Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Conversa do fiscal de renda sobre poesia

Propostas para a Cultura


Maiakóvski escreveu "Conversa sobre poesia com o Fiscal de Renda". Como poeta e fiscal de renda, achei oportuno retomar algumas discussões que esse poema levanta. O texto integral está nesse link:
http://schopenhauerperde.blogspot.com/2008/01/vladmir-maiakvski-1893-1930.html


No preâmbulo, Maiakóvski declara que veio tratar do “lugar do poeta na sociedade proletária”. Devemos entendê-lo em termos mais amplos, como um diálogo entre o artista e o poder.

“O meu trabalho a todo o outro trabalho é igual”. Marx criou a categoria de trabalho humano abstrato – dispêndio de energia humana, sem levar em conta como essa energia é dispendida. O artista, visto por esse prisma, integra a força de trabalho geral. Não houve, até hoje, sociedade em que a utilidade de seu trabalho fosse negada.

Mesmo na antiga União Soviética, onde poetas foram presos como parasitas, acusados de não trabalharem, a União dos Escritores garantia que seus membros recebessem uma remuneração adequada. A fórmula de cálculo levava em conta a tiragem e o número de páginas, entre outros fatores.

Essa é a reivindicação mais básica que pode haver. Sermos reconhecidos como trabalhadores. Com toda a implicação legal e todos os direitos que essa condição acarreta.

Maiakóvski salienta as dificuldades desse trabalho. “Onde encontrar, e a que tarifa, uma rima que mira e mate de uma vez? Dela talvez ainda sobrevivam cinco exemplares nos confins da Venezuela... Cidadão, condescenda, as passagens são caras! A poesia – toda – é uma viagem ao desconhecido.”

Uma vez encontrada a palavra certa, ela resplandece. “Essas palavras põem em luta milhões de corações por milhares de anos.” Ao poder soviético, não passou despercebida essa virtude. Zhdânov, o inventor do realismo socialista, proclamou que os escritores eram “engenheiros de almas”.

Esse é o grande perigo entranhado na relação entre o artista e o poder. Maiakóvski não era de maneira alguma hostil à nova sociedade. No entanto, foi tachado de ‘incompreensível para as massas”. A menina dos olhos do regime era o cinema, que atingia milhões. Mesmo essa arte de massas, sofreu com a ingerência estatal. O coração de Eisenstein não resistiu aos críticos tacanhos, que queriam uma revolução social, mas não toleravam a quebra de um cânone artístico, estabelecido por algum burocrata com veleidades intelectuais.

A arte, ainda que o artista tenha uma profunda preocupação social, não pode ser tutelada.

Por outro lado, há artistas que vêem no poder o Mecenas obrigado a subsidiar a sua genialidade. É comum esse artista lidar mal com as exigências burocráticas. O próprio Maiakóvski estava em dívida com o fisco. São conhecidos, no Brasil, vários casos de mau emprego de verbas públicas destinadas à cultura.

Toda relação entre o artista e o poder deve ser transparente.

Maiakóvski nunca pretendeu um lugar privilegiado para o artista na sociedade. Nunca fugiu do papel social de sua arte. “A nossa dívida é uivar com o verso, entre a névoa burguesa, boca brônzea de sirene. O poeta é o eterno devedor do universo e paga em dor porcentagens de pena.”

“Tudo o que quero é um palmo de terra ao lado dos mais pobres camponeses e obreiros” Modesto em suas exigências pessoais, certamente, ele atribuía à arte um papel privilegiado.“A palavra do poeta é a tua ressurreição, a tua imortalidade, cidadão burocrata. Daqui a séculos, do papel mudo, toma um verso e o tempo ressuscita.”

Ao lado desse caráter transcendente, a arte pode ter um alcance imediato. “... a rima do poeta é carícia, slogan, açoite, baioneta”. Maiakóvski não hesitou em fazer cartazes para ajudar no combate à difteria, nem temeu ser chamado de “o poeta da água fervida”. Defendeu, entretanto, com unhas e dentes o ofício do artista.

“Porém, se vocês pensam que se trata apenas de copiar palavras a esmo, eis aqui, camaradas, minha pena, podem escrever vocês mesmos.”

Nesses tempos de banalização geral, uma tarefa se impõe.

É necessário reafirmar o papel essencial da arte perante a sociedade.

A intenção de reviver esse poema de Maiakóvski, trazendo-o para os dias atuais, foi de balizar algumas idéias básicas. O nosso mandato será fruto de uma elaboração coletiva. Outras questões devem surgir, e estas idéias serão mais bem aclaradas. Este é apenas um ponto de partida, uma provocação.

A escolha do texto é também a confissão de uma influência. Maiakóvski estava constantemente se dirigindo a um público futuro. Ou dialogando com poetas passados, como o fez com Puchkin, no centenário de sua morte. E é o gancho perfeito para submetê-los a esse poema.

Conversação do fiscal de rendas sobre poesia

Há em mim um carniceiro
Que se alimenta da carcaça dos versos apodrecidos
Um açougueiro
Que vende em postas a carne quente dos poemas

Sem silicone, sem botox
Só a crueza do aço inox

Sei apenas que não ousaria tocar
Na unha suja do dedão do pé de Mítia Karamázov
Nunca faria lipoaspiração nas Três Graças
Nem photoshop no auto retrato de Rembrandt
Tudo mais é permitido

Em algum lugar do Brasil
Dizem que há uma repartição
Lá se vendem licenças poéticas

Há outra ainda
Onde sou um modesto fiscal de rendas
Que assinaria sem piscar
O auto de infração de Maiakóvski
E depois, para o consolar, lhe pagaria
Um traçado de cachaça com jurubeba

Ah, esses poetas de gravata amarela
Que não agüentam uma prensa
Qualquer ditadurazinha os derruba
Por qualquer vagaba eles se matam


Menos sensibilidade, camaradas poetas
Nada de cortar as artérias
A nossa intervenção há que ser cirúrgica
Somos apenas velhas parteiras
Induzindo a vida a parir poesia

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Quem vai ler o que a gente escreve?


