Capítulo 9 - O dia-a-dia dos futuros guerrilheiros
Como vimos, os militantes, quando chegavam à região, procuravam adotar uma cobertura legal: tornavam-se posseiros, pequenos comerciantes, dentistas, parteiras, mariscadores, etc. A maioria possuía uma roça, onde trabalhava.
Genoino descreveu em várias entrevistas o cotidiano dos futuros guerrilheiros. A maioria era composta de estudantes de classe média, acostumados à vida nas grandes cidades, a freqüentar festas, teatros, barzinhos, etc. Segundo ele, a primeira grande mudança era a disciplina rígida. Havia horário para tudo: para acordar, para fazer ginástica, para trabalhar na roça. O trabalho na roça servia para endurecer os músculos, calejar as mãos e dar resistência. Ao mesmo tempo, era um ponto de aproximação com a população.
Nesse primeiro contato, os militantes procuravam conhecer a linguagem, os usos e os costumes dos moradores. Era necessário aprender, por exemplo, que juquira era o trabalho na roça e que terecô era a macumba local. A conversa girava sobre as pragas, a falta de feijão, os grileiros, o arroz. Nas palavras de Genoino, era um contato simples e pequeno. Os moradores vinham visitar os forasteiros e estes retribuíam a visita.
“Tinha uma espécie de lei geral: “ouvir muito e falar pouco”. Não havia mesmo condições de discutir o que não se sabia. O nosso professor era exatamente o pessoal da região, maranhenses, baianos e muitos goianos.”[1] Grifos nossos.
A noite era reservada para ouvir no radinho Companheiro as transmissões internacionais: a BBC de Londres, a Rádio Tirana, da Albânia, a Voz da América e a Rádio Havana. As notícias do Brasil vinham através da Rádio Bandeirantes de São Paulo.
Em geral, moravam quatro ou cinco numa cabana. Havia um sistema de rodízio, de modo que cada um aprendia a cozinhar, lavar roupa, costurar e cuidar de outras tarefas. A criação incluía cães para a caça e a guarda da casa e burros para o transporte de mantimentos.
A sobrevivência num meio hostil exigia um longo aprendizado, que começava com o domínio da enxada, do facão, do machado e da foice. O desafio não era pequeno. Genoino conta que um companheiro rachou as mãos ao cortar lenha com um machado e ficou meses se recuperando. Era necessário saber caçar, atirar, correr no mato e nadar. O treinamento incluía: acostumar-se com as cobras, que eram abundantes; ser capaz de comer qualquer tipo de carne e de carregar pesos por longos períodos.
“No terreno político, a fase de pequenas conversas vai dar lugar a um relacionamento muito mais direto e integrado com a população: vamos trabalhar juntos, abrir picadas de uma casa para outra, fazer mutirão para trabalhar na roça. A gente era um deles!” [2] Grifos nossos.
Em meados de 71, começou a elaboração de um programa que abordava o problema de terra e propunha medidas para melhorar as condições de saúde e de educação da população local e combater a miséria – o programa da ULDP. [3]
“... esses 27 pontos sintetizam as reivindicações mais sentidas e imediatas do homem desta região. Incluem tudo que ele deseja e tem direito. Representam, contudo, o mínimo exigido por ele nas condições atuais. Por isso a ULDP considera que este é um programa em defesa dos pobres e pelo progresso do interior. Em torno dele se unirá o povo sofrido: os lavradores, os castanheiros, os vaqueiros, os garimpeiros, os peões, os barqueiros, os que trabalham na madeira e na quebra de babaçu, os pequenos e médios comerciantes, enfim, todos os que querem o progresso da região e a facilidade de seus habitantes.”
Genoino afirma que esse programa era discutido numa “conversa natural” nos mutirões. Ele foi elaborado, ponto por ponto, partindo das queixas escutadas nas novenas e nas festas em que os militantes participavam.
Há que se pesar com cuidado o que seria essa conversa natural. A maioria da população era analfabeta ou semi-analfabeta. Embora escrito numa linguagem simples, o texto era de difícil leitura para esses moradores. O programa, em sua introdução, afirma que “o interior somente poderá sair da situação atual quando se fizer uma revolução popular que liberte o Brasil de todos os obstáculos a seu progresso e se crie um governo realmente do povo.” Esse grau de elaboração política e de abstração estava fora do alcance dos moradores, naquele momento. E, pelas normas de conduta que os guerrilheiros adotavam nos contatos com a população, não poderia ser discutido abertamente e em profundidade. O próprio Genoino afirma:
“... A gente também levava em conta que não podia contar com o apoio político declarado da população, porque, se houvesse isso, a repressão vinha e nos pegava.” [4]
Nessas circunstâncias, essa conversa natural seria uma apresentação aos moradores, na linguagem local, da sistematização de seus problemas mais imediatos, com propostas de solução para cada um deles. O programa era muito amplo e suas bandeiras de luta poderiam ser adotadas pela população local.
