Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Todo gatinho é um poeta


Veja o vídeo nesse link:
Poesia




Todo gatinho é um poeta

Perseguindo um borboletema

Um fulgurante

Extravagante

Borbulhante

Poema



Um salto improvável

No hiperespaço

Num imponderável contrapé

No contratempo do compasso



A presa destroçada

A fugitiva borboleta

Agarrada

Despojada de seu brilho

Depois deixada

Na cama dum dono indiferente

A poesia



sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Discussões éticas

Calidoscópio


Festa na mansão do banqueiro Roberto Magalhães. Hora do presente. O pai, todo orgulhoso, entra de braço dado com uma louraça, a famosa Sunny Mexerica. No fim do decote da moça, pendurado num colar, a chave do Porsche vermelho que espera o herdeiro de dezoito aninhos, lá fora, na garagem.

- Pô, véio.... – o garoto não tem palavras.

- É tudo seu. Você vai adorar esta máquina... – eu mesmo já dei uma amaciada.O sorriso do pai é irresistível – os três riem. A vida é bela.



No barraco da Sunta, começa mais um dia. É dia de branco, como diz o Zezão. Dia de trampo. Para ela, que rala como gari, porque ele mesmo não faz nada. Minto. Passa o dia bolinando a enteada, que já está quase cedendo.

Enquanto passa o café, a menina se estica na ponta dos pés para vigiar a mãe se lavando, pela janela da cozinha. O tanque fica do lado de fora, o que dá a chance do Zezão segurar os peitinhos da garota. Sunta só pensa no fim do mês que não chega, no aumento que não vem. A vida é longa.



Na suíte presidencial do motel, o filho do banqueiro contempla o avião que está pousado na cama redonda. Cochicha alguma coisa no ouvido da Sunny.

- Isto não está incluído – ela ri, encorajando a insistência.

A negociação é breve. A cama é logo sacudida pelos arrancos do rapaz e pelos gemidos da moça, que agora não são tão fingidos como antes.

Sunny guarda o cheque na bolsa, enquanto, pelo celular, Dudu vai contando os detalhes para os amigos. A vida é dura.



O cheque e a Sunta acabam se encontrando, num meio fio. A moça, coitadinha, era tão distraída que não notou que ele caíra da bolsinha, na saída da loja. Atrás, estava anotado o telefone do Dudu. A ligação para o celular custou os últimos trocados da Sunta. Ainda bem que o garoto disse que pagava o táxi. O motorista só aceitou a corrida quando viu o valor do cheque. Quem atendeu foi o banqueiro, que dispensou a pobre, com uns trocados e um muito obrigado.

- Filho, precisamos ter uma discussão sobre ética. O cheque era ao portador e foi extraviado. Teoricamente, você não deve nada para a Sunny. O que você vai fazer? A vida é complicada.



O taxista ficou tão impressionado com a honestidade da Sunta, que acionou um amigo jornalista. No outro dia, a pobre foi foto de primeira página. A sorte do Dudu foi que ele havia ligado para a Sunny, dizendo que o cheque estava esperando por ela, na mesma suíte. Os sólidos princípios morais do pai haviam prevalecido.

- Obrigada, você é um cara legal, foi muito honesto. Semana que vem a gente repete. Por conta da casa...

Pena que todos os que olhavam para a cara da Sunta, sorrindo meio de banda, para esconder a janelinha nos dentes amarelos, só comentavam:

- Que idiota.

Um coroa, com cara de esperto, falava no meio de uma rodinha:

- O cheque não estava nem cruzado. Se não tivesse peito para descontar era só vender pros malandros. Logo ali, na esquina dos aflitos, tem quem compre. Pobre é burro mesmo. A vida é surpreendente.



Alguns dias depois, o Presidente recebia a Sunta no palanque. A cara estava cheia de rouge, para disfarçar a bifa que havia tomado do Zezão, quando ele soube da merreca que ela havia recebido para devolver o cheque.

- Se cada brasileiro fosse como esta mulher, este país seria diferente. É por isso que eu digo, nós não devemos nunca perder a esperança. A minha mãe....

