Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

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Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Dilma e a fé Cristã

Minha avó Chiquinha era uma mulher de poucas luzes, embora muito sábia, à sua maneira. Vários de seus netos foram perseguidos durante o regime militar. Meu primo Apolo se exilou e eu fiquei 9 anos clandestino.
Assim que retomamos  nossa vida normal, ela nos chamou ao seu apartamento no conjunto IAPI, em São Cristóvão. A salinha pequena estava cheia de familiares. Minha vó nos esperava com uma pergunta: - vocês acreditam em Deus?
Meu primo respondeu: - acredito que há um Deus em toda a parte, inclusive em nós mesmos ... blá, blá, blá .... alguns O chamam de inteligência superior .... blá, blá, blá ... mas o importante é ... blá, blá, bla´... porque a religião não garante que a pessoa seja honesta .... blá, blá, blá. Minha avó fez igual ao gato do Wiskas - só escutou: eu acredito em Deus. Suspirou aliviada e olhou para mim.
Com toda diplomacia, tato e sutileza, que me são peculiares, eu respondi:
- Não.
Vó Chiquinha, coitada, murchou.
Essa é a resposta que eu gostaria de ouvir da Dilma. Aliás, eu gostaria que ela dissesse com todas as letras que o Estado Brasileiro é laico e que a convicção religiosa não deve interferir na escolha de seus dirigentes. Perderia muitos votos, não ganharia o meu, mas colocaria a discussão nos devidos eixos.
Não sei por que, lembrei-me de Vó Chiquinha quando li o artigo de Frei Beto  “Dilma e a fé Cristã”. Selecionei alguns trechos: “Ex-aluna de colégio religioso, dirigida por freiras de Sion, Dilma, no cárcere, participava de orações e comentários do Evangelho. Nada tinha de marxista atéia.” Ex-frequentador de Centro Espírita, batizado na crença protestante, vou a missas de sétimo dia, casamentos e batizados. Tenho cara de marxista ateu até hoje. 
Frei Beto não disse: Dilma continuou católica.
Ele vai mais longe: “Nossos torturadores, sim, praticavam o ateísmo militante ao profanar, com violência, os tempos vivos de Deus...” Engraçado, a vida todo eu pratiquei errado o ateísmo militante. Agora é tarde, vou continuar com a minha versão.
Prossegue Frei Beto: “... posso assegurar que não passa de campanha difamatória, diria, terrorista – acusar Dilma Roussef de “abortista” ou contrária aos princípios evangélicos.” De novo ele não disse: Dilma é contra a descriminalização do aborto. Seria chato desmentir declarações anteriores dela.
“...Ninguém é dono da verdade. Nem tem o direito de julgar o foro íntimo do próximo.” Julgar implica condenar. Discordar significa  reconhecer na posição do outro posição diferente da sua. Meus amigos católicos nunca sentiram necessidade de ocultar sua religião e nunca se aborreceram quando eu discordei, filosoficamente, de sua opção. E vice-versa.
“Dilma, como Lula, é pessoa de fé cristã, formada na Igreja Católica.” Até que fim, uma declaração conclusiva e absoluta. Ledo engano. Ele continua relativizando suas afirmações. ”É na coerência de suas ações, na ética de procedimentos políticos e na dedicação ao povo brasileiro que políticos como Dilma e Lula testemunham a fé que abraçam.”
Santa ingenuidade a minha. Prestes, Amazonas, Marighella e tantos outros eram cristãos! E eu que pensava que o católico testemunha a sua  fé freqüentando uma igreja, participando de seus sacramentos e seguindo a Bíblia. Como o comunista testemunhava sua militância participando de um organismo do partido, obedecendo ao seu estatuto e pagando a sua contribuição.  Realmente, eu sou uma pessoa muito apegadas às exterioridades.
“Em tudo o que Dilma realizou, falou ou escreveu, jamais se encontrará uma única linha contrária ao conteúdo da fé cristã e aos princípios do Evangelho.” Cáspite. Essa foi forte. Em grande parte do que eu realizei, falei ou escrevi, espero que encontrem muita coisa contrária ao conteúdo da fé cristã e aos princípios do Evangelho. Espero também me  encontrar com Marx no inferno, se existir um. Quero ficar longe de Dilma, que certamente estará no céu,  em cima de uma nuvem, junto com os santos, tocando harpa para  Jesus.
Por último, Frei Beto pontifica: “Jesus se colocou no lugar dos mais pobres e frisou que a salvação está ao alcance de quem, por amor, busca saciar a fome dos miseráveis, não se omite diante das opressões, procura assegurar a todos vida digna e feliz. Isso o governo Lula tem feito, segundo a opinião de 77% da população brasileira... Dilma, se eleita presidente, prosseguirá na mesma direção.”
Perguntas que não consigo calar: Os 23% que não aprovam o governo Lula são ateus? Se Serra ganhar, ele será mais cristão do que Dilma? O milagre da multiplicação dos pães foi uma antecipação do bolsa família? Em quem os muçulmanos devem votar?
Eu admiro o tato, a diplomacia e a sutileza de Frei Beto. Como não sou o Gato da Wiskas, só prestei atenção ao que ele não disse. Ele esticou tanto o conceito de cristianismo, que o tornou irrelevante. Espremendo-se tudo, chega-se à conclusão, deixando de lado os exageros, que Dilma, segundo Frei Beto, sempre agiu em prol do povo.
Ele só não disse: Dilma acredita em Deus. E olha que o artigo se chama Dilma e a fé cristã. Esperava que, depois de lê-lo, poderia responder conclusivamente se Dilma é, ou não, atéia. Fiquei sem resposta. Ou melhor, como não sou cristão, continuei com minha convicção anterior. 

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