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terça-feira, 13 de outubro de 2009

Capítulo 1 Primeira Parte

Capítulo 1 – O PC do B: da ruptura ao Araguaia


A ruptura

Em 1949, quando o grupo de alpinismo de Elza Monnerat escalou o morro Dois Irmãos para pichar o nome de Stalin no paredão, com letras de vários metros de altura, eles pintaram à cal a sigla do partido responsável - PCB. Essa era a sigla do Partido Comunista do Brasil, desde a sua fundação em 1922. Durante pelo menos quarenta anos, o Partidão, como era conhecido, foi a maior força de esquerda do Brasil. Pode-se dizer que sua liderança nunca esteve seriamente ameaçada – as organizações trotskistas, anarquistas e socialistas que surgiram nesse período duraram pouco tempo e nunca conseguiram criar bases sólidas entre os movimentos de massa.

Em 1962, Elza Monnerat não conseguia mais reconhecer o partido em que ela ingressara, em 18 de abril de 1945: o estatuto fora mudado para facilitar a sua legalização e se adequar às exigências eleitorais e o próprio nome havia sido modificado para Partido Comunista Brasileiro. Vendo o seu partido tão desfigurado, ela não teve dúvidas em se juntar a um pequeno grupo de militantes e de dirigentes inconformados.

Eles refundaram o partido, mantendo a denominação original e, para se diferenciar do Partidão, lançaram uma nova sigla: o PC do B. A pichação que Elza fizera anos antes ainda era visível para milhares de cariocas, embora a cal, sob a ação do tempo, houvesse desbotado um pouco.

Ao fazer sua opção, Elza sabia muito bem que o “do” acrescentado envolvia muito mais do que uma simples discordância tática. Se tivesse que apontar o momento em que divergências começaram a se cristalizar, ela escolheria uma data: janeiro de 1956. Foi nesse mês que Khruschev leu o seu famoso relatório secreto para uma platéia perplexa, durante o XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética).

Khruschev era o sucessor de Stalin e as acusações que fez contra o seu antecessor eram gravíssimas. Ele afirmou, por exemplo, que 70% dos membros e suplentes do Comitê Central eleitos no XVII Congresso foram presos e fuzilados injustamente. Dos 1.966 delegados desse mesmo congresso, que, ironicamente, é conhecido como o Congresso dos vitoriosos, 1.108 foram presos sob a acusação de crimes anti-revolucionários.

As denúncias caíram como uma ogiva nuclear sobre os comunistas brasileiros. Assim que o Comitê Central se reuniu para tratar do Relatório Khruschev “... houve de tudo: Arruda Câmara, Carlos Marighela e outros chegaram a chorar convulsivamente durante dias... Prestes chegou a afirmar que, ao saber da veracidade das notícias, pensara em se suicidar, por ter fracassado como comandante.” Muitos militantes evitavam olhar para o morro Dois Irmãos, onde o nome de Stalin resistia ao tempo.

Segundo Khruschev, aquelas práticas encontraram um terreno propício devido ao “culto da personalidade” e ao abandono da direção colegiada. Na prática, as decisões mais importantes do partido soviético eram tomadas por Stalin, seu secretário-geral, o guia genial e infalível, que só compartilhava suas opiniões com um pequeno círculo de dirigentes.

No Brasil, há muito, o PCB vinha adotando métodos similares de direção. Moisés Vinhas cita de memória uma afirmação de Diógenes de Arruda Câmara, dizendo que “não mudaria uma vírgula do projeto de programa do IV Congresso do PCB, pois ele havia sido visto por Stálin”.

Portanto, não é de se estranhar que, mal começado o debate, chovessem críticas dos militantes ao chamado “mandonismo” dos dirigentes locais: Prestes, Marighella, Amazonas e, em especial, Arruda. Com o aprofundamento das discussões, surgiu um grupo, liderado por Agildo Barata e Astrojildo Pereira, que começou a se perguntar se valeria mesmo a pena manter um partido desse tipo. Foram chamados de liqüidacionistas, Agildo foi expulso e a discussão abortada. O partido acabou cerrando fileiras em torno de Luis Carlos Prestes, o seu secretário geral.

