As metáforas são para os poetas como as notas musicais, para os músicos. Mal um poeta avista um colibri verde, logo lhe vem a metáfora: colibri - esmeralda - joia viva.

            Ele então escreverá:



Esmeralda de pura gema

O tempo e o espaço na poesia

Em poesia não há passado e nem futuro e sim um tempo poético próprio. As poesias estão  adormecidas, esperando  que alguém as acorde e pasam, a vôo de pássaro, pela mente do leitor. Nelas as coisas não acontecem num espaço definido.  Eu quero que o leitor veja o colibri como se estivesse diante dele. Logo ....
Pousou aqui
Mas as esmeraldas só se transforma em jóias depois de lapidadas. Meu passarinho agora é:
Uma metáfora lapidada
            Vejamos os primeros versos:
Um colibri
Esmeralda de pura gema
Pousou aqui
       Uma metáfora lapidada
Se eu parasse por aqui, teria escrito uma bela porcaria. Até agora, disse apenas que avistei um colibri e que ele parecia uma joía viva, uma esmeralda.  Poderia dizer o mesmo com uma fotografia. Segundo Borges, os poetas não necessitam romper suas cabeças em busca de novas metáforas. Podem  nos bastar umas poucas, que todos conhecem. É preciso, no entanto, utilizar-las de uma nova maneira. Não me atraem os passarinhos voando livres pelo céu. São um lugar comum, nosso inimigo mortal.  Os poetas costumam ser  violentos e passionais. Pelo menos diante de uma folha em branco.  Logo...


Durou o instante de uma bodocada
Agora o leitor só tem diante de si penas voando. O sonho acabou. Precisamos, porém, exterminar os passarinhos com arte. Os moleques os apedrejam a toda hora e nem por isso são poetas.
Nosso ofício é trabalhar com a palavra. O dicionário é um de nossos intrumentos de trabalho. Buscamos esmeraldas brutas para lapidar. Ninguém consegue advinhar a forma que terá a jóia lapidada, apenas o ourives a pressente, oculta na pedra bruta.
Lapidar, no dicionário, possui duas acepções. Uma delas é a que se conjuga em alguns países contra as mulheres adúlteras.
E assim termina o poema:

 Lapidação


Um colibri
Esmeralda de pura gema
Pousou aquí

Uma metáfora lapidada
Durou o instante de uma bodocada
Desferida pelo poeta em estado bruto

A poesia também é reciclável. Com a mesma idéia, podemos fazer vários poemas. Vejamos:
Vôo poético

Pobre passarinho
A metáfora encontrou
Um poeta concreto
O poeta concreto da foto é Tonto, nossa  pantera em miniatura, surpreendido com as penas da vítima ainda presas ao bigode. Quem teve a sorte de ser adotado por um gato, conhece sua elegância, a precisão com que ele apanha a presa. Se ele gostar muito de você, de vez em quando, colocará em sua cama um presente: um raminho, um ratinho morto, coisas assim. Kiki, a siamesa de minha mulher, presenteia com pregadores de roupa.
Em homenagem a esses poetas concretos, fiz uma
Poesia

        Todo gatinho é um poeta        


Perseguindo um borboletema


Um fulgurante


Extravagante


Borbulhante

Poema



Um salto improvável

No hiperespaço


Num imponderável contrapé


No contratempo do compasso



A presa destroçada

A fugidia borboleta


Agarrada

Despojada de seu brilho


Depois deixada


Na cama dum dono indiferente


A poesia
 Para terminar, como membro do Movimento "Poetas pela Paz", gostaria de fazer um apelo às autoridades iranianas, onde o adultério ainda é considerado questão de estado: comutem a pena de Sakineh Ashtiani por uma lapidação no melhor sentido. Quem nunca pecou, que atire o primeiro poema. Ao nosso Presidente, também faço um apelo: as palavras às vezes machucam, deixe os versos de Ataulfo em paz.

Um comentário:

  1. Beleza, Marco. Não repare se faço tudo ao contrário: queria comentar a homenagem a Luiz Lyrio mas, navegando, achei essa deliciosa receita. Depois me dou conta de que há um novo capítulo do livro, que lerei em breve.
    Voltando à receita de "o que é, e como fazer poesia", constatei que já fui poeta bruto: nos idos de 197... eu e meu compadre Wilson, lá pelos lados de Paineiras, matei um colibri, mas ao contrário dos gatos, não consegui encontrar o corpo para o ritual do caçador; foi um desastre a nossa presença na região: também sucumbiram um esquilo e um periquito. Para culminar, o esquilo, ainda vivo, recebeu uma injeção de formol do dono da casa, estrebuchando nas nossas mãos. Não houve nada de poético nessa matança. Nem tampouco no relato que faço agora. Mas a poesia não mora nas coisas; mora na cultura e na cabeça dos poetas. E em se tratando de beija-flor, tracei há tempos o poema abaixo, usando o dicionário e o fato de vê-lo, ao próprio, pousado a metro e meio de minha janela. Feito para crianças, não tem novidade e falta-lhe o "grão mais vivo" das suas "Lapidação" e "Todo gatinho..." Aí vai:

    Beija-Flor

    No fio do telefone,
    um chupa-flor, delicado,
    pequeno broche espetado
    na tênue franja do dia.

    É colibri, na Europa,
    por aqui, dou-vos a dica,
    antes beija, do que pica,
    o chupa-mel da poesia.

    É pica-flor, guainumbi,
    guinumbi, binga ou cuitelo,
    arisco, pequeno e belo,
    há muito tempo não via.

    Ali ficou, a emplumar-se,
    enquanto eu me perguntava,
    o que pensas, jóia rara,
    quê te orienta e te guia?

    Também, como a perguntar-me,
    com candura e indiferença,
    fitou-me, todo a alongar-se:
    será que esse bicho pensa?

    LPSantana

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