Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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sábado, 14 de janeiro de 2012

O que deu errado?

Um aspecto comum a todos países que adotaram o chamado socialismo real é a sua concepção sobre o papel do partido. Seguiu-se o modelo soviético: a classe operária só pode ter um partido e cabe a ele dirigir a revolução. Em Cuba, a criação do partido foi muito posterior à tomada do poder. No Leste Europeu, vários partidos coexistiram durante certo tempo. No final, todos convergiram para o modelo soviético.
Ao analisar a restauração do capitalismo na antiga União Soviética, trotsquistas e stalinistas convergem num ponto: houve uma degeneração do partido. Como isto foi possível? Eu iniciei minha militância escutando: o peixe apodrece pela cabeça, ou seja, a partir da direção.
E por que esta degeneração é possível? A resposta clássica é que, enquanto há luta de classes, a ideologia burguesa ou pequeno-burguesa penetra constantemente no partido. Como só a ideologia operária é capaz de conduzir o processo de construção do socialismo vitoriosamente, há um retrocesso inevitável.
As relações entre os partidos comunistas nunca aconteceram em pé de igualdade. Sempre houve um centro dirigente, um partido guia. Primeiro a União Soviética e depois, para alguns, o farol chinês e, em seguida, o farol albanês. A imagem é muito poderosa: o farol ilumina o caminho e ajuda a evitar os escolhos. Quem não o segue, corre o risco de naufragar. A luz do farol, é claro, é o pensamento do grande líder. Inicialmente, o grande timoneiro, Mao Tse-tung. Depois, Enver Hodja.
Para a AP e outros partidos da linha chinesa mais ortodoxa, o pensamento Mao-Tsetung era uma nova etapa do marxismo. Os poucos partidos que seguiram a Albânia colocavam Enver Hodja em uma posição mais modesta: houvera o marxismo e em seguida o leninismo, que era a teoria da revolução na época do imperialismo. Enver era “apenas” o maior marxista-leninista vivo. Mao nunca havia sido marxista. Era um revisionista.
Aqui começam a surgir algumas questões incômodas: como é que um país que não seguiu o farol corretamente pôde chegar ao porto seguro do socialismo? Como é que a China, guiada por revisionistas, pode ser considerada como um modelo, nos dias de hoje? Afinal, a degeneração, ou o apodrecimento do peixe, é por definição um processo irreversível.
Para se acomodar o socialismo de mercado adotou-se o ecletismo. Já não há mais farol. Existem diferentes caminhos para se chegar ao socialismo, levando em conta as características históricas e culturais de cada país.
Durante muito tempo, a China adotou a concepção de que havia sempre duas linhas em conflito dentro do Partido. Basicamente: a linha do proletariado e a linha da burguesia. Em 69, o sucessor nomeado de Mao, aclamado pelo IX Congresso, era Lin Piao. Em 71, ele era um renegado que havia conspirado com os revisionistas soviéticos.
Pode-se fazer a ginástica mental que se queira - não há como achar um fio condutor entre as trocas na liderança do partido chinês, com as sucessivas ascensões e quedas de Deng Chiao-Ping, que garanta a continuidade de uma linha proletária.
Sintomaticamente, nos países onde a continuidade política foi maior, adotou-se uma sucessão dinástica e familiar. É o caso emblemático da Coréia do Norte, que está no terceiro Kim da dinastia. Lá o filho mais velho, o delfim, teve que ser descartado.
Outros delfins, escolhidos por afinidade pessoal ou ideológica, tiveram destino pior do que o exílio. O avião de Lin Piao, com sua família, caiu ou foi abatido sobre a Mongólia. Na Albânia Mehmut Sehu, o sucessor de Enver suicidou-se (há boatos de que teria sido executado e até de que teria sido morto num duelo). A família foi devidamente encarcerada. Ismail Kadaré, o romancista albanês, abordou o tema em “A sucessão”.
Einstein foi o último grande físico clássico. A teoria da relatividade especial é uma tentativa de “salvar” o eletromagnetismo, integrando-o num só corpo teórico, com a mecânica clássica. Para fazer isto teve que abandonar o conceito de tempo absoluto. Talvez esteja na hora de salvar o socialismo, abandonando a concepção soviética de partido.
