Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O trabalho de inglês


“The way was very beatifull” Tadinha, meio burrinha, mas gostosa. Dá para ver que ela se esforçou, usou o dicionário, gastou todo o inglês que tinha..
-  Me dá aí , disse Oliveira.
- Humm, letra de moça, com certeza. Redonda, caprichada. Olhe os tês iniciais - elaborados. Tem um esse maiúsculo que parece uma clave de sol. E olha que isso era um rascunho, está todo rasurado. Como é que ela entregou o trabalho assim?
- Não entregou, fui eu quem tomou a folha.
- Dá para ver duas dobras, ele deveria estar dentro de um livro. Por que você tomou o trabalho dela? perguntou Oliveira.
- Ela estava lendo essa folha, sem prestar atenção na aula. Quando viu que eu a observava, dobrou o papel e o enfiou dentro da agenda. Fiquei curioso e pedi o que eu pensei que fosse um bilhete.
- Não é bilhete, professor, estava conferindo o rascunho da composição.
E me entregou essa folha.
Era hora do recreio, a sala dos professores estava cheia e os dois não tinham muito o que fazer.
- Vamos traçar um perfil da moçoila. Margens estreitas em todos os sentidos, sem necessidade. Isso é raro. Segundos os especialistas, sinais de uma personalidade conflitante. As linhas estão quase horizontais, mas nota-se que são côncavas, vão descendo até o meio e depois sobem para manter o alinhamento. Meticulosa e determinada. Oliveira se gabava de ser perito em grafologia.
- Quanto a inclinação da letra, ela é praticamente vertical, com os  tês  em ângulo de 90 graus - autocontrole. Letra muito legível - sociável. Eu diria que a letra é grande -autoconfiança. Letra larga e espaçada -  orgulhosa. Olhe esses emes, enes e os. Eles formam arcadas na parte superior - calculista. As letras estão todas ligadas - autodisciplina.
Letra redonda, definitivamente - afetiva. A letra é pressionada com força e a pressão é constante. A caneta é uma esferográfica vagabunda, forma pontos de tinta onde se detém para mudar de direção. Eu não diria que é uma escrita lenta. Ela tem algumas letras mais rebuscadas, mas ganha tempo com os tês, os efes e os pês - emotiva. Engraçado, emoção e razão estão brigando. A área superior está bem balanceada em relação a área central. Uma boa proporção entre os tês e os emes, eu diria - equilibrada. Essa área central diz que ela gosta de chamar a atenção.
- Humm, essa parte inferior invade a linha de baixo – ela é do tipo esportiva?. E esses laços rebuscados dos efes? Aí tem. Essa menina esconde algumas taras. As maiúsculas são bem ornamentadas, com ênfase no lado esquerdo - vaidosa e egoísta. Esses ornamentos nos is e nos tês iniciais denotam certa imprudência. E o traço extra no a maiúsculo confirma a meticulosidade.
- Agora vamos aos as e aos os minúsculos. Bem fechados - cautelosa. E os dês e gês? Esse laço no gê a entrega - impulsiva. O seu i maiúsculo é original. Não dá para dizer muita coisa. Esses pingos nos is minúsculos, à direita da letra, mostram entusiasmo e rapidez. Esse traço ornamentado no tê maiúsculo é sinal de mau gosto. E o corte nos tês minúsculos mostra ambição, agressividade.
- Resumindo: a moça é impulsiva, mas sabe se controlar. Sociável, afetiva, mas ambiciosa e agressiva. Ela tem autoestima elevada, sabe o que quer e é do tipo esportivo, pensa rápido. Quer um palpite: ela tem fantasias em relação a você. Você era o destinatário do bilhetinho, que deveria ser anônimo. Ela agiu rápido e entregou esse rascunho, que deveria estar na agenda. Chame para sair e vê o que acontece. E depois me conta.
Ah,esse Oliveira...



quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O Arrudas desemboca no Mar Báltico - segunda parte