A Sunta nem escutava. Ia repetindo consigo mesma que a vida era muito boa e que valia a pena ser honesto.

- Tomara que o Zezão esteja me vendo agora – pensou ela.

O Zezão não estava vendo nada. A televisão só estava ligada para disfarçar os gritos que enchiam o barraco. E não é que a enteada era cabaço? A vida é isso aí.





sábado, 12 de dezembro de 2009

Sublimação


Pipas, Portinari 1941

Sublimação

Os papagaios lá no céu
São amantes
Arrebatados pelo vento
Sobem aos trancos, desembestados
Depois pairam, saciados
Eu também fui assim
Veio alguém e me cortou

Marco Lisboa

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Crônica escrota

A crônica, por definição, já nasce meio anacrônica. Essa, por exemplo, foi escrita no auge de um daqueles escândalos habituais do governo Lula, no momento em que ele foi à televisão dizer que não havia ninguém mais ético do que ele.
Nesse momento, o escândalo da moda é o mensalão de Brasília. Dizem que a caixa da operação Pandora foi aberta para abafar denúncias ligadas a familiares do Presidente. Escândalo vai, escândalo vem, a crônica ganha nova atualidade.
Ética espartana



- Venha aqui, você precisa escutar essa. Era a mulher, que me chamava para ouvir o nosso Presidente na tevê. Devia ser daquelas cabeludas, porque ela sabe que eu não tenho paciência para vê-lo. Nem mesmo ouvi-lo, para ser sincero.

- Nunca, antes na história desse país, a coisa pública foi maltratada com tanta ética – dizia o nosso bouquirrouco presidente.

- Era só isso – disse impaciente. – Não, tem mais – disse ela. Com o nosso desdigitado presidente, sempre tem mais.

- No Brasil todos são inocentes, mesmo com prova em contrário. Os únicos inocentes propriamente ditos são os meus eleitores, que, na intimidade com a galega, eu chamo de inocentes úteis.

Não, ele não disse isso. É que, depois de tanto tempo observando a política dessa terra, fiquei extremamente versado em politiquês. À medida que vou escutando, o meu cérebro já processa diretamente a tradução.

Gostaria de aduzir algumas obtemperações à fala do trono. Depois que a biblioteca presidencial pegou fogo, eu só uso esse português rebarbativo em minhas crônicas. Assim não corro o risco dele me entender. A biblioteca era uma das sete maravilhas do mundo moderno. Nunca, antes na história da humanidade, houve uma biblioteca menor. Mesmo assim pegou fogo. A de Alexandria pegou, com seus milhares de pergaminhos, por que os dois livros (um de colorir e uma história em quadrinhos) não pegariam?

Não existe ninguém mais ético que ninguém, meu presidente. A lei, como Vossa Excelência não sabe, é um sistema coercitivo que é imposto pela sociedade aos seus membros. A ética, ao contrário, é um sistema moral que é adotado espontaneamente. O que existe é alguém que rouba mais que os outros. Esse é um critério objetivo: os valores são traduzíveis em moeda escorrente; as penas, que não serão cumpridas em celas especiais, podem ser comparadas.

Ia até me aprofundar nessas considerações, quando me veio uma revelação. O nosso presidente é mesmo muito mais ético do que eu. Ocorre que ele escolheu a ética espartana.

Explico. Em Esparta, para reforçar as virtudes militares, os jovens eram largados meio famintos no planalto, ou mesmo na esplanada. Tinham que sobreviver com o que conseguiam roubar. Tudo isso dentro da mais perfeita ética. Havia, porém, um detalhe: aquele que fosse pego roubando era considerado um canalha da pior espécie.

Conta a lenda que um jovem espartano roubou uma raposa. O dono quase o surpreendeu e ele foi obrigado a escondê-la dentro da túnica. O animal começou a devorar os seus intestinos, mas ele preferiu essa morte dolorosa à desonra.