Em 71, chegam os últimos militantes. O Destacamento B estava praticamente completo, cobrindo uma área de 20 km de frente por 20 km de fundo, da Palestina a São Geraldo. A partir daí, o treinamento militar vai ser feito de maneira mais sistemática.
“Em casa, tínhamos um programa que ia das 6 às 10 da noite.
A gente acorda às 6 em ponto. Fazia ginástica de características militares, exercícios para enrijecer os músculos. Era feita no terreno de casa, porque na área, das 6 as 7 e 30, não circula ninguém. Uma corrida, um pique, camuflagem, rastejamento, carregar peso, ficar com o braço estirado para adquirir resistência no pulso, carregar um companheiro imobilizado. Uma hora e meia de ginástica pesada. Era geralmente dirigida pelo Osvaldo, o comandante geral.
Cada grupo tinha um chefe. Tínhamos uma norma geral: ficar correndo durante uma hora sem parar dentro do mato. Como se morava às margens do Gameleira, tinha quase meia hora de natação. A gente atravessava o rio com peso nas costas.
Quando se ficava em casa, uns trabalhavam na roça ou apanhando arroz, de acordo com a programação – tinha banana, inhame e mandioca -, outros iam para o mato caçar. Ao mesmo tempo, treinamento de sobrevivência e resistência.
Então a gente ficava o dia inteiro na roça, e comia um prato que chamávamos de quebra-jejum. Ia para a roça, ficava até umas 6 horas, jantava e ficava à disposição do noticiário.
Quando se estava no mato era bem diferente. ... Ficávamos andando, caçando, reconhecendo grotas, tipo de vegetação, de morro. Ia até umas 4 da tarde, dormia até uma 5 e meia, no outro dia levantava acampamento – 5 e meia, 6 horas. ”[5]
Já é hora de apresentar, com maiores detalhes, um personagem que teve papel relevante no curso da guerrilha – a selva amazônica. Para o resto do Brasil, o que se conhece como floresta são uns poucos trechos de Mata Atlântica. Nada mais distante da vegetação da região. Em inglês, esse tipo de floresta é conhecido como “rain forest”, a floresta de chuva. De fato, na Amazônia chove torrencialmente durante quase a metade do ano - é o chamado inverno. A outra estação, o verão, é a estação seca. Segundo um paraense, durante o inverno, chove o dia todo; no verão, chove todo dia. As duas estações são muito quentes.
Em conseqüência dessa umidade abafada, roupa, armamentos, medicamentos, víveres, tudo se deteriora. Para se proteger da chuva, um pedaço de lona era item obrigatório no equipamento dos guerrilheiros. Abrigados, ainda corriam o risco, sempre presente, do desabamento das árvores mais velhas.
As árvores atingem alturas de até 40 metros , com copas muito próximas entre si. Do alto, é praticamente impossível se enxergar o que passa no nível do chão, o que torna a aviação inútil como arma de ataque. Por outro lado, quem está em baixo mal enxerga a luz do sol. No interior da mata, as horas de claridade são poucas.
Genoino conta que Osvaldão costumava levá-lo para dentro da mata, a algumas centenas de metros do barracão onde moravam. O desafio era encontrar o caminho de volta. Sozinho, era uma tarefa impossível. Mesmo para quem sabia se orientar, o deslocamento na selva era muito lento. Marchando o dia todo, os guerrilheiros conseguiam percorrer, no máximo, uns 12 km . A alternativa eram as trilhas e picadas (piques e piseiros, na linguagem local), onde sempre havia o risco de uma emboscada.
Como a visibilidade dentro da mata é muito pequena, o olfato e a audição jogam um papel muito importante. Uma peculiaridade dessa floresta é que a disposição das árvores cria um efeito de amplificação dos ruídos. Os cocos que abundam na região, para serem comidos, precisam ser quebrados ou ralados. Foi esse barulho que muitas vezes denunciou os guerrilheiros. O fogo pode ser detectado de longe, pelos mateiros mais experientes, ou até mesmo avistado por um avião de patrulha. Tudo isso fazia da alimentação de um destacamento de guerrilheiros um sério problema.