Logo, não foram as denúncias contra Stalin que dividiram o partido, pelo menos nesse primeiro momento. O XX Congresso foi marcante sob vários outros aspectos: ao aprovar os princípios da “coexistência pacífica” e da “transição pacífica”, ele sinalizou uma guinada brusca nos rumos do movimento comunista internacional.

Segundo Khruschev, o bloco socialista ocupava “25% da superfície do globo, com uma população superior a 35% do total mundial e suas indústrias contribuem com cerca de 30% da produção industrial do mundo.” Ele concluiu que, se os sistemas capitalistas e socialistas pudessem conviver pacificamente, o socialismo iria se impor gradualmente. Devido ao peso crescente do bloco socialista, “Os povos dos países coloniais e dependentes podem hoje alcançar sua completa independência econômica mediante a conquista ou a consolidação da liberdade política e a realização de uma política externa independente e de acordo com os reais interesses nacionais.” Em outras palavras, a revolução armada não era mais necessária e nem desejável.

Foi exatamente em torno dessas teses que se manifestaram divergências de fundo, que acabariam levando à cisão. Podemos dizer que a luta se travou entre as teses revolucionárias e as teses reformistas.

O partido de Elza Monnerat era o partido que conduzira a insurreição de 1935. Dessa fracassada tentativa de tomar o poder, surgiram os heróis e os mártires retratados na trilogia de Jorge Amado, “Os subterrâneos da Liberdade”. Lá estão Prestes, Olga e muitos outros dirigentes. Eles são citados pelos seus nomes verdadeiros ou por pseudônimos, que mal encobrem a sua verdadeira identidade (Apolônio de Carvalho, por exemplo, é Apolinário).

Unidos num determinado momento sob a mesma bandeira, ao longo da década de 60, os personagens de Jorge Amado tomariam rumos completamente divergentes. Também no plano internacional, a família comunista começaria se dividir: os chamados “partidos irmãos” passaram a se acusar mutuamente de contra-revolucionários.

No final dos anos 60, os militantes de esquerda tinham o hábito de escutarem as rádios estrangeiras: a Rádio Moscou, a Rádio Havana e a Rádio Pequim. O autor se lembra muito bem das transmissões em ondas curtas, que começavam com a introdução: “Camaradas e amigos, aqui, Rádio Pequim...” No auge da Revolução Cultural, os chineses sempre se referiam à direção soviética como “a renegada-camarilha-revisionista-soviética-de-Breschnev-e-Kossyguin”, tudo isso dito num só fôlego. O adjetivo revisionista indicava que as teses de Khruschev eram um abandono da ortodoxia leninista.

A China, desde 1956, vinha discordando das posições soviéticas sobre Stalin, a coexistência pacífica e a transição pacífica. Em 1960, uma conferência de 81 partidos comunistas, convocada para acertar essas diferenças, terminou com um compromisso entre as duas posições. Em 1969, a dissensão chegou ao seu auge, a ponto de ocorrerem choques armados na fronteira sino-soviética. Em 1962, quando surgiu o PC do B, embora as diferenças fossem marcantes, ainda não se concretizara a cisão do movimento comunista.

O Manifesto Programa do PC do B, que oficializou a ruptura com o PCB, não avançou muito nesse terreno movediço. Ele afirmava sobre as duas potências que “a União Soviética marcha para o comunismo e a China Popular, até há pouco escravizada, forja uma nova sociedade e constitui hoje, um poderoso baluarte da luta contra o imperialismo.” Grifos nossos.

Assim que se separou do Partidão, o PC do B tratou de estabelecer contatos com os principais partidos comunistas. Procurou a União Soviética, Cuba e China. Lincoln Oest era um dirigente histórico, que vivera os momentos difíceis em que o partido, reduzido a um punhado de militantes, era perseguido pela polícia de Getúlio Vargas. Ele participou ativamente desse processo.