Aqui no Brasil, os petistas famintos também foram abandonados nos cargos de primeiro e segundo escalão, para testar as suas virtudes militantes. Em algumas dessas repartições, só sobrou mesmo a raposa no galinheiro. O problema é que, quando um deles resolveu guardá-la na cueca, o berro foi ouvido até na Praça Vermelha.

Os espartanos tinham outras virtudes. Foram eles, comandados pelo Rei Leônidas, que detiveram os persas, uma espécie de tucanos da época. Aliás, sempre que alguém denuncia os crimes petistas (eles só podem ser acusados de infringirem a lei, já que, eticamente falando, são espartanos) é chamado pejorativamente de tucano. Embora, para todos os malfeitos práticos, os persas e os espartanos sejam muito parecidos, o povo continua confiando no nosso presidente. Para eles, tudo isso é grego.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Capítulo 3 - continuação

Feliz 1972!


Logo depois chegaram Ciro Flávio (Flávio) e Paulo (Amaury). Os dois vinham de Palestina, onde, por um ano, Amaury manteve uma farmácia. Em seguida, vieram Michéas (Zezinho) e Manoel Nurchis (Gil). Pela experiência de mata que revelaram, os dois já deviam estar na região há mais tempo. O que os seus companheiros ignoravam é que ambos haviam estado no curso da Academia Militar de Nanquim.

Suely foi a primeira mulher a chegar. Ela ficou na casa onde moravam Osvaldão, Geraldo e Glênio. O inverno, como é chamada a estação das chuvas, vai até maio, depois começa a época do plantio das roças. Foi durante o inverno de 71 que chegaram os últimos militantes. Os “goianos”, que foram apresentados para os camponeses como amigos de Osvaldão, ficaram numa casa. Eram dois casais: Vandick (João Goiano) e Dinaelza (Mariadina), Telma (Lia) e Elmo (Lourival) e Cilon (Simão).

Próximo ao Gameleirinha, um afluente do Rio Gameleira, ficaram, Luíza Garlippe (Tuca) e Pedro Alexandrino (Peri), mais um casal, e José Maurílio (Mané). Essa região, entre o Rio Gameleira e a Serra das Andorinhas, fica próxima a Santa Cruz, onde Amaury se estabeleceu com uma farmácia.

Walquíria (Walk) e Idalísio (Aparício) foram morar no Castanhal do Ferreira. Para lá também se dirigiram Antônio Teodoro (Raul) e Manoel Nurchis (Gil), que chegaram a trabalhar com Amaury em Santa Cruz.

Os dois militantes que iriam completar o Destacamento nunca chegaram. Essa era a formação inicial do Destacamento B, o destacamento de Osvaldão, que na opinião dos militares, era o mais bem preparado:

Comandante: Osvaldão - Vice-comandante Bronca

Grupo de Gameleiras (Região de Santa Cruz): Genoino (comandante) e Amauri (subcomandante) , Glênio, Suely, Tuca, Peri e Mané.

Castanhal do Alexandre : Zé Ferreira  (comandante) e Flávio (subcomandante), Walk, Idalísio, Raul e Gil.

Couro D'antas: Zezinho (comandante), Wandick, Simão, Lourival, Mariadina e Lia                

A área do Castanhal do Alexandre, também era conhecida como Castanhal do Zé Ferreira. Esse grupo, assim como o que atuava perto de Couro D'antas estava incompleto.
A formação do Destacamento B nos permite deduzir como foi feita a colocação dos militantes no Araguaia. Primeiro vieram os futuros comandantes e vice-comandantes de destacamento (Osvaldão em 66 e Bronca em 69, no caso do Destacamento B) e os membros da Comissão Militar (entre 67 e 68 chegaram: Maurício Grabois (Mario), Líbero (Joca), João Amazonas (Cid), Ângelo Arroyo (Joaquim), João Carlos Haas (Dr. Juca) e Elza Monnerat (Dª. Maria)).