A selva dá uma falsa idéia de abundância. Entretanto, como a caça com armas de fogo era muito arriscada, havia poucas alternativas além da coleta de frutos. Abordando o tema, João Amazonas disse que se deveria erguer um monumento ao jaboti. Pelas suas características, ele era um elemento constante na dieta dos guerrilheiros. É uma caça muito nutritiva, que pode ser apanhada com as mãos e fácil de se guardar: bastava colocá-lo numa forquilha, para ser recolhido mais tarde.
Na mata se convive o tempo todo com cobras e mosquitos. Esses últimos eram até mais temíveis, porque transmitiam a malária e a leishmaniose. Outras espécies produziam picadas muito dolorosas, que às vezes infeccionavam.
Na difícil tarefa de se adaptar a essas duras condições, Zezinho e Osvaldão foram os que mais se destacaram. Alguns guerrilheiros nunca o conseguiram. Os recrutas do exército enviados para as primeiras campanhas fizeram um papel lamentável. Houve deserções, suicídio e muitos ficaram com seqüelas psicológicas permanentes. Só nas últimas campanhas, com tropas especializadas e a ajuda maciça dos mateiros, é que os militares conseguiram superar o meio adverso.
Poucos caboclos, além dos índios Suruís, que tinham uma aldeia nas proximidades do Destacamento A, se sentiam em casa na selva. O simples ato de andar na floresta é uma ciência complexa. O depoimento de um morador, que serviu como mateiro do exército, dá uma idéia da difícil arte de interpretar os vestígios deixados na mata:
“No caso das pegadas, ele observava se uma minúscula teia de aranha tinha se formado no chão marcado pelo autor da pegada. Aquele tipo de sinal levava 24 horas para aparecer e permitia o diagnóstico preciso.
Com os ramos na beira dos caminhos, acontecia algo semelhante. Depois que a pessoa passava, pequenos mosquitos pousavam nas folhas. A quantidade de mosquitos definia quanto tempo antes o mato tinha sido tocado. O mateiro achava que os insetos se alimentavam do suor deixado por quem esbarrava nas folhas. ”[6]
Quando as ações começaram, cada grupo de guerrilheiros tinha seus especialistas em apagar rastros e camuflar acampamentos. Provavelmente, eles nunca foram páreo para os mateiros que haviam passado toda a vida na região. Um oficial do exército, avaliando as dificuldades do combate na selva, foi taxativo: “Se você soltasse um vietcong aqui, ele não duraria uma semana.”
Não podemos ignorar que o Destacamento de Genoino operava numa área de densidade populacional mais baixa, onde a mata era mais bem fechada. Isso permitia que eles tivessem um programa de treinamento militar mais formal, com horários rígidos e exercícios. Já dia-a-dia do destacamento A era diferente. Como havia um contato social muito intenso com os moradores, eles tinham que estar sempre prontos para receber alguém, sendo impossível cumprir uma rotina de treinamentos como a do destacamento B.
Segundo Criméia, o treinamento básico era o de sobrevivência. As próprias atividades comuns na região serviam para prepará-los fisicamente. Quando moravam nas margens do Araguaia, nadavam sempre. Os mantimentos deviam ser carregados nas costas, pois não havia serviço de entrega. Para ir visitar um morador, era preciso fazer uma marcha de alguns quilômetros. Para se locomover pelos rios, era preciso remar.
Finalmente, se aprendia a atirar caçando. O uso de armas era obrigatório na região e muitas vezes os moradores disputavam entre si, quem tinha a melhor pontaria. A fama de boa atiradora que Criméia adquiriu provinha dessas disputas. O seu primeiro tiro foi um êxito total: acertou um coquinho com um 38. Ela fez a mira, apoiou o braço com a mão no cotovelo, para evitar o coice, fechou os olhos e acertou o alvo em cheio! O fato de ter um pulso bem firme pode ter sido a razão desse êxito.
O armamento era muito precário - os fuzis eram de 1918! Quando andavam na mata, os guerrilheiros evitavam colocar a bala na câmara, porque havia o risco de a arma se enganchar em algum cipó, ocasionando um disparo acidental (a bala fica presa por um ferrolho, que tem uma trava de segurança). Quando o fuzil era armado muito depressa, era comum o ferrolho se soltar na mão do atirador. Foi o que aconteceu uma vez com Criméia, impedindo que ela abatesse uma anta, uma caça muito valiosa pelo sabor e pela quantidade de carne.