Por que a Geração Y vai mal no ENEM?
Ana Elisa Ribeiro

Para todo lugar que se olha, há um inveterado leitor adulto condenando nossa juventude perdida por conta do resultado do ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio, que serve, digamos assim, para medir as habilidades de nossos não-leitores em relação à língua portuguesa.

A "mídia", esteja ela onde estiver (digo, no papel, na internet, no rádio), parece reagir à mesma pauta. Todos urubuzando o sucesso do desastre, como diria Renato Russo, em uma de suas músicas menos comentadas. Ordens são ordens, afinal. Diga aí, para a sociedade, que nossos jovens não leem nada e foram supermal na prova de português que o governo brasileiro aplicou.

Raramente se vê algum jornal ou coisa assim explicar, direitinho, como o ENEM é feito, para que ele serve, quem o patrocina, essas coisas que, afinal, interessam menos do que os gráficos dos resultados brutos. É chato ficar lendo explicações. Muito mais legal ler só a caixinha de texto da matéria. Já inspira bastante conversa de boteco, né não?

Sim, é verdade, o jovem brasileiro tem dificuldades para ler. Ah, só para lembrar de associar estes últimos dados a outros, os pais dos mesmos garotos têm as mesmas dificuldades. Dorme com essa.

O escopo do ENEM são os jovens concluintes do Ensino Médio. Na média, uma turma aí pelos 17 anos (se estiverem regulares na escola brasileira), com uns 11 anos de escolaridade (o tal Ensino Básico, que é Fundamental + Médio) e, atualmente, habituês desta tal Sociedade da Informação e do Conhecimento. Uma parte dessa turma teve acesso ao computador e à Web já na barriga de mamãe. Mas parece não ter tido acesso a outras coisinhas. Vamos lá: informação não garante conhecimento; acesso não garante habilidade.

O mesmo governo que mede as habilidades de leitura da turma é este (seja ele qual for, não me refiro ao governo Lula ou a qualquer outro especificamente, ok?) que desmontou a escola básica. E não apenas a pública, que levou a fama toda (você não se lembra, mas a escola pública já foi de dar orgulho à família inteira ― e elas ainda existem, em algumas ilhas). Desmontou também a escola privada, que não passa, na maioria das vezes, de uma empresa vendendo serviços, como qualquer outra. Educação, na boca de certos empresários, é palavrão. Para quê isso?

O ENEM é uma prova feita com base em matrizes de habilidades. O modelo de avaliação desse exame é importado. O Brasil é um dos países que mais recentemente aderiu a esse tipo de avaliação ou controle massivo dos níveis de desenvolvimento da população. O Banco Mundial está sempre envolvido nessas histórias, claro, mas o ENEM, assim como muitas outras avaliações, tem um lado muito positivo. Ao menos, hoje, a gente pode saber em que ponto da escala estamos, não é mesmo?

Habilidades são relacionadas a desenvolvimento cognitivo. Os exames do ENEM avaliam como os estudantes (em massa) se desenvolveram em português e em matemática. No português, aborda-se a leitura, em níveis de habilidades que vão ficando cada vez mais complexos. Ou... deveriam ficar. O que se nota, nos resultados da avaliação, é que os estudantes brasileiros desenvolvem apenas habilidades mais básicas para a leitura e não alcançam aquelas que dependem de um jogo mais complexo. Localizar uma informação explícita em um texto, por exemplo, é uma habilidade basicona. Nossos estudantes vão muito bem nela. Parabéns para nós, que ensinamos todo mundo a achar direitinho e rapidinho uma data, um nome de personagem, a cor do cavalo branco de Napoleão, mas quando a coisa fica mais difícil, fazer inferências, por exemplo, os nossos dados ficam no vermelho.

Lembra quando você estava no segundo grau? Era assim que se chamava, não era? Lembra daquelas questões dadas pelo professor que dependiam apenas de uma olhadela diagonal no texto para que se encontrasse a resposta? Pois é. Lembra daquelas questões tipo: "João foi com Maria ao cinema". "Quem foi ao cinema?" "João e Maria". Lembra disso? Pois é. Essas são as questões que complicam a turma que presta o ENEM. Ou melhor, pensando bem, é graças a essas questões da vida toda que nossos alunos não afundam mais.

Não há qualquer problema em saber localizar informações. Isso precisa ficar claro, claríssimo. É absolutamente necessário saber fazer isso. O problema é só saber operar assim, a vida toda, mesmo quando se está partindo para a vida adulta, universitária, profissional ou não. Lembra quando você perguntava ao professor se teria de ler "aquilo tudo" para encontrar a resposta? E lembra desta? "Professor, mas essa resposta não está no texto!". Pois é.

Mas não adianta pôr a culpa na garotada. Afinal, eles são a "Geração Y" ou os "Homo zappiens", como dizem os gringos por aí. Essa turma são os sensacionais multitarefa, que foram salvos pelo computador e pelo iPad. O ENEM é que precisa mudar, não é mesmo? Precisamos achar um jeito de capturar a coisa certa. O exame não cabe nesta geração. Meu jovem, o ENEM não te merece.

Bom, a questão é séria. Não me leve a mal, leitor (aliás, perceber ironia é uma habilidade complexa). O ENEM talvez não seja o melhor exame do mundo, e o leitor também não. Mas vamos atrás desse hipertexto: o livro didático em que o garoto estudou também não é, o professor que ele teve não foi dos mais bem-formados do país, a escola estava preocupada em colocar outdoors nas calçadas, os pais acham que comprar livros e ter acesso a bons produtos culturais é bobagem. Enfim... correlações importantes, elementos que colaborariam bastante para que o jovem fosse um leitor melhor. Refiro-me não apenas a ler Machado de Assis, mas a ler jornais, revistas, bilhetes.

Os resultados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional apontam para o mesmo lado. O bacana de tudo é que o INAF vale para a população, e não apenas para os jovens estudantes. Garoto e garota, se precisar de contra-argumentos, mostre isso aos seus pais.