Na região, era comum a chegada de forasteiros e a vinda de mais militantes não chamou a atenção. Os mais velhos recepcionavam os novatos, que eram apresentados como parentes ou amigos. Todos tinham uma cobertura legal, vivendo e trabalhando como os moradores nativos. O local onde faziam roça e erguiam sua moradia era chamado de ponto de apoio (PA).

O modo como Amaury se instalou na área é típico. Como farmacêutico, tinha grande contato com a população, facilidade em colher informações e, ao mesmo tempo, podia abastecer de remédios os futuros guerrilheiros. Como o objetivo principal não era obter lucro, ele podia fornecer os medicamentos a preços justos, vender fiado e tratar de graça os mais carentes.

Algumas militantes assumiram o papel de parteiras ou de professoras, outros abriram bodegas, sempre com objetivos similares. Quando começaram as hostilidades, os guerrilheiros eram bem quistos pela população, que os via como gente séria e respeitadora. Eram padrinhos de várias crianças e estavam integrados na vida social dos lugarejos.

1972 era considerado um ano decisivo pela direção do partido. Nesse ano se esperava concluir a formação dos destacamentos e completar o treinamento militar. A deflagração da guerra popular seria o próximo passo. A passagem de ano de 71 para 72 foi comemorada no Castanhal do Zé Ferreira em grande estilo. Segundo o relato de Glênio:

“A programação começou logo cedo com a preparação de uma emboscada simulada, no caminho que ia para a nossa casa no Gameleira. O local tinha chamado a atenção de nosso comandante. O resultado dessa emboscada foi um veado mateiro morto por Osvaldão para a nossa festa, que ia ter também polenta, feijão, arroz, carne seca, caititu, palmito de babaçu e muito leite de castanha-do-pará. Entramos no local da festa, o Osvaldão na frente com o mateiro sobre os ombros, em fila indiana, cantando a Internacional. Foi emocionante. Tio Cid [João Amazonas] quando ouviu o hino dos proletários saindo de dentro da floresta cantado por um bando de homens armados virou um menino traquinas, saltando no terreiro da casa.

Nesse dia tivemos de tudo: jogo de vôlei, música, poesias e teatro. De bebida, a semberaba de bacaba* , regando aquela comilança. A noite estava enluarada.”
*Refrigerante típico da região, feito com farinha e o fruto da bacaba
Segundo Genoino:

“... Cada um [dos três grupos] preparou um teatrinho. O nosso fez uma espécie de jogral mostrando o roteiro da nossa vida desde que a gente saiu da cidade. Colocávamos as dúvidas: deixar a família, a Universidade, a cidade, até a decisão; as primeiras impressões no mato, as primeiras mancadas, a gente pisando em ovos e a fase de domínio da região.

Outro grupo fez um jogral tipo literatura de cordel, com o programa dos 27 pontos, e o outro apresentou como era a vida na mata. Uma alegria geral. Teve muita cantoria, emboladas, o Idalísio tocava violão. A gente caçou carne, catou fruta e o arroz de nossa roça. Cantamos “Apesar de Você”, “Viola enluarada”..., músicas que tinham relação com nossa vida de estudante.”

Cinco minutos para meia-noite, os futuros guerrilheiros se perfilaram e saudaram a chegada de 72 com uma salva de tiros.

sábado, 5 de dezembro de 2009

O menino do Rio

A entrevista de César Benjamim alcançou grande repercussão e provocou alguns depoimentos esclarecedores. O cineasta Sílvio Tendler afirmou que a reunião e a conversa aconteceram e que o Presidente estava brincando. José Maria de Almeida, dirigente do PSTU, preso com Lula naquela ocasião, disse que o fato como foi denunciado não ocorreu.


Dando ao autor da entrevista o benefício da dúvida, ele acreditou que uma brincadeira era verdade. Mesmo assim, sua atitude ao divulgá-la é discutível. A alegação de que pretendia fazer uma "reflexão sobre a complexidade da condição humana" é de uma ingenuidade suspeita. Como militante político, ele não pode ignorar que a entrevista, assim como o filme, farão parte da campanha eleitoral ora em curso.

