Escrito nos raros momentos de folga de uma jornada fatigante.

Consulte o dicionário do cinismo, no rodapé do blog.

Divulgação literária e outros babados fortes

Versos cretinos, crônicas escrotas e contos requentados. O resto é pura prosa.

sábado, 27 de dezembro de 2014

2015 ano do Carneiro de Madeira


O professor Marcus prevê: 2015 será o ano do Cavalo de Pau na economia, promovido pela granda chefa Cara-de-pau, que implementará tudo o que acusou os adversários de querer implementar. 

O povo, tende a se manter na sua vocação de carneiro, mas, se se meter a besta, será democraticamente reprimido com a famosa madeira de dar em doido. Vai ser pau puro e o país deve sair catando cavaco, com perspectivas de se estabacar  em 2016, o ano de Macaco de Fogo. onde teremos a sensação térmica de um macaco, de fogo, fazendo sacanagem com o que sobrou da nossa economia.Os que viverem, verão. E os que sobrarem, contarão.

Conto de Natal


O Sr. Erany informa que tem 67 anos, é aposentado e sustenta um filho epiléptico e uma mulher “com paralizia”. Nada disso é relevante para o processo em tela, mas ele, com aquela  educação das pessoas humildes, acha que é necessário se apresentar e explicar minuciosamente sua história.
Tudo isto foi escrito em uma folha de papel almaço, com letra irregular e surpreendentemente legível, apesar dos tremidos. Aduziu que não encontra emprego, por causa da idade. Ganha os R$ 260,00 da aposentadoria, o que mal deve dar para os remédios. Mas isso ele não revela, com aquele resto de pudor que ainda mantém.
Inicia nomeando o cargo da autoridade competente, precedido pelo indefectível Sr. Dr Fulano de Tal. O assunto é a sua inscrição em dívida ativa. A origem do débito é explicada com singeleza: para aumentar os seus proventos, montou uma barraquinha de ambulante, tudo legalizado, segundo ele. Mas assim não entendeu o fiscal municipal de postura, que lavrou o competente auto de infração. Ainda segundo ele, a multa o deixou  “decepissionado”.
Não há dúvida de que o estilo é o homem. Logo à frente, pondera que a razão do não pagamento é “porque, talvez, ele não tinha dinheiro”. A frase é toda uma vida. Usa-se um eufemismo para não ofender tão alta autoridade com problemas tão prosaicos. Reconhece a obrigação de pagar e não cogita em argumentar que ela é injusta - todo o seu argumento é “ad misericordiam”.
O Sr. Erany é um daqueles homens bons, que acredita no poder de uma boa conversa, com jeitinho, sem forçar a barra. Até se excede um pouco, afirmando que, “com certeza”, o Doutor veio das classes humildes. Talvez isso fosse verdade no seu tempo, em que o filho da lavadeira começava como contínuo e ia galgando, degrau por degrau, a hierarquia do serviço público.
Os tempos agora são outros. A Carta Magna de 1988 acabou com os privilégios e decretou a igualdade de todos perante a lei. A nomeação para os cargos de carreira se faz através da aprovação em concurso público. Quero ver o filho da lavadeira, que estudou em escola pública, que escreve  “paralizia” e “dessepicionado” chegar até aqui, aonde eu cheguei.
Mas o coitado persiste nesta crença e acha mesmo que a autoridade poderia ser sensível ao seu apelo. Admitindo que o fosse, estaria cometendo crime de prevaricação se  agisse contra a legislação em vigor, apesar do motivo humanitário. Tenho certeza que ele desconhece o que seja prevaricação.
Porque há o motivo. O Sr. Erany não mente. Sua exposição é uma peça inteira, consistente, uma aula de sociologia em uma única mísera lauda de papel almaço, meio amarelado. Acabo por admitir que no seu pedido há muito mais conteúdo do que no meu arrazoado.  Esse meu estilo cartorial e pedante, cheio de polissílabos e de jargão jurídico, temperado com um latim macarrônico, acaba abafando as minhas convicções.
Em anexo, xerox da carteira de identidade e mais uma papelada: exames, atestados, etc. Já se acostumou a ter que provar que é ele mesmo, e que o que disse é verdade. Não perdi tempo olhando a sua foto.
Sou simpático a sua causa, mas não a sua figura. Ele me irrita com seus eufemismos, sua humildade, sua resignação. Indigno-me, por ele que não se indigna. Mas uma repartição pública é o lugar mais inadequado do mundo para indignações. Se o papel aceita o que se lançar nele, o papel dos processos é de um tipo especial, anti-séptico, apesar de ser freqüentado por ácaros, fungos e bactérias de todas as cepas. O chefe pode passar por alto um estilo não parlamentar, digamos assim, mas quer saber qual a motivação do despacho, o seu enquadramento legal. E é ele quem decide. Eu apenas emito um parecer, penso que acho alguma coisa, salvo melhor juízo.
É claro que indeferi de pleno o pedido, por carecer de embasamento legal. Não, não fiz nenhuma subscrição entre os colegas. O Sr. Erany que se vire para pagar a multa. Porque ele vai pagá-la, pobre não sabe sonegar e perde o sono se ficar devendo. Que seja às custas do remédio da mulher, ou do filho, pouco se me dá. A caridade não é uma das minhas virtudes. Sinto muito, não sou cristão.
Não, também não convoquei o Sr. Erany à repartição. Ele provavelmente não me escutaria. Que adiantaria eu lhe dar uma aula sobre a injustiça das taxações em geral, e desta em particular? Ele acabaria por me irritar  ainda mais, pedindo para falar pessoalmente com o chefe, insistindo, querendo apenas um pouquinho de esperança.
Não há um final feliz possível para esta história. Mesmo que a multa fosse perdoada, ele continuaria, pobre, desempregado e doente. Porque sofre de câncer no fígado, conforme os laudos que anexou. Sua vida deve ter sido toda vivida nesta mesma toada, é tarde para mudá-la. É véspera de Natal e eu só queria achar um lugar neste mundo onde o ser humano fosse um pouquinho menos hipócrita e eu pudesse destilar a minha raiva sem maiores constrangimentos.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O Gol