É claro que há bons leitores no país. Nem tudo está perdido. Há, sim, uma parcela (que se aproxima dos 30% da população) que consegue inferir coisas em um texto, por exemplo. Há quem consiga entender um texto de mais de uma página. O problema é que essas pessoas são a minoria. E isso não é coisa de brasileiro, como gostam de dizer nossos amigos curiosamente travestidos de europeus ou de "o outro". Estamos todos neste barco. Uns pra lá, outros pra cá, mas é por isso que formar professores, avaliar bons livros, formar bons autores, ter boas editoras e boas escolas não é conversa fiada. É fundamental. (Ei, isto não é com o vizinho, é com você.)

Não é o ENEM que vai mudar as coisas. O que muda tudo é provocar alterações nesse sistema inteiro. Vejam que fácil! Ensinar a ler bem não depende de escola e nem de cibercultura, mas se o caminho for por aí, que seja. O desenvolvimento das pessoas sempre pôde acontecer, mesmo quando os norte-americanos não haviam inventado o computador.

Pesquisas bacanas mostram que, por exemplo, nossos livros didáticos mais bem-formulados, aqueles que são top na avaliação desse tipo de material (que vem sendo feita há bastante tempo pelo governo), evoluem pouco nas questões de leitura, ou seja, os usuários desses livros não são demandados a desenvolver habilidades de leitura mais altas. Quando o livro é muito bom, cheio de provocações interessantes, o professor não o adota na escola, exatamente sob a alegação de que o livro é difícil de usar. O editor, então, passa a solicitar aos bons autores que "peguem leve", para que o livro não fuja muito da média. Vejam que encrenca! Para melhorar a nota no ENEM há uma solução: fazer perguntas mais fáceis. Isso mudaria todas as estatísticas. Não é assim que certas pessoas gostam de resolver as coisas? (E certas políticas...)

Alto lá, mas não vamos sacrificar o professor (mais ainda). Ainda bem que nem todo mundo se seduz pelas promessas das profissões imperiais. Há, sem dúvida, excelentes professores por aí, formados em escolas de ponta. É certo que nem sempre eles trabalham em escolas que os mereçam, mas há quem consiga trabalhar muito bem. Mas professor bem formado é aquele cara que estuda, estuda, estuda. Não se pode ser professor para passar o tempo. E professor bacana investiu, quer ganhar bem (e merece, como qualquer outro profissional). Professor legal quer ser respeitado, ter vida digna e tirar férias com a família. Professor bem-formado quer ser respeitado pela escola, pelo aluno e pelo livro didático. Professor inteligente sabe como formular questões interessantes, pensa em projetos de ensino, formula aulas, tem horizonte. Eles existem, sim. E poderiam existir mais, se pudessem seguir suas carreiras com dignidade.

Enfim, caro leitor, o ciclo se fecha, mas se fecha mal. Vale a pena, no final das contas, oferecer ao seu filho(a) (ou ao seu pai/sua mãe) um ambiente cultural mais motivador, mais exigente, digamos assim. Não apenas pelo ENEM, que vai colocar você na universidade, mas pelo desenvolvimento do país, que não pode ser grande sem pessoas legais e capazes de uma boa comunicação, na língua nacional. 


Esse é um texto polêmico, colocado para abrir uma discussão.  Uma retificação: geração Y, pelo que sei, é um termo cunhado pela blogueira cubana Yanis, aludindo à mania, que vigorou  durante um tempo, de se colocar nomes começando com Y nas crianças cubans

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

segunda parte - O Vietnã é aqui!

Primeira Campanha


Capítulo 1 – Os arapongas[1]