Como não somos adeptos do politicamente correto, não deixaremos de publicar as notícias atuais que considerarmos relevantes. Cabe a vocês a palavra final. O realismo socialista partia da concepção de que a classe operária não podia ser contaminada com as perversões típicas da burguesia. Os idiotas modernos continuam tratando o resto da humanidade como idiotas, sem maturidade suficiente para enfrentarem a realidade, que só deve ser mostrada em seus aspectos mais edificantes e construtivos.

Uma coisa é o papel histórico que a classe operária possa ter, outra coisa é o perfil real da classe operária brasileira. Zé Maria afirmou que aquele tipo de brincadeira era comum entre os operários. César reagiu como reagiria um típico burguesinho da Zona Sul. De qualquer maneira, mesmo supondo verdadeiro o fato, o governo Lula não deve ser avaliado a partir dessa dimensão ética ou estética.

Paosolini escreveu um célebre poema, em pleno 68, defendendo os jovens policiais, camponeses arrancados das províncias para combaterem os estudantes, dentre os quais estava a fina flor da burguesia romana. Morreu defendendo o papel revolucionário do lumpen-proletariado, que coincidentemente é exaltado na entrevista.

César afirma que se afastou do Presidente após a conversa sobre o menino do MEP. Eu deixei de votar em Lula depois da Carta aos Brasileiros. Há motivos suficientes para se avaliar politicamente o atual governo, sem precisarmos recorrer às denúncias do menino do Rio.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O menino do MEP

A entrevista de César Benjamim à Folha de São Paulo está dando o que falar. Ei-la na íntegra:

Os filhos do Brasil

César Benjamin

A PRISÃO na Polícia do Exército da Vila Militar, em setembro de 1971, era especialmente ruim: eu ficava nu em uma cela tão pequena que só conseguia me recostar no chão de ladrilhos usando a diagonal. A cela era nua também, sem nada, a menos de um buraco no chão que os militares chamavam de "boi"; a única água disponível era a da descarga do "boi". Permanecia em pé durante as noites, em inúteis tentativas de espantar o frio. Comia com as mãos. Tinha 17 anos de idade.

Um dia a equipe de plantão abriu a porta de bom humor. Conduziram-me por dois corredores e colocaram-me em uma cela maior onde estavam três criminosos comuns, Caveirinha, Português e Nelson, incentivados ali mesmo a me usar como bem entendessem. Os três, porém, foram gentis e solidários comigo. Ofereceram-me logo um lençol, com o qual me cobri, passando a usá-lo nos dias seguintes como uma toga troncha de senador romano.

Oriundos de São Paulo, Caveirinha e Português disseram-me que "estavam pedidos" pelo delegado Sérgio Fleury, que provavelmente iria matá-los. Nelson, um mulato escuro, passava o tempo cantando Beatles, fingindo que sabia inglês e pedindo nossa opinião sobre suas caprichadas interpretações. Repetia uma ideia, pensando alto: "O Brasil não dá mais. Aqui só tem gente esperta. Quando sair dessa, vou para o Senegal. Vou ser rei do Senegal".

Voltei para a solitária alguns dias depois. Ainda não sabia que começava então um longo período que me levou ao limite.

Vegetei em silêncio, sem contato humano, vendo só quatro paredes - "sobrevivendo a mim mesmo como um fósforo frio", para lembrar Fernando Pessoa- durante três anos e meio, em diferentes quartéis, sem saber o que acontecia fora das celas. Até que, num fim de tarde, abriram a porta e colocaram-me em um camburão. Eu estava sendo transferido para fora da Vila Militar. A caçamba do carro era dividida ao meio por uma chapa de ferro, de modo que duas pessoas podiam ser conduzidas sem que conseguissem se ver. A vedação, porém, não era completa. Por uma fresta de alguns centímetros, no canto inferior à minha direita, apareceram dedos que, pelo tato, percebi serem femininos.