Os Quinze

O espaço-tempo é relativo. De 12 anos até os 15 e dos 15 até os 17, decorrem décadas.  Equivalem à distância entre os 30 e os 40 ou entre os 40 e os 50. Por uma questão de proporção, é preciso escolher alguns anos mais emblemáticos, mesmo com o risco de deixar de fora eventos muito significativos. Como eu vou e volto nesse contínuum, ora visitando o passado com minha consciência presente; ora recuperando meus olhos de criança ou de adolescente; o que ficou para trás será retomado em algum momento, se valer a pena.
Os 15 são definitivamente um divisor de águas. Nesse ano, nasceu uma barba cerrada, que me permitia assistir os filmes de 18 anos. Deixei para trás aqueles vergonhosos 1,60 m. Emagreci. Entrei para o primeiro científico. Turma mista.
Deixei de ser um bicho do mato que sofria com as brincadeiras dos colegas mais velhos. A turma saia junta para beber, para as festas e excursões. Em vez de colecionar maços de cigarros, tornei-me um consumidor. As preferidas eram as cigarrilhas Vedete. Baratas e fáceis de serem escondidas. A primeira namorada só veio aos 17, mas as primeiras experiências sexuais, com a vizinha da minha avó, começaram nessa época. 
O que eu pensava das coisas em geral, da existência, do meu lugar no Universo? Lembro uma conversa embaraçosa com o Xexéu. O apelido era devido ao cabelo meio alourado e desgrenhado, parecido com a plumagem do passarinho. A turma era um zoológico. O Cobra era Cobra por força do sobrenome. O Bezerro, por ser a cria preferida da Vaca Holandesa, nossa professora de matemática. Que devia o apelido aos seus grandes olhos azuis e desesperados. E a uma certa pachorra bovina, com que reagia às brincadeiras pesadas da turma. O Bezerro tinha o cabelo curto e empastado – consequência das lambidas da Vaca. O Barrão era mais velho e ostentava uma pança digna de um porco novo inteiro. Acho que o zoológico terminava com esses espécimes. Havia o Buick, não sei por que cargas d’água. O Maranhão, por conta de seu estado natal. E eu, Garrafa, por conta dos óculos fundo de garrafa, graças a uma miopia que só me permitia contar os dedos da mão do oculista até um metro de distância.
Certo dia, eu havia passado na Biblioteca e descido a Bahia para o centro, com o Xexéu, que ia pegar o ônibus para Santa Tereza. Bem na Afonso Pena, onde íamos nos separar, ele me pergunta, sem maiores introduções: o que você acha do homem?
O Xexéu, Ferrugem ou Beatnik, tinha a cara dos anos sessenta: barbicha rala e óculos de intelectual. Era enturmado com a esquerda católica. Que, a essas alturas, estava deixando Maritain para trás e mergulhando em um humanismo mais engajado. Eu lia de tudo e não sintetizava nada daquela mistureba de Dostoievsky com Bertrand Russel. Em política, era contra os militares e os americanos e apoiava o socialismo, o que não queria dizer muita coisa. A maioria no Estadual pensava assim.
Eu queria ser livre, antes de mais nada. E mergulhar de cabeça nas novas experiências. Queria ser campeão mundial de xadrez. Queria dar uma carga de baioneta e morrer como um herói. Queria beber como um herói. Queria me envolver com uma daquelas heroínas de Dostoievsky, bem trágica.

- O que eu acho do homem? Eu gosto é de mulher. O resto da cena, piedosamente, se perdeu. Não sei como terminou aquela conversa constrangedora.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Meu 11 de setembro

Setembro de 1973, eu estava em São Paulo, clandestino. Enquanto isso, minha diretoria da UNE se dissolvia. Eu havia saído de Porto Alegre, depois de uma série de prisões. Fui primeiro para Caxias, onde fiquei na casa do Ernesto, velho militante do PCB.

Um dos temas, inevitável, de nossas conversas, era a situação do Chile. Minhas previsões eram pessimistas: o golpe era iminente. Seria uma reedição do golpe de 64. Mais um na série de golpes militares que assolaram o continente nos anos 70. Ernesto discordava. Segundo ele, eu não confiava na força da classe operária chilena. Não chegamos a um acordo.
Em São Paulo, ironicamente, eu fiquei numa pensão da Lapa, perto do aparelho do PC do B que seria estourado em 1976. Quando vi as fotos da sala, com o sofá e a mesa de centro, reconheci o local onde havia me reunido com parte do Comitê Central várias vezes, desde 1970.

(Foto da chacina da Lapa, com os corpos de Ângelo Arroyo e Pedro Pomar)

Da pensão de Dona Pierina guardo algumas lembranças. A dona, uma italiana que adorava Fernet, muito branca, com a pele macilenta. Um hóspede, negro, que curtia a novela O Bem Amado, que assistíamos na televisão da sala comum.
Estávamos em pleno governo Médici, na véspera da ofensiva final contra a Guerrilha do Araguaia. O PC do B estava sendo exterminado nas cidades. Em dezembro de 72, caiu o sítio em Jacarepaguá.  Onde eu havia me reunido algumas vezes com Lincoln Oest, Carlos Danielli e Guilhardini, do Comitê Central. Todos assassinados.
Lembro vagamente de um militante do Espírito Santo, que participou de uma dessas reuniões. Era o Foedes, que entregaria o sítio e o partido no seu estado. Miriam Leitão foi presa, em consequência dessa delação.
O Bem Amado, de Dias Gomes, era uma parábola sobre o poder. Falava do coronelismo, mas podia ser lida como uma crítica aos generais. Não me lembro do nome do meu companheiro de pensão, o negro que curtia a novela. Por um ou outro comentário, eu percebia que ele ia além de uma leitura imediata da trama.
Um dia de setembro, pela manhã, veio o golpe. Que assisti em preto e branco, narrado segundo a versão de Pinochet. Á noite a Junta Militar já havia assumido o poder. 300 mil pessoas foram presas, 35 mil torturadas, pelo menos 3 mil assassinadas nos primeiros dias do golpe e mais de 30 mil durante o regime Pinochet. Lembro de o negro ter comentado que Allende era um homem bom.
O Bem Amado virou uma série, em 1980. O Chile elegeu e reelegeu Bachelet, que foi para a clandestinidade, depois do golpe, sendo presa e exilada. O Brasil saiu do regime militar em 1985. Alguns dos militantes que participaram dessa luta estão de volta à cadeia. Dessa vez por corrupção. Houve um outro 11 de setembro, que ofuscou a queda de Allende.
Se a História se repete, é certo, com novos atores e novos enredos, temos que procurar o similar do impeachment de Dilma no impeachment de Collor. Dilma não é Getúlio, muito menos Jango, menos ainda Allende. O PT não é de esquerda e os militares estão nos quartéis (menos na Venezuela).
Eu também mudei, só não perdi aquela mania de me apegar à realidade, por mais que ela contrarie os meus desejos.