            O ataque aos guerrilheiros foi precedido por uma grande atividade dos serviços de informação do exército. O próprio relatório Arroyo afirma que “nos primeiros dias de abril, já alguns policiais andaram pelas áreas dos destacamentos A e C à procura de informações sobre os “paulistas””[2]. Segundo Criméia, os guerrilheiros já sabiam que, em 31 de março, o exército chegara à Faveira.
            As informações iniciais sobre o destacamento C vieram de Pedro Albuquerque. Em sua 4ª edição, “A guerrilha do Araguaia”, publicada pela editora do PC do B reproduz as duras palavras do relatório Arroyo: “... O Exército soube de nossa presença no sul do Pará através da denúncia do traidor Pedro Albuquerque que, meses antes, havia fugido com sua mulher do destacamento C. [NE: mais tarde, soube-se que não foi Pedro Albuquerque o denunciante dos guerrilheiros que se encontravam no Araguaia].” A nota da edição, desmente laconicamente o texto, sem dizer quem foi o denunciante.
            Embora essa polêmica não tenha maior relevância numa perspectiva histórica, é importante restabelecer os fatos. Pedro havia deixado a área em junho de 71. Ao chegar a Fortaleza, havia procurado o Partido e se mantinha escondido em apartamentos de amigos e conhecidos, ligados de alguma forma ao PC do B. De sua parte, havia o compromisso de manter o trabalho em sigilo. Além disso, era fácil para a direção do PC do B monitorar os seus passos. Essas informações, com certeza, haviam sido repassadas à Comissão Militar, já que envolviam um sério risco de segurança.
            Criméia afirma que a fuga de Pedro foi decisiva na resolução de desativar a base de Faveira. Os futuros guerrilheiros do Destacamento A se estabeleceram longe das margens do Araguaia, em três PA.
Em dezembro de 71, a CM decidiu deslocar os pontos de apoio do Destacamento C mais para o interior, para o norte, na direção do Igarapé Abóbora. A demora de mais de seis meses é explicável, se pensarmos que o PC do B tinha certo controle sobre a situação.
            Em dezembro, Paulo, o comandante do Destacamento C, chamou um vaqueiro para tomar conta de sua fazenda. O escolhido foi Raimundo José Veloso, o Raimundinho, tio de Neuza, que havia se casado com Amaro. Paulo disse que faria uma longa viagem e, em janeiro de 72, entrou na mata, juntamente com os paulistas. Raimundinho não teve mais notícias suas. A pressa com que a mudança foi feita talvez se deva à informação de que Pedro pretendia abandonar a clandestinidade.
             Em fevereiro de 72, Pedro foi preso ao tentar tirar a segunda via da carteira de identidade. Segundo ele: “Eu achava que eles já não estavam mais me vigiando (na volta a Fortaleza), trabalhava clandestino como corretor e fui a uma delegacia tirar minha identidade para um emprego no Laboratório Roche, em Teresina. Na polícia, fui preso.” [3]
Pedro Albuquerque estava no PC do B desde 62, vinha de uma família de comunistas e tivera papel de destaque no movimento estudantil cearense. Elio relata que ele se tornara particularmente visado pela repressão ao deter, na sala de aula, um policial infiltrado, tomando sua arma. Ele foi reconhecido e enviado para a Polícia Federal.
A notícia da prisão de Pedro chegou ao Araguaia em março de 72, de acordo com o relatório Arroyo. Segundo depoimento de Francis, um militante cearense, uma enfermeira ligada ao partido viu Pedro sendo atendido em um hospital. Ele tentara se suicidar fazendo cortes profundos na altura do antebraço.
Os autores de “Operação Araguaia” tiveram acesso a fontes do exército. Pretendemos contrapor essas informações aos depoimentos dos sobreviventes e ao próprio Relatório Arroyo, de maneira crítica. Segundo o livro, o CIE (Centro de Informações do Exército) tomou conhecimento da existência de um campo de preparação de guerrilha rural em fins de março. A Operação Peixe I, determinada pela Segunda Seção[4] da 8ª RM, teria duas fases. “Na primeira, os investigadores sairiam para confirmar a presença de guerrilheiros no Sul do Pará. Na segunda, seria feito “o isolamento, cerco e redução do inimigo””[5].
A área da guerrilha tem uma peculiaridade: são inúmeras as localidades que possuem o mesmo nome - Pau Preto, Gameleira, e Cigana, entre outras. São nomes de pássaros ou de árvores da região. Próximo a Marabá, às margens do Rio Tauarizinho, havia um lugarejo com o nome de Cigana. Teria sido para lá que os agentes se dirigiram inicialmente. Ao procurarem informações em São João do Araguaia, acabam descobrindo o PA da Faveira, já desativado. Antes de retornarem a Belém, “Souberam de outro lugarejo Cigana, às margens do Sororó. Acreditavam que essa pista fosse boa, pois ficava perto de Xambioá, cidade de Goiás com nome semelhante a Xangri-Lá, referência dada por Pedro Albuquerque.”[6] A equipe voltou para Belém no dia 31 de março.
Embora os guerrilheiros soubessem da existência de outros destacamentos, Pedro, provavelmente, não sabia da existência do PA em Faveira. Ou acreditamos na versão de que os militares chegaram lá por acaso, ou somos obrigados a concluir que houve outra fonte de informação, alguém que conhecia esse local.
É justo dizer que Pedro resistiu ao máximo e que as informações que forneceu eram imprecisas.
“Na Polícia Federal, foi torturado e humilhado. Resistiu, mentiu e trocou nomes de pessoas e regiões. Disse que tinha contato no PC do B com André, que nunca existiu. Falou do suposto dirigente Mário Alves, militante histórico, morto pela repressão um ano antes. O verdadeiro Mário Alves nunca pertenceu ao PC do B...”[7]
Depois de acareado com José Sales de Oliveira, militante do PC do B que também estava preso, a tortura se intensificou e Pedro deu mais informações. Vejamos alguns trechos de seu depoimento:
“... o militante foi mandado pelo partido para São Paulo, junto com a esposa. Viajaram e se encontraram com um militante de codinome Lauro, branco, mais ou menos 45 anos, que o encaminhou para “Mário Alves”. Em São Paulo, o casal recebeu a tarefa de viajar para Belém, onde teriam outro contato.
... o casal foi recebido em Belém por Paulo, cor clara, cabelos pretos, 33 anos, aproximadamente 1,70 m. Paulo conduziu os dois até Cigana, lugarejo no  município de Conceição, sul do Pará. No local havia outros 15 militantes, divididos em cinco células (célula é o nome dado pelos partidos às unidades mínimas na base da organização).” Grifos nossos.
Mário Alves seria Mário, codinome de Maurício Grabois, Lauro era Lincoln Oest (o autor se lembra que ele usava esse codinome) e Paulo era Paulo Mendes Rodrigues. O destacamento C, no período em que Pedro lá esteve, tinha aproximadamente 15 militantes. Em outro depoimento, ele cita que o destacamento era comandado por Paulo e Vitor.
“Operação Araguaia” afirma que ao deparar com a base de Faveira, no final de março de 72, o Exército não tinha noção do que havia encontrado. “O General Darcy Jardim e o tenente-coronel Raul Augusto Borges montaram a Operação Peixe II ainda sem ter certeza sobre as atividades dos paulistas na área. No documento Confirmação de Ordens Verbais, os dois militares expõem as hipóteses de que sejam subversivos, contrabandistas ou hippies.[8]  
Essa “informação” é contraditória. Os arapongas tinham verba e tempo limitados e uma indicação de um local bem distante da Faveira. Estavam lá à caça de “subversivos”. No entanto, abandonam o objetivo inicial, encontram uma base desativada, e ainda suspeitam de uma colônia hippie? O objetivo do vazamento desse documento pode ser o de proteger a fonte de informação sobre o Destacamento C.
Se estavam lidando com hippies ou não, o certo é que os arapongas fizeram o que sabiam fazer: prenderam vários moradores para obter informações. As prisões realizadas durante essa operação foram de pessoas que conheciam os militantes, mas que não estavam envolvidas diretamente na preparação da guerrilha. Segundo “Operação Araguaia”, a investigação durou até o dia 12 de abril, sendo que entre 7 e 12 de abril, 11 homens ficaram de tocaia na Transamazônica, na altura de São Domingos, esperando a passagem de Joca.
“O documento Operação “Peixe II” (INFO) aponta erros no comportamento dos agentes e conclui que os homens das Forças Armadas circularam muito em uma região de poucos habitantes. Perguntaram demais; a missão perdeu o sigilo e nenhum guerrilheiro foi preso. O documento constata a falta de pessoal de informação qualificado.”
A Operação Peixe III se sobrepõe à Operação Peixe II. Um grupo de 24 soldados do Pelotão Antiguerrilha, o PESAG, se dirige para o Alvo (Chega com Jeito), procurando por aproximadamente 11 homens. “- O pelotão “PESAG”, por meio de ações rápidas, violentas se necessário, e de surpresa, deverá aproximar-se, cercar e neutralizar e/ou destruir o “ALVO”[9].
            Segunda Elza Monnerat, no início de abril, o vice-comandante do Destacamento A, Piauí “... foi comprar farinha em um pequeno povoado, denominado Bom Jesus. Quando se aproximava do lugarejo, ouviu vozes de muitos homens e se afastou do trilho. Viu quando os soldados passaram e percebeu do que se tratava. Conhecedor da região, abandonou o caminho e, rapidamente, tornou ao rancho por atalhos na mata. Avisou aos companheiros e todos puderam retirar-se em ordem, o mesmo ocorrendo nas casas vizinhas.”[10]