O gol

Essa é a história de um velho que vive em um apartamento com um gato. Ele está sentado numa poltrona, com um pedaço de papel na mão. Algo muito importante, algo que ele não pode esquecer, está escrito nesse papel. O velho confere a hora no relógio.
Toca a campainha.
Ele sabe que é uma coisa importante, uma coisa que ele não pode esquecer. Olha para o papel e, quando ia se lembrar de levantar da poltrona, lembra-se do gol.
O estádio está cheio e o jogo empatado. Está sozinho, bem aberto pela ponta. O armador lança a bola, que domina com classe. Imediatamente vê a defesa fechando sobre ele.
Toca de novo a campainha.
Não se lembra como, mas já está de cara para o gol, com dois zagueiros pela frente e o lateral correndo ao seu lado.
E, inevitavelmente, toca a campainha.
Ele só pensa no gol. O goleiro surge à sua frente, fechando o ângulo. Bate embaixo da bola, que o encobre, faz a curva perfeita e vai caindo, caindo...
Inexoravelmente, toca a campainha.
A bola bate na trave, cai sobre a linha, toma o efeito contrário e entra.
Gol.
A torcida enlouquece. É o gol do campeonato. Beija o escudo do Nacional e corre para abraçar os companheiros.
Olha para o relógio.
O relógio está errado. Marca uma hora que ele não consegue ler. O gato o atormenta o tempo todo, não quer que ele se esqueça de nada. Quando isso acontece, o gato adianta o relógio. Agora o gato estragou o relógio.

A campainha não toca mais.
Olha para o pedaço de papel, onde está escrito uma coisa que ele não pode esquecer. O papel está errado, rabiscado com uma letra que ele não consegue entender. O gato estragou o papel.
Mas o gato não sabe que ele se lembra do gol. Isso ele não esquece. 
Uma história aparentemente trivial, salvo pelo imponderável - ele nunca foi jogador.