Neste ponto, a crítica à prática é fundamental. Em teoria, sempre se elogiou a direção colegiada, o papel da crítica e da auto-crítica e se negou a subordinação na relação entre os partidos.
Se não se praticou a democracia interna, muito pior foi a relação do partido com a sociedade. Criaram-se regimes monolíticos. O conceito de inimigo do povo foi introduzido para caracterizar qualquer atitude contrária à direção. Em uma matéria, só havia dois caminhos possíveis: o que levava à vitória da revolução e o dos inimigos do povo.
Há uma anedota que diz que na União Soviética a poesia era muito valorizada: lá se fuzilava por causa de um poema. A partir de um certa época, uma vez adotada uma posição pelo partido, era proibido continuar a defender a idéia contrária, mesmo seguindo a disciplina partidária. Era preciso abjurar o que se havia defendido. O simples fato de haver defendido uma posição condenada no passado era uma mancha que não podia ser apagada.
O que valia para o partido valia para toda a sociedade. A polícia política trabalhava com cotas de contra-revolucionários. Se a cota não era cumprida, era por falta de zelo revolucionário. Nos locais de trabalho e de moradia, todos se vigiavam. A delação foi institucionalizada e os piores elementos se apossaram dos postos de direção, já que apenas carreiristas sem princípios podiam se acomodar a esta situação. Não havia um sistema legal que fosse respeitado.
Este modelo levou o governo a substituir os sovietes, o partido a substituir o governo, o Comitê Central a substituir o partido, o Bureau Político a substituir o Comitê Central e, finalmente, o Secretário Geral a substituir a todos.
Ainda hoje, perduram uma série de ditaduras semelhantes, encobertas pelo rótulo do anti-imperialismo, ou mesmo do socialismo. Não dá para se defender uma alternativa socialista sendo solidário com estes regimes.
Respondendo à questão inicial, a causa da degeneração deve ser procurada nas próprias escolhas que foram feitas. O partido bolchevique escolheu governar sozinho -ao fazê-lo, acabou substituindo a iniciativa das massas e os organismos de democracia direta. Para abafar as críticas, sufocou a democracia interna - ao fazê-lo favoreceu os burocratas e os carreiristas. Os burocratas se tornaram indispensáveis para dirigir o país, criando um sistema que se auto-reproduzia. Este foi se tornando cada vez mais fechado e monolítico, exigindo um grau de repressão tal que eliminou todo resquício de legalidade. Num sistema em que não há a livre discussão e em que a iniciativa é desencorajada, se adota o voluntarismo. O tão falado planejamento era uma série de cifras adotadas arbitrariamente e que eram cumpridas apenas no papel.
Enquanto o país pôde crescer extensivamente, graças à utilização de enormes recursos naturais e da super-exploração da mão de obra, com investimentos maciços na indústria pesada e às custas de uma espoliação dos camponeses, o regime se manteve. O próprio inimigo externo serviu como cimento. O patriotismo foi adotado como fator de união nacional.
Quando o modelo se esgotou, houve a implosão. Muito antes, uma série de alternativas à direita foram testadas. O eurocomunismo acabou levando a social-democracia que hoje é apenas uma continuação do neo-liberalismo. O pragmatismo levou ao socialismo de mercado, que é o capitalismo sob a direção de um partido dito socialista. Nos partidos de esquerda que não estão no poder, adotou-se a tática eleitoral como centro. Isto tem levado ao surgimento de governos populistas, notadamente na América Latina.
Países que dependiam da antiga União Soviética para se sustentar economicamente, como Cuba, estão em passo acelerado para o capitalismo. De modo geral, embora o capitalismo esteja em crise profunda, não dá para apontar uma alternativa socialista viável. A solução é começar quase do zero. Há uma análise marxista da economia capitalista e de sua forma de exploração que pode servir de base para uma plataforma socialista. O resto está por fazer.

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