Criméia nos forneceu mais detalhes sobre o ataque. Na madrugada anterior, um morador de um castanhal próximo procurou os guerrilheiros, solicitando a presença de Sônia. Segundo ele, haveria um doente necessitando sua ajuda. Os guerrilheiros, desconfiados, negaram, dizendo que não poderiam deixar uma moça andar sozinha, à noite, pela mata. Mais tarde o exército estabeleceu uma base nesse castanhal. O pedido poderia ter sido uma cilada, com o objetivo de efetuar uma prisão.
Os soldados que Piauí avistou seguiram um caminho mais longo e se detiveram na casa de um camponês amigo dos guerrilheiros. Ele desconfiou dos estranhos, que embora descaracterizados, usavam armas e botas novas e um relógio que dava a direção (bússola). Eles se apresentaram como amigos dos “paulistas”. O camponês os convenceu a pernoitarem, alegando que os paulistas moravam longe dali.
De manhã cedo, mandou seu filho procurar os guerrilheiros, com a desculpa de pedir um pouco de café. Mário disse ao menino que as suspeitas de seu pai estavam certas e explicou porque estavam sendo procurados. Os guerrilheiros ficaram na área aguardando a chegada da tropa. Criméia conta que assistiu a ocupação do PA e o sobrevôo de um helicóptero a uma distância de uns 50 metros. Devido à disparidade das forças, a decisão foi de se internarem na mata.
A precisão do ataque faz pensar que o Exército, desta vez, disponha de boas informações. Atualmente, o PC do B afirma que a fonte do exército foi a esposa de Lúcio Petit, Lúcia Regina. Levada até Anápolis para se tratar de brucelose, ela fugiu do hospital e chegou à casa dos pais em 19 de dezembro de 71. Ela nega que tenha denunciado a guerrilha e afirma que foi presa em 74, quando não mais poderia fornecer qualquer informação útil.
Desde 71, os guerrilheiros estavam estabelecidos em Metade, Chega Com Jeito e um outro PA, mais novo, que ficava entre os dois. Ao sair da região, no lombo de um burro, Regina seguiu a picada que vai até São Domingos. Depois, juntamente com Maurício Grabois e Elza Monnerat, pegou um ônibus na Transamazônica. Coincidentemente, os soldados do PESAG seguiram o caminho inverso até o PA.
Há um outro indício que a incrimina: quando retornava ao Araguaia, no momento em que o Exército iniciava o seu ataque, o ônibus em Elza viajava foi parado na Transamazônica, no exato local em que os militantes que retornavam ao Araguaia costumavam descer. Elza não foi molestada, porque, segundo ela, os soldados estariam procurando João Amazonas. Por motivo de saúde, os dois inverteram as datas em que iriam retornar. Essa troca seria do conhecimento de Regina, que havia sido contatada para retornar com o dirigente.
Elza se recorda que quando informou a Beto que Regina havia voltado para São Paulo, ele comentou: “Ela não volta mais, o pai dela é amigo de uns militares e possivelmente não vai permitir que ela volte.”[11] A conclusão dela é taxativa:
“Continuei a viagem até Marabá e no dia seguinte comecei a voltar para encontrar o Amazonas em Anápolis. Se não fosse a Regina ter denunciado a guerrilha, eles não encontrariam de jeito nenhum o nosso povo, nem saberiam em que ponto estava, o adiantamento, etc. A Regina era do Destacamento A e tinha um cunhado, uma cunhada e uma concunhada no Destacamento C [Jaime, Maria e Lena, respectivamente], e ela sabia que do Destacamento C tinha fugido um casal [Pedro e Tereza]. Ela tinha condições de saber que além do destacamento A, que era o dela, havia um Destacamento C. Foi ela quem informou direitinho o ponto em que o Amazonas iria descer na Transamazônica e indicou que havia também gente lá para cima, mas ela não sabia indicar por onde entravam nem coisa nenhuma. Assim, no dia 12 eles entraram no A e no dia 14 eles entraram no C”. [12]Grifos nossos.
            Em seu livro, Araguaia, o Partido e a Guerrilha, Wladimir Pomar, filho de Pedro Pomar, levanta algumas questões interessantes. Segundo ele, parte do Comitê Central e de sua Comissão Executiva ignoravam completamente os detalhes concretos do trabalho militar. Ozeas relata que participou em algumas reuniões com dirigentes que tinham crises de malária. A dedução lógica é que a luta armada se travaria em algum lugar da selva Amazônica (que cobre quase metade do território brasileiro).
“Entretanto, apesar de todo o método conspirativo adotado, o dispositivo foi descoberto por denúncia de outra desertora. Regina, uma das militantes selecionadas para o trabalho na área, ficou doente e teve que ser enviada para o sul em meados de 1971 para tratamento, apesar das normas em contrário estabelecidas pela Comissão Militar. Acabou desertando e, sob a pressão da própria família, denunciou o trabalho de preparação, possibilitando que as forças repressivas montassem todo o plano de ataque. Durante muito tempo, o CC ficou sem saber a causa da descoberta do trabalho do partido na área, em grande parte porque ignorava a deserção daquela militante. A comissão militar e seu principal dirigente, que teve que permanecer na área após o ataque das forças armadas [Maurício Grabois], não se sentiram na obrigação de informar nem mesmo a CEx [a Comissão Executiva do Comitê Central] sobre o assunto. Só após 1974, com a derrota da guerrilha, foi possível desvendar o mistério.”[13]
Os futuros guerrilheiros eram advertidos de que a ida para o campo era um caminho sem volta. Danilo, por exemplo, foi obrigado a permanecer na área até o início da luta, para não criar um risco de segurança. As circunstâncias da fuga de Regina (ela levava dinheiro escondido, suficiente para chegar até São Paulo, e foi deixada num hospital, sozinha) caracterizam uma falha gravíssima da Comissão Militar. 
Em minha opinião, o depoimento de Criméia lança uma luz definitiva sobre essa questão.
“Depois da fuga de Pedro, por medida de segurança, os militantes mais novos foram transferidos para o PA de Chega com Jeito. A Transamazônica estava em fase inicial de construção. Perto da futura estrada, Regina disse que não agüentava mais caminhar e pediu “que a deixassem por ali mesmo, porque ela preferia morrer ali”. Esta atitude levou o próprio Mário [Maurício Grabois] a suspeitar de Regina.
Outra atitude que, vista retrospectivamente, compromete Regina, foi uma conversa que mantivemos. Ela havia ido para a região antes de Lúcio, seu marido. Vendo que leva seguinte ele não estava entre os recém chegados, Regina se lamentou, dizendo que só havia ido para lá acompanhar o marido. Esse comentário provocou um certo mal estar.
Alguns sobreviventes alegam que foram parar no Araguaia enganados sobre o tipo de trabalho que iriam desenvolver. Eu não concordo. O clima político do país, as discussões internas que travávamos no PC do B, os documentos divulgados, tudo dizia que o trabalho no campo visava o desencadeamento da guerra popular. Eu, pelo menos, fui para o Araguaia com esta visão.
Em fevereiro de 72, encontrei com Regina, em São Paulo, em um ponto de rua, perto do Colégio Madre Cabrini, em Vila Mariana. Ela afirmou que não voltaria á guerrilha. Saí do ponto com duas enormes sacolas de plástico, cheia de bugigangas, que seriam para os guerrilheiros.
Era uma oferta tão inusitada que preferi me desfazer delas, jogando-as fora num córrego. Suspeitei que pudesse ser uma marca, algo que poderia me identificar para a repressão.”
O depoimento de Elza é contraditório. Ela diz que Regina foi contatada, intimada a voltar, contrariando todas as expectativas que o bom senso apontava, e que, inclusive, conheceria a data do retorno de Amazonas. Por outro lado, não poderia informar aos militares a localização certa do PA de onde havia saído! Parece uma tentativa de incriminar definitivamente Regina, e, ao mesmo tempo, minimizar as falhas de segurança da CM.
            Quase simultaneamente ao ataque partido de Belém, 15 homens do CIE, Centro de Informações do Exército, do CMP, Comando Militar do Planalto e da 3ª Brigada de Infantaria partem de Brasília, levando Pedro Albuquerque. É o início da Operação Cigana, que tinha como alvo o Destacamento C. As localidades visadas eram Caianos, Cachimbeiro e Cigana (aparentemente Pedro não conhecia Pau Preto).
A nossa opinião é que houve duas fontes de informação: uma, Pedro, sobre o Destacamento C; a outra, que se originou de Regina, sobre o Destacamento A. Em breve, com a prisão de Genoino, o exército teria informações detalhadas sobre o Destacamento B.
Outros depoimentos e fontes do próprio exército indicam que a repressão considerava a área potencialmente perigosa. Vários exercícios militares contra supostos guerrilheiros já haviam sido realizados e prisões haviam sido efetuadas, de militantes ligados as correntes foquistas. Em poder de um militante da ALN, havia sido apreendido um mapa da região. A construção da Transamazônica e de vários quartéis podem ser vistas como medidas preventivas. Entretanto, a região do Bico do Papagaio é imensa e despovoada, além de ser coberta por mata densa. As informações mais precisas sobre a guerrilha e a sua localização exata só foram obtida em 72.
É razoável supor que, cedo ou tarde, a guerrilha seria localizada, já que o Exército monitorava a região e tinha informantes entre os jagunços e bate-paus dos fazendeiros. De uma maneira ou de outra, o conflito militar era iminente, naquele ano de 72.