Anos mais tarde, no início da década de 70, vivendo sob outra ditadura, ele organizou uma reunião com os estudantes do PC do B que atuavam na diretoria da UNE. O objetivo era passar para os novos militantes um pouco da história do partido. A reunião foi feita num sítio em Jacarepaguá e contou com a ajuda de Carlos Danielli e Luiz Guilhardini. As explanações do camarada Lauro sobre a história do PC do B eram recheadas de relatos envolvendo figuras históricas, o que as tornava muito vivas. Ele nos contou que Fidel Castro recebeu a delegação brasileira em segredo, de madrugada, para não contrariar os soviéticos. Oest acrescentou que a primeira edição brasileira de Guerra de Guerrilhas, do Che, foi patrocinada pelo PC do B. A idéia era mostrar a justeza da luta armada, sem se comprometer com a forma que ela deveria assumir.

Muito cedo, o recém criado partido teve que tomar posição na polêmica que opunha China e União Soviética. Em 1963, no documento “Resposta a Khruschev”, defendendo-se da acusação de divisionismo, o PC do B afirmava que “... as classes dominantes tornam inviável o caminho pacífico da revolução e, por isso, o povo, sem deixar de utilizar todas as formas de lutas legais, deve se preparar para a solução não pacífica.”

Como conseqüência desse posicionamento, em 1964, antes do golpe, foi enviada uma delegação do PC do B à China, para realizar um curso na Academia Militar de Nanquim. O curso durou 10 meses e teve 9 integrantes: Paulo Mendes Rodrigues; Osvaldo Orlando da Costa; Daniel Callado; Dynéas Aguiar, Diniz Cabral, um militante de sobrenome Barbosa, um de sobrenome Gomes, um de prenome Senhorzinho e Paulo Roberto Martins. Oito anos mais tarde, os três primeiros teriam a oportunidade de colocar em prática os ensinamentos recebidos.

Em 65, foi enviada uma segunda turma, composta por: José Humberto Bronca, Manoel José Nurchis, Miguel Pereira dos Santos, Elio Cabral de Souza, Amaro Luis de Carvalho, Tarzan de Castro, Gerson Alves Pereira, Ari Holguin da Silva e Elio Ramires Garcia.

Pelo depoimento de Elio Ramires Garcia, podemos ter uma idéia de como foram os cursos. Elio entrou para o PCB em 1960, no Espírito Santo. Em 62, ficou com o PC do B. Três anos mais tarde, indicado por Danielli, partiu para a China. Ele e Gérson Alves Parreira saíram do Rio de Janeiro em maio de 65. Em Zurique se encontraram com Ari Holguin e de lá seguiram para Berna, de trem. Ari era o chefe do grupo e providenciou os vistos de entrada na embaixada da República Popular da China. Depois de alguma demora, seguiram de trem até Genebra, de onde, em 12 de junho, foram para Karachi, no então Paquistão Ocidental. No dia seguinte, voaram até Xangai, com escala em Dacca (no então Paquistão Oriental). Finalmente fizeram a conexão com Pequim, aonde chegaram no dia 13, à tarde.

A primeira parte do curso foi em Pequim. A rotina era:

- 7:00: café;

- 8:00 até as 11:00: estudo individual ou conferência de algum especialista. Os temas abrangiam filosofia, o partido, a frente única, a formação de quadros, a atuação na clandestinidade, etc. Ao final de cada tema havia um debate em grupo;

- à tarde: a mesma programação. O material de consulta era constituído exclusivamente por textos de Mao;

- 18:00 até as 19:00: atividades físicas (ginástica, tai-chi-chuan, uma pelada, etc.);

- à noite: atividades esportivas, como ping-pong ou futebol, ou culturais: passeios pelos parques, teatro, a Ópera de Pequim (insuportável para os ouvidos de Elio), cinema, etc.

