El Borrador
A mão em
concha recolheu a massa ainda quente e um pouco mole. Antes de usá-la, aspirou
o cheiro forte e um pouco enjoativo. Comi muito doce hoje - pensou. O seu
intestino era sensível ao açúcar e a fermentação atrapalhava a solidez do bolo fecal.
O primeiro arremesso grudou na parede. Não gostou da forma final. Usando
as mãos como espátula, completou a obra. A servente que nos descreveu o
atentado, quando chegava na parte em que haviam encontrado a ... a coisa, sempre
balançava a cabeça, com os lábios apertados e a testa franzida. O trejeito
descrevia o nojo que ela sentira melhor que qualquer palavra. A servente mais
velha, que já havia visto muitos banheiros imundos em sua vida, conseguiu achar
uma expressão: parecia coisa do demônio. No nosso andar, a história virou
motivo de piadas e foi contada e requentada na roda do cafezinho.
Nossa repartição é muito respeitada pela imprensa e pela sociedade. Pode ser que a fama seja justa, mas, de
qualquer maneira, 9não somos muito ágeis em tomar providências. Tempos atrás
começaram a sumir objetos. Uma bolsa, um celular, até o lanche esquecido em
cima da mesa. A segurança era muito frouxa e o público tinha livre acesso ao
prédio. Resolveu-se o problema colocando-se chaves nos armários. Aí começaram a
sumir os equipamentos: um fax, uma impressora, um mouse; até que um dia levaram
um computador inteiro.
Só então o chefe da segurança recebeu carta branca. Contratou uma equipe
completa, com um responsável por andar. Em seguida colocou um sistema de vigilância
com câmaras. Infelizmente, ou felizmente, não se pensou em monitorar os
banheiros.
Depois do atentado, a reação foi imediata: cada seção passou a ter a sua
chave e os banheiros masculinos, agora privativos dos funcionários, passaram a
ser trancados. Pensamos que a história havia parado por aí, mas um novo ataque,
desta vez num banheiro feminino, acabou com esta ilusão. A igualdade entre os
sexos foi restabelecida - os homens não detinham mais o privilégio da porcaria.
De novo o cafezinho virou um fórum antiterror. As teorias sobre o
personagem se multiplicavam e se contradiziam. No início, seria um cidadão
revoltado, que colocou na parede a sua opinião sobre a nossa repartição. Depois
da segunda ocorrência, ora ele seria um travesti, ora um funcionário
enlouquecido, ora um louco cuja mania era freqüentar prédios públicos. O
Oliveira, logo de cara, achou um nome perfeito para o terrorista: El Borrador.
Embora a vigilância interna houvesse considerado questão de honra a sua
captura, as semanas passavam e a opinião geral era que o crime ficaria impune.
... percebi que ele mudou de assunto quando cheguei. Todos estão me
olhando de banda. O pior é que ele sabe que eu não vou reagir. Deus sabe que eu
tento não aparentar o meu problema.
Mesmo assim, ele tem que me espezinhar todo dia, com suas brincadeiras
idiotas. Ficou excitado com a história do banheiro e está se achando um grande
caçador, correndo atrás da presa...
A mão em concha recolheu os jatos ainda quentes do líquido viscoso. Em
seus dias de glória ele conseguia um arremesso de quase três metros. Agora
estava reduzido a um palmo, mas a quantidade e a viscosidade não haviam perdido
muito com o tempo. O cheiro de água sanitária era até agradável, mas ele não
perdeu tempo. Espalhou o esperma no primeiro espelho à mão e se mandou. Daí em diante, se tornou El Gozador.
... falei que não adiantava confiar nos outros.
Escutou, com aquele bafo de cachaça. Ninguém o suporta, mas ele se ilude. Até
que enfim tirou aquela bunda gorda da cadeira. Como fica ridículo naquele
uniforme todo apertado...
Os funcionários estavam inquietos. Cada um inspecionava o banheiro, antes
de entrar, e se fechava à chave por dentro, com medo de ser incriminado num
novo atentado. A situação de dois machos se trancando no banheiro era
constrangedora, mas logo se acostumaram com esta contingência. Depois de um
certo tempo, a sensação de segurança voltou e a seqüência de pegar a chave,
entrar no banheiro e trancar a porta se tornou mais uma das rotinas diárias.
Não adianta mais. Tentei conversar com ele. Riu,
daquele jeito besta. Não entende nada de nada. Vai passando por cima de tudo,
feito um trator. Falei do Segredo de Fátima. – A Fátima gorda? – Meu Deus, por
que eu sou tão sensível a estas coisas? Por que a opinião dele me incomoda? Eu
tenho 26 anos de serviço, devia deixar tudo isso prá lá...
Ele observava o jato ainda quente
e espumante que turvava a água do vaso. O cheiro era acre e a coloração quase
alaranjada. Exagerei na cachaça ontem - pensou ele. Ele ouviu a porta do
banheiro se abrindo e o ruído da chave fechando-a novamente. A porta do boxe
estava aberta e ele ainda estava sacudindo o membro, quando se virou. Deu um
urro, mais pelo susto do que pela dor da dentada. Até que alguém conseguisse uma chave em outra
seção para abrir a porta, El Gozador teve a vítima à sua disposição.
Naquele dia finalmente conseguiram agarrar El Borrador, digo El Gozador,
ou seria melhor dizer, El Maricón. A vítima, o chefe da segurança, ainda
traumatizado, repetia o tempo todo: - este safado nunca foi doido. Estava o
tempo todo ao meu lado, me espreitando, planejando.
Hoje nós podemos dizer que El
Borrador foi, paulatinamente, preparando o cenário da caçada final, atiçando o
pretenso perseguidor, guiando os seus passos, disfarçando as próprias pegadas,
enquanto deixava uma trilha mal cheirosa. O caçador só soube que era a caça no
último instante, quando a armadilha que ele mesmo construíra se fechou e ele
encontrou o verdadeiro predador.
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