[1] Gíria que designava os agentes da comunidade de informação.
[2] Os guerrilheiros ficaram conhecidos na região como paulistas e povo da mata.
[3] Entrevista de 30.07.2007
[4] A segunda seção era responsável pela informação e contra-informação. Participava ativamente da repressão política.
[5] Operação Araguaia, p. 62.
[6] Idem, p. 64
[7] Operação Araguaia, p.53
[8] Operação Araguaia, p. 68.
[9] Operação Araguaia, p. 77.
[10] Guerrilha do Araguaia, Anita Garibaldi, p. 89.
[11] Romualdo, p. 105
[12] Romualdo, p. 106
[13] Pomar, p. 38.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Luiz Paulo Lyrio de Araújo



Hoje usarei esse espaço para lembra um amigo que faleceu recentemente: Luiz Paulo Lyrio de Araújo.
Fomos contemporâneos de Colégio Estadual. Ele no Clássico, eu no Científico. Isso foi no tempo em que o vestibular era feito por escola: para entrar na Escola de Engenharia, se fazia o vestibular de engenharia. As matérias eram Matemática, Física, Química e Desenho Geométrico. Quem preferia História, prestava vestibular para o Curso de História, da Faculdade de Filosofia, na Rua Carangola. Não sei quais eram as matérias cobradas.
Luiz optou pelas Ciências Humanas e eu, pelas desumanas. O sistema era muito complicado e foi substituído pelo atual vestibular.
O Colégio Estadual era famoso pela sua participação no movimento estudantil secundarista. E por sua efervescência cultural. Henfil foi meu contemporâneo. Os irmãos Amilcar e Roberto Martins também. Luiz participava ativamente do movimento estudantil. Eu tinha uma participação mais discreta. Empregava a maior parte das manhãs, jogando xadrez no salão do barbeiro Renard, e das tardes, jogando no Clube de Xadrez de Belo Horizonte, na Rua Carijós.
Isso foi em 1966, 67. Veio 68, o ano que já acabou, e perdi contato com o Luiz. A sua trajetória, assim como a de muitos amigos, foi narrada no seu livro “Nos idos de 68”. Ficamos quase quarenta anos, separados pelo tempo e pelo espaço. Foi justamente esse livro que acabou nos reaproximando.
Nesse meio tempo, Luiz seguiu lutando em duas frentes: como professor de História e como escritor. Escreveu um livrinho sobre a organização dos Grêmios Escolares, que deve ter ajudado muito o movimento secundarista a se reorganizar.
As reviravoltas da vida, que dispersaram aquela geração, foram nos endurecendo. Luiz continuou extremamente suscetível. Um comentário inocente, uma brincadeira de mau gosto, a mínima hostilidade, o abatia. Tinha aversão à burocracia. Quase todo ano, nos últimos dias de prazo, eu o ajudava com a sua declaração de imposto de renda. Com dois salários de professor, não haveria renda a tributar, se o nosso sistema fosse mais justo. Mesmo assim, não escapava da dentada do Leão.
Luiz tinha um olhar diferente, que o tornava um grande cronista. Seus contos nutriam-se da própria vida. Seus casamentos, seus amores, seus desenganos. Alguns eram simplesmente catárticos. Outros, quando ele conseguia se sobrepor ao sofrimento, eram deliciosos. Lembravam um pouco Gógol, de O capote e principalmente de O nariz.
Há um, meu preferido, A meio pau, que narra as desventuras de um órgão que escapa de seu dono. Ele jura que nunca leu O nariz. Eu acredito. A mesma sensibilidade fez com que Machado de Assis escrevesse “O Alienista” e Tchekhov “A enfermaria número 9”.
A elaboração de “Nos idos de 68” foi trabalhosa. Exigiu muita pesquisa histórica, muita leitura de periódicos da época. Luiz brincava dizendo que não tivera a sorte de ter sido torturado. Reclamava da imprensa e da televisão, que só queriam entrevistar os medalhões que haviam sido presos, torturados e até exilados. Sentia-se excluído. “Nos idos de 68” conta a história do ponto de vista da massa que participava dos movimentos estudantis. Esse é um dos grandes méritos do livro.
            É pena que essa suscetibilidade o tornasse inseguro. Luiz queria ser lido, preocupava-se bastante com a reação do leitor. Há um público que espera que todo conto seja uma espécie de fábula moral, com personagens bonzinhos, retratando fielmente a realidade. E com um final edificante. Esse não pode ser nosso referencial.
Ele sofreu um choque, quando a publicação de “Nos idos de 68” acabou coincidindo com a morte trágica de um amigo em comum, que também participava do movimento estudantil. Sentiu-se culpado, talvez porque esse amigo não fosse retratado sob uma luz muito favorável. Entrou em depressão e foi internado no Hospital do Ipsemg.
Foi justamente aí, que a vida nos reaproximou. Eu estava na Receita Federal, do outro lado do Parque Municipal e acabara de conhecer uma grande amiga, Clevane Pessoa. Pesquisando sobre 68, para um romance que vivo escrevendo, soube do livro de Luiz. Clevane, que também era sua amiga, contou-me onde ele estava. Fui visitá-lo e passamos a nos ver com freqüência.