Fiquei muito perturbado (preso vive de coisas pequenas). Há anos eu não via, muito menos tocava, uma mulher. Fui desembarcado em um dos presídios do complexo penitenciário de Bangu, para presos comuns, e colocado na galeria F, "de alta periculosia", como se dizia por lá. Havia 30 a 40 homens, sem superlotação, e três eram travestis, a Monique, a Neguinha e a Eva. Revivi o pesadelo de sofrer uma curra, mas, mais uma vez, nada ocorreu. Era Carnaval, e a direção do presídio, excepcionalmente, permitira a entrada de uma televisão para que os detentos pudessem assistir ao desfile.

Estavam todos ocupados, torcendo por suas escolas. Pude então, nessa noite, ter uma longa conversa com as lideranças do novo lugar: Sapo Lee, Sabichão, Neguinho Dois, Formigão, Ari dos Macacos (ou Ari Navalhada, por causa de uma imensa cicatriz que trazia no rosto) e Chinês. Quando o dia amanheceu éramos quase amigos, o que não impediu que, durante algum tempo, eu fosse submetido à tradicional série de "provas de fogo", situações armadas para testar a firmeza de cada novato.

Quando fui rebatizado, estava aceito. Passei a ser o Devagar. Aos poucos, aprendi a "língua de congo", o dialeto que os presos usam entre si para não serem entendidos pelos estranhos ao grupo.

Com a entrada de um novo diretor, mais liberal, consegui reativar as salas de aula do presídio para turmas de primeiro e de segundo grau. Além de dezenas de presos, de todas as galerias, guardas penitenciários e até o chefe de segurança se inscreveram para tentar um diploma do supletivo. Era o que eu faria, também: clandestino desde os 14 anos, preso desde os 17, já estava com 22 e não tinha o segundo grau. Tornei-me o professor de todas as matérias, mas faria as provas junto com eles.

Passei assim a maior parte dos quase dois anos que fiquei em Bangu. Nos intervalos das aulas, traduzia livros para mim mesmo, para aprender línguas, e escrevia petições para advogados dos presos ou cartas de amor que eles enviavam para namoradas reais, supostas ou apenas desejadas, algumas das quais presas no Talavera Bruce, ali ao lado. Quanto mais melosas, melhor.

Como não havia sido levado a julgamento, por causa da menoridade na época da prisão, não cumpria nenhuma pena específica. Por isso era mantido nesse confinamento semiclandestino, segregado dos demais presos políticos. Ignorava quanto tempo ainda permaneceria nessa situação.

Lembro-me com emoção -toda essa trajetória me emociona, a ponto de eu nunca tê-la compartilhado- do dia em que circulou a notícia de que eu seria transferido. Recebi dezenas de catataus, de todas as galerias, trazidos pelos próprios guardas. Catatau, em língua de congo, é uma espécie de bilhete de apresentação em que o signatário afiança a seus conhecidos que o portador é "sujeito-homem" e deve ser ajudado nos outros presídios por onde passar.

Alguns presos propuseram-se a organizar uma rebelião, temendo que a transferência fosse parte de um plano contra a minha vida. A essa altura, já haviam compreendido há muito quem eu era e o que era uma ditadura.

Eu os tranquilizei: na Frei Caneca, para onde iria, estavam os meus antigos companheiros de militância, que reencontraria tantos anos depois. Descumprindo o regulamento, os guardas permitiram que eu entrasse em todas as galerias para me despedir afetuosamente de alunos e amigos. O Devagar ia embora.

São Paulo, 1994. Eu estava na casa que servia para a produção dos programas de televisão da campanha de Lula. Com o Plano Real, Fernando Henrique passara à frente, dificultando e confundindo a nossa campanha.

Nesse contexto, deixei trabalho e família no Rio e me instalei na produtora de TV, dormindo em um sofá, para tentar ajudar. Lá pelas tantas, recebi um presente de grego: um grupo de apoiadores trouxe dos Estados Unidos um renomado marqueteiro, cujo nome esqueci. Lula gravava os programas, mais ou menos, duas vezes por semana, de modo que convivi com o americano durante alguns dias sem que ele houvesse ainda visto o candidato.