Criméia esclarece que, embora a maioria dos moradores fosse analfabeta e sem uma formação política maior, há que se relativizar a afirmação de Genoino sobre a ausência de discussão política. Mesmo antes da chegada dos guerrilheiros, era costume na região se escutar as rádios de ondas curtas: BBC, Voz da América, Tirana, Havana, etc. Eles sabiam da existência de uma grande guerra, a do Vietnã. Estavam informados sobre o que acontecia no mundo, ainda que pouco soubessem sobre o que acontecia no resto do Brasil. Talvez não tivessem a formação adequada para interpretar essas informações. Em relação ao nosso país, por exemplo, tinham horror a ditadura de Getúlio!
Os guerrilheiros não contavam com instalações de rádio, como as que o exército alegou ter encontrado na Faveira. Havia sim alguns walk-talkies que nunca funcionaram na mata. O máximo que se conseguia era comunicar da Faveira com o barco do Joca. O próprio exército se queixou desse problema e foi obrigado a usar os transmissores de rádio das grandes fazendas ou empresas.
Um dos pontos do programa da ULDP se referia à cobrança de impostos. Os moradores só viam o governo extorquindo suas economias e não sentiam o retorno. “Onde o governo está enfiando o meu porquinho?” – era um comentário típico. Em Ponta de Pedra, a professora era cega de um olho e semi-analfabeta. Era a ilustração perfeita do dito popular sobre a terra dos cegos.
Criméia conta que a cobrança era feita por um barco, “o barco da coletora”, que percorria o Rio Araguaia, com uma bandeira do Brasil hasteada na proa. Era conhecido também como o barco dos três poderes, porque carregava uma mulher, a coletora, o delegado de polícia e um representante do prefeito.
Os moradores costumavam vender seus produtos em Goiás, do outro lado do rio, onde obtinham um preço melhor. Quando a coletora abordava um desses barcos, aprendia toda a mercadoria, que naturalmente não estava acobertada por nota fiscal e nem havia recolhido o ICMS.
A PM, quando recebia comunicação de alguma briga ou conflito, prendia o morador que considerava culpado e o deixava amarrado a uma árvore, esperando a volta do barco dos três poderes, para conduzir o preso. O município mais próximo era São João do Araguaia, uma cidade centenária, com um forte muito antigo. Ela ficava sobre a linha do Tratado de Tordesilhas, que dividia as possessões de Espanha e de Portugal.
Embora a população estivesse muito dispersa, havia uma rede de comunicação natural, cujos nós eram as corrutelas. Quem passava por um desses povoados dava e recebia notícias dos parentes e conhecidos. Os forasteiros que chegavam à região, quase sempre estavam fugindo de algo. Ora era um posseiro expulso de sua terra, ora um capanga foragido da polícia. A grilagem estava começando, assim como a expansão do latifúndio, que era totalmente improdutivo. Os fazendeiros usavam o gado simplesmente para se apossarem de novas terras. A tática era colocá-lo na divisa, para justificar a anexação de novas áreas de pasto.
Com a Belém Brasília e a chegada do Incra, que começou a cadastrar as terras, os moradores começaram a ter receio de serem expulsos. As profecias do Padim Padre Cícero sobre o fim dos tempos eram levadas muito a sério. Uma delas dizia que o mar iria virar sertão e o sertão virar mar. No fim dos tempos, não se poderia confiar em ninguém - o pai não poderia confiar nem mesmo no próprio filho. Por isso, faziam depósitos em que guardavam mantimentos, sem contar a ninguém da família. A bandeira da salvação era verde, que eles interpretavam como sendo a mata. Na manobra de 70 que o Exército realizou, houve o lançamento de napalm no Rio Tocantins. A imagem da água pegando fogo calou profundamente nos moradores e reforçou a idéia de que o fim do mundo estava próximo.
[1] Guerrilha do Araguaia, História Imediata, p.34
[2] Guerrilha do Araguaia. História Imediata p. 35
[3] União pelas Liberdades e Direitos do Povo, organização de massa criada pelo partido. Possuía inúmeros núcleos e era o braço político da guerrilha. O programa vem ao final do livro, como anexo.
[4] Guerrilha do Araguaia. História Imediata, p. 36.
[5] A Guerrilha do Araguaia , História Imediata, p. 37.
[6] Operação Araguaia, p. 495
Nenhum comentário:
Postar um comentário