Eu e Luiz Paulo, recebendo uma homenagem na Câmara de Belo Horizonte, pela participação no movimento de 68. Foto de Clevane Pessoa, que batalhou pela nossa indicação. Foram vários os homenageados.  

Foi o período da Revista Estalo, que promoveu concursos e lançou inúmeros poetas e escritores. Pela primeira vez, fui publicado em papel. A proposta era um tanto quixotesca e a revista acabou fechando, como tantas outras. Luiz lançou mais alguns livros, pagos pelo próprio bolso: “Marcas de Baton”, “Abdução”, a nova edição de “Nos idos de 68” e “Vida depois da morte”.
Eu era um pouco o seu Sancho Pança, ainda que ele não tivesse o físico do Cavalheiro da Triste Figura. Luiz não compreendia por que eu não me interessava em ser publicado, já que tinha dinheiro para bancar uma edição. Dizia que eu tinha obrigação de mostrar ao mundo a minha produção. Ser lido era um dever do escritor. Eu argumentava com o esquema cada vez mais mercantilista da literatura, com o número crescente de analfabetos funcionais, com a concorrência desleal das outras mídias. Dizia para ele: Luiz, meu amigo, seja menos Lyrico e mais Paulada. Não adiantava, ele seguia inconformado com o estado de nossas letras.
Mudou-se para Aracaju, em busca de ares mais amenos. Continuamos a nos falar pela Internet. Volta e meia, eu entrava no seu blog para deixar um comentário provocador. Nos últimos tempos, ele voltara a publicar um tablóide, Estalo, participava ativamente de vários movimentos culturais e parecia mais feliz. Infelizmente a saúde não ia bem. Havia sofrido três AVC e estava diabético. Fora fumante por muito tempo. Como a vida não é uma história com final feliz, morreu de câncer linfático, que não tem relação alguma com o fumo ou com a obesidade.
Antes de ele morrer, nos reencontramos no mesmo Ipsemg, numa quarta-feira. No domingo anterior, estava em Sete Lagoas, passando raiva com o meu Galo, quando o celular tocou. Era o filho André, contando que ele estava internado em estado grave. Na saída do jogo, falei com o próprio Luiz. A ligação estava toda cortada.
Minha mãe estava internada no Semper, pertinho do Ipsemg, com pneumonia. Na segunda, não tive tempo de visitá-lo. Na terça, cheguei quando o horário de visita havia terminado. Na quarta, conversamos um bom tempo. Foi a última vez que o vi. Achei que ele estava bem. Prometi que o veria sempre, embora, talvez, não pudesse ir todos os dias. Não pude voltar na quinta e nem na sexta. No fim de semana, seu filho me contou que ele estava no Otaviano Neves. Recebi a notícia de sua morte na segunda.
Luiz Paulo foi um batalhador abnegado. Lutou toda sua vida em defesa da cultura e da educação. Pagou com sua saúde e uma situação financeira precária. Não teve o sucesso que merecia, mas foi querido pelos que o conheceram de perto.
Se houver um outro lado, é justo que ele tenha um destino melhor. Imagino um céu dos escritores, onde não haja imposto de renda e nem Serasa. Onde as edições sejam em capa dura e papel couché e não custem um centavo. Onde não passe o BBB na televisão, só programas culturais. Onde seja proibida a entrada dos pitbulls de duas e de quatro patas. Onde os tablóide não falem de futebol e nem de crimes, só de lançamentos e resenhas de livros. Uma ou outra foto de uma beldade seminua, porque ninguém é de ferro. Onde o escritor tenha sempre um photoshop amigo. E as gostosas também. Onde o Luiz possa pitar seu cigarro, comer um tropeiro com bastante torresmo, precedido de uma pinga de Salinas, sem temer enfisema, colesterol, diabetes e balança. E numa roda de amigos, comentar com o Maurício, dando uma risada gostosa: esse Marco só escreve bobagem. Essa história de céu é um plágio barato do Brancalleone.
Sossega e aproveita, Luiz.

domingo, 8 de agosto de 2010

Lapidação

Graças ao Presidente Lula e seu amigo Ahmadinejad, o tema ganhou repercussão. Lula até chegou a cantarolar, em um comício em Curitiba o samba de Ataulfo Alves: "atire a primeira pedra, ai, ai, ai, aquele que não traiu por amor...
Aproveitando a deixa, publico um antigo texto antigo meu, onde ensino:


Como fazer una poesia



A inspiração


 
Se eu estivesse escrevendo um conto, começaria assim:
           Um dia, caminhava pela rua, quando avistei um formoso colibri.... Um poeta escreveria simplesmente: 

Um colibri
            A metáfora
       As metáforas são para os poetas como as notas musicais, para os músicos. Mal um poeta avista um colibri verde, logo lhe vem a metáfora: colibri - esmeralda - joia viva.

            Ele então escreverá:



Esmeralda de pura gema

O tempo e o espaço na poesia

Em poesia não há passado e nem futuro e sim um tempo poético próprio. As poesias estão  adormecidas, esperando  que alguém as acorde e pasam, a vôo de pássaro, pela mente do leitor. Nelas as coisas não acontecem num espaço definido.  Eu quero que o leitor veja o colibri como se estivesse diante dele. Logo ....
Pousou aqui
Mas as esmeraldas só se transforma em jóias depois de lapidadas. Meu passarinho agora é:
Uma metáfora lapidada
            Vejamos os primeros versos:
Um colibri
Esmeralda de pura gema
Pousou aqui
       Uma metáfora lapidada
Se eu parasse por aqui, teria escrito uma bela porcaria. Até agora, disse apenas que avistei um colibri e que ele parecia uma joía viva, uma esmeralda.  Poderia dizer o mesmo com uma fotografia. Segundo Borges, os poetas não necessitam romper suas cabeças em busca de novas metáforas. Podem  nos bastar umas poucas, que todos conhecem. É preciso, no entanto, utilizar-las de uma nova maneira. Não me atraem os passarinhos voando livres pelo céu. São um lugar comum, nosso inimigo mortal.  Os poetas costumam ser  violentos e passionais. Pelo menos diante de uma folha em branco.  Logo...


Durou o instante de uma bodocada
Agora o leitor só tem diante de si penas voando. O sonho acabou. Precisamos, porém, exterminar os passarinhos com arte. Os moleques os apedrejam a toda hora e nem por isso são poetas.
Nosso ofício é trabalhar com a palavra. O dicionário é um de nossos intrumentos de trabalho. Buscamos esmeraldas brutas para lapidar. Ninguém consegue advinhar a forma que terá a jóia lapidada, apenas o ourives a pressente, oculta na pedra bruta.
Lapidar, no dicionário, possui duas acepções. Uma delas é a que se conjuga em alguns países contra as mulheres adúlteras.
E assim termina o poema:

 Lapidação


Um colibri
Esmeralda de pura gema
Pousou aquí

Uma metáfora lapidada
Durou o instante de uma bodocada
Desferida pelo poeta em estado bruto

A poesia também é reciclável. Com a mesma idéia, podemos fazer vários poemas. Vejamos:
Vôo poético

Pobre passarinho
A metáfora encontrou
Um poeta concreto
O poeta concreto da foto é Tonto, nossa  pantera em miniatura, surpreendido com as penas da vítima ainda presas ao bigode. Quem teve a sorte de ser adotado por um gato, conhece sua elegância, a precisão com que ele apanha a presa. Se ele gostar muito de você, de vez em quando, colocará em sua cama um presente: um raminho, um ratinho morto, coisas assim. Kiki, a siamesa de minha mulher, presenteia com pregadores de roupa.
Em homenagem a esses poetas concretos, fiz uma
Poesia

        Todo gatinho é um poeta        


Perseguindo um borboletema


Um fulgurante


Extravagante


Borbulhante

Poema



Um salto improvável

No hiperespaço


Num imponderável contrapé


No contratempo do compasso



A presa destroçada

A fugidia borboleta


Agarrada

Despojada de seu brilho


Depois deixada


Na cama dum dono indiferente


A poesia
 Para terminar, como membro do Movimento "Poetas pela Paz", gostaria de fazer um apelo às autoridades iranianas, onde o adultério ainda é considerado questão de estado: comutem a pena de Sakineh Ashtiani por uma lapidação no melhor sentido. Quem nunca pecou, que atire o primeiro poema. Ao nosso Presidente, também faço um apelo: as palavras às vezes machucam, deixe os versos de Ataulfo em paz.