Em Pequim só se estudaram os textos políticos. Os militares, que não deixavam de serem políticos, ficaram para a Academia Militar em Nanquim. Lá a ênfase continuou nos aspectos teóricos. A base eram quatro textos de Mão: “Problemas da guerra e da estratégia”, “Sobre a guerra prolongada”, “Problemas estratégicos da guerra revolucionária na China” e “Problemas estratégicos da guerra de guerrilhas antijaponesa”.

A par desses, havia outros textos de Mao, onde se procurava mostrar que o exército popular era um exército de novo tipo, diferente dos bandos de saqueadores e assassinos comandados pelos “senhores da guerra”, tradicionais na história da China. Poderíamos chamá-los de texto político-militares.

Esse novo exército se identificava com as massas e seus corpos eram unidades de produção e de combate - sua manutenção não poderia ser pesada para os camponeses. Os textos básicos eram: “Nova proclamação das três grandes regras de disciplina e das oito recomendações”, “A luta nas montanhas Ching-kang”, “Fazer do exército um corpo de trabalho”, “Sobre a produção pelo próprio exército dos bens que necessite”, e “A guerra popular” (inserida no texto “Sobre o Governo de Coalizão”).

Sobre o curso em Nanquim, podemos dizer que tinha o formato de um curso de estado maior. Elio se recorda dos imensos mapas militares, cheios de setas azuis e vermelhas, onde os veteranos da guerra antijaponesa e da guerra de libertação mostravam as campanhas. Poucos foram os exercícios de tiro, de simulação de emboscadas ou de combate.

A estadia na China durou quase sete meses: dois meses e meio em Pequim, três meses em Nanquim e um mês de giro pela China. A delegação esteve em Cantão, Xangai, Hangtchou, Wu-han, Xi-an, onde seriam descobertos os guerreiros de terracota e Nang-chang, entre outras cidades. Em Pequim, conheceu sítios históricos e pitorescos; visitou a Cidade Proibida, fábricas, creches e conjuntos habitacionais. Houve até tempo para assistir algumas “peladas” de futebol no Estádio Olímpico. No dia 30 de dezembro, Elio viajou para Genebra e no começo de janeiro estava de volta ao Brasil.

Em 66, foi enviada a última turma, com aproximadamente 15 militantes. Entre eles: Michéas Gomes de Almeida; João Carlos Haas Sobrinho; Divino Ferreira de Souza; José Barbosa Oliveira, que teria o codinome de Rafael, Benedito de Carvalho (codinome Lutero); Lincoln Cordeiro Oest (membro do Comitê Central); André Grabois; Nelson Lima Piauhy Dourado; João Amazonas (membro do Comitê Central e da Comissão Militar da guerrilha); Maurício Grabois (membro do Comitê Central e da Comissão Militar da guerrilha). Negritamos os nomes dos militantes que foram para o Araguaia. Provavelmente, os membros do Comitê Central não participaram dos cursos, mas, com certeza, debateram a experiência da revolução chinesa com os dirigentes do PCCh (Partido Comunista da China).

2 comentários:

  1. A leitura flui bem.
    No último parágrafo não apareceram os negritos referidos.
    Pergunto se o Vietnam é ou foi aqui...

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  2. Eu estou com problema para postar os textos, por que os negritos não saem automaticamente e as notas de pé de página desaparecem!

    O título é provocativo. Na verdade, o que passava pela cabeça dos guerrilheiros era realmente fazer um Vietnã aqui. Não aconteceu nada parecido. No posfácio, eu pretendo deixar isso bem claro, bem como nas minhas avaliações.

    Clicando duas vezes na capa, ela abre num tamanho maior. Eu coloquei três cores completamente destoantes, preto, verde e azul, com detalhes em vermelho, para doer na vista de longe. Infelizmente, é preciso pegar o leitor nem que seja a laço. Preciso fazer também uma orelha bem caprichada.

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