Dizia-me da importância do primeiro encontro, em que tentaria formatar a psicologia de Lula, saber o que lhe passava na alma, quem era ele, conhecer suas opiniões sobre o Brasil e o momento da campanha, para então propor uma estratégia. Para mim, nada disso fazia sentido, mas eu não queria tratá-lo mal. O primeiro encontro foi no refeitório, durante um almoço.

Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o publicitário Paulo de Tarso em frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de Lula) e outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo nome também esqueci. Lula puxou conversa: "Você esteve preso, não é Cesinha?" "Estive." "Quanto tempo?" "Alguns anos...", desconversei (raramente falo nesse assunto). Lula continuou: "Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta".

Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido. Chamava-o de "menino do MEP", em referência a uma organização de esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do "menino", que frustrara a investida com cotoveladas e socos.

Foi um dos momentos mais kafkianos que vivi. Enquanto ouvia a narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia ter sido, digamos assim, o "menino do MEP" nas mãos de criminosos comuns considerados perigosos, condenados a penas longas, que, não obstante essas condições, sempre me respeitaram.

O marqueteiro americano me cutucava, impaciente, para que eu traduzisse o que Lula falava, dada a importância do primeiro encontro. Eu não sabia o que fazer. Não podia lhe dizer o que estava ouvindo. Depois do almoço, desconversei: Lula só havia dito generalidades sem importância. O americano achou que eu estava boicotando o seu trabalho. Ficou bravo e, felizmente, desapareceu.

Dias depois de ter retornado para a solitária, ainda na PE da Vila Militar, alguém empurrou por baixo da porta um exemplar do jornal "O Dia". A matéria da primeira página, com direito a manchete principal, anunciava que Caveirinha e Português haviam sido localizados no bairro do Rio Comprido por uma equipe do delegado Fleury e mortos depois de intensa perseguição e tiroteio. Consumara-se o assassinato que eles haviam antevisto.

Nelson, que amava os Beatles, não conseguiu ser o rei do Senegal: transferido para o presídio de Água Santa, liderou uma greve de fome contra os espancamentos de presos e perseverou nela até morrer de inanição, cerca de 60 dias depois. Seu pai, guarda penitenciário, servia naquela unidade.

Neguinho Dois também morreu na prisão. Sapo Lee foi transferido para a Ilha Grande; perdi sua pista quando o presídio de lá foi desativado. Chinês foi solto e conseguiu ser contratado por uma empreiteira que o enviaria para trabalhar em uma obra na Arábia, mas a empresa mudou os planos e o mandou para o Alasca. Na última vez que falei com ele, há mais de 20 anos, estava animado com a perspectiva do embarque: "Arábia ou Alasca, Devagar, é tudo as mesmas Alemanhas!" Ele quis ir embora para escapar do destino de seu melhor amigo, o Sabichão, que também havia sido solto, novamente preso e dessa vez assassinado. Não sei o que aconteceu com o Formigão e o Ari Navalhada.

A todos, autênticos filhos do Brasil, tão castigados, presto homenagem, estejam onde estiverem, mortos ou vivos, pela maneira como trataram um jovem branco de classe média, na casa dos 20 anos, que lhes esteve ao alcance das mãos. Eu nunca soube quem é o "menino do MEP". Suponho que esteja vivo, pois a organização era formada por gente com o meu perfil. Nossa sobrevida, em geral, é bem maior do que a dos pobres e pretos.

O homem que me disse que o atacou é hoje presidente da República. É conciliador e, dizem, faz um bom governo. Ganhou projeção internacional. Afastei-me dele depois daquela conversa na produtora de televisão, mas desejo-lhe sorte, pelo bem do nosso país. Espero que tenha melhorado com o passar dos anos.

Mesmo assim, não pretendo assistir a "O Filho do Brasil", que exala o mau cheiro das mistificações. Li nos jornais que o filme mostra cenas dos 30 dias em que Lula esteve detido e lembrei das passagens que registrei neste texto, que está além da política. Não pretende acusar, rotular ou julgar, mas refletir sobre a complexidade da condição humana, justamente o que um filme assim, a serviço do culto à personalidade, tenta esconder.

CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento estudantil secundarista em 1968 e passou para a clandestinidade depois da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano, juntando-se à resistência armada ao regime militar. Foi preso em meados de 1971, com 17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou a fundar o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a vice-presidente na chapa liderada pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do qual também se desfiliou. Trabalhou na Fundação Getulio Vargas, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. É editor da Editora Contraponto e colunista da Folha.



terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Orgulho Gay

Antes de mais nada, gostaria de retificar uma injustiça que cometi contra o ex-ministro da Fazenda. Quem me alertou para essa falha foi o meu amigo Queiroz, a quem agradeço. O apelido de Delfim não era Dª Maria, a Louca, era Maria Gorda.
Não sei por que, lembrei-me de uma crônica muito bem escrita de Oswaldo Braga, publicada no jornal Em Tempo, que reproduzo na íntegra, em homenagem à brilhante campanha de seu time:

É gol!


Que felicidade! Exultante, corre o atacante vitorioso em direção à torcida, enquanto seus companheiros o perseguem. Num gesto impetuoso, ele tira sua camisa e exibe um abdominal de gominhos, o tórax seco, sem uma grama sequer de gordura. Um atleta que tem a noção exata do seu momento de glória, quando milhões de olhos encantados se voltam para ele. Um homem que exala sedução por todos os poros. A torcida vem abaixo, se encanta incontinente com a figura do ídolo descamisado quando seus colegas o alcançam para o glorioso abraço que consolida o espírito de time e o sucesso do trabalho conjunto. Um caloroso momento íntimo-coletivo em que corpos suados, mãos, caras, bocas e sexos se esfregam sem censura ou qualquer tipo de limite machista. Um homoerotismo que contagia todo o estádio, um ambiente masculino por essência, diante dos olhos de milhares de homofóbicos.

É gol! Que felicidade!

O assunto futebol tem estado presente neste final de Campeonato Brasileiro. Eis que alguém me pergunta para que time eu torço e respondo orgulhoso: "Cruzeiro!". "Ah! Claro! Só podia ser!", responde. " Por quê?", replico já adivinhando a resposta: porque sou gay e o Cruzeiro é o time dos gays. Eis a tola explicação para sua óbvia conclusão chauvinista.

Encontrei duas hipóteses que explicariam essa ligação: a primeira diz respeito à origem do Cruzeiro. O clube foi fundado pela colônia italiana de Belo Horizonte, pessoas cultas, que se vestiam bem e se comportavam com educação nos estádios. Logo, todo cruzeirense seria gay, pois segundo essa lógica troglodita, ser culto e educado não é coisa de macho.

A outra história tem a ver com o goleiro Raul Plassmann, famoso no Cruzeiro, depois no Flamengo e até na seleção brasileira. Numa época em que os goleiros se vestiam invariavelmente de preto ou cinza e "homem que era homem" não vestia roupa colorida, faltou a camisa do Raul e improvisaram uma substituta para que pudesse jogar.

O jovem bonito, louro e cabeludo Raul Plasmann desafiou os costumes e defendeu o Cruzeiro com uma camisa amarela que se tornaria sua marca registrada. Naquele momento, Raul ganhou a alcunha de Wanderléia, em referência à cantora loura da Jovem Guarda. E a torcida do Cruzeiro, o título pejorativo de "time de bichas".

A homofobia precisa ser questionada. Hoje, a camisa amarela não representa mais um sinal de feminilidade, os jogadores se exibem nos estádios e em revistas gays, mas os cruzeirenses continuam ligados aos homossexuais. Contudo, isso nos trouxe também avanços, uma vez que as torcidas organizadas Crugay e Rosa Azul são aceitas e respeitadas nos jogos do Cruzeiro.

Camisinha sempre!
Oswaldo Braga
E-mail: obraga@mgm.org.br
Publicado em: